Vladimir da Rocha França (RN)
Fundada na premissa da existência de uma “dívida histórica” decorrente do vergonhoso fato histórico da escravidão, bem como na ideia de exclusão socioeconômica de alguns em razão de algumas características fenotípicas, têm sido inseridos no sistema do Direito Positivo brasileiro diplomas legais que viabilizam direitos específicos para “negros”.
Também tem sido usado como argumento que a maioria do povo brasileiro seria constituído por “negros”, e que a suposta maioria “branca” seria fruto das ações de “branqueamento” da população.
Não se examinará aqui a constitucionalidade desses diplomas legais, aliás bem discutíveis à luz dos princípios fundamentais da igualdade e da razoabilidade. Mas sim, a validade e eficácia do ato jurídico emanado pelo administrado com amparo no art. 2º da Lei Federal n.º 12.990, de 9 de junho de 2014. Esse enunciado legal tem a seguinte redação:
“Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis”.
Conforme o art. 1º, caput, da Lei Federal n.º 12.990/2014, essas cotas são fixadas à razão de 20% (vinte por cento) dos cargos ou empregos públicos federais postos em disputa nos concursos públicos promovidos pela Administração Pública Direta e Indireta da União.
Antes de adentrarmos mais profundamente na análise proposta, convém destacar que se trabalha aqui com a presunção de constitucionalidade das normas jurídicas veiculadas pela Lei Federal n.º 12.990/2014.
Inicialmente, deve-se asseverar que a auto-declaração disciplinada por esse preceito legal constitui-se ato jurídico em sentido estrito, ou seja, seus efeitos jurídicos já se encontram especificados em lei e não podem ser modificados pelo seu emissor. Contudo, tal eficácia depende da ocorrência da declaração de vontade.
Naturalmente, a validade do referido ato jurídico pressupõe, nos termos do art. 104 e do art. 185, ambos do Código Civil: (i) a capacidade civil plena do emissor; (ii) a veracidade do objeto, ou seja, que o emissor seja realmente preto ou pardo; e (iii) observância à forma prevista no edital do concurso público.
De acordo com o art. 1º, parágrafo único, IV, da Lei Federal n.º 12.288, de 20 de julho de 2010, a “a população negra” é formada pelo “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”. Ao conjugá-lo com o art. 2º da Lei Federal n.º 12.990/2014, pode-se concluir que o “negro” é aquele que pode ser enquadrado como “preto” ou “pardo” nas estatísticas promovidas e mantidas pelo Governo Federal.
Como já asseverado, trata-se de ato jurídico em sentido estrito, pois seus efeitos jurídicos não podem ser fixados pela vontade do emissor, sendo integral e exaustivamente determinados pela própria lei.
Uma vez emanada a auto-declaração da condição de “preto” ou “pardo” perante a entidade federal que realiza o concurso público, o emissor passa a ter o direito subjetivo, a concorrer às vagas reservadas para candidatos “negros”. Direito subjetivo este que naturalmente deverá ser observado pela entidade executora do processo concorrencial.
Os conceitos de “negro”, “preto” ou “pardo”, no contexto legal, constituem o que a doutrina administrativista geralmente rotula de “conceito jurídico indeterminado” ou de “conceito jurídico fluido”. E, de fato, não existem parâmetros seguros e objetivos para se definir quem é “preto” ou “pardo”. Noutro giro: com quantas características fenotípicas se faz um “negro”?
Enquanto “conceitos jurídicos fluidos”, eles não ensejam competência discricionária para Administração Pública, a não ser que não se consiga fazer cessar a sua incerteza significativa no caso concreto. Ocasião na qual a Administração Pública se vê obrigada a empregar o seu juízo de oportunidade, caso a lei não estabeleça alguma presunção. Exceção esta presente em “negro”, “preto” e “pardo” no art. 2º da Lei Federal n.º 12.990/2014.
A adoção do critério da auto-declaração para a classificação racial do administrado enseja o reconhecimento da presunção relativa de veracidade, insuscetível de ser afastada pelo juízo de oportunidade da Administração Pública. Se tal medida decorresse exclusivamente de decisão administrativa, aí sim seria possível o emprego de critérios de conveniência ou oportunidade na aplicação desses conceitos pelo Estado-administração, em face da possibilidade de se fazer cessar a fluidez significativa de tais termos.
Recorde-se ainda que os defensores da legitimidade política e socioeconômica de diplomas legais como a Lei Federal n.º 12.990/2014 no Brasil usam aspecto fenotípico, e não o genético, para identificar o “negro” brasileiro. Assim, por exemplo, o filho de um “negro” e de uma “branca” não poderia ser enquadrado como “negro” caso tenha herdado predominantemente as características fenotípicas do “branco”.
Com efeito, havendo a comprovação da falsidade da auto-declaração - ou seja, de que o emissor não é “preto” ou “pardo” -, a Administração Pública deverá eliminá-lo do certame ou, conforme o caso, invalidar os atos ou contratos que ensejaram a eventual ingresso do administrado em questão em seu quadro de pessoal.
Entretanto, uma vez expedida a auto-declaração, insista-se, ela goza de presunção relativa de veracidade. Ou seja, cabe à Administração Pública, e não ao administrado, comprovar que ele não é “preto” ou “pardo”, observado o devido processo legal.
Certamente, haverá situações nas quais não haverá dúvida de que não se está diante de um “preto” ou “pardo”. Mesmo assim, faz-se necessário que a Administração Pública expeça um ato administrativo devidamente motivado para a exclusão do concurso público ou a invalidação administrativa da nomeação, ao aplicar o art. 2º, parágrafo único, da Lei Federal n.º 12.990/2014. Em se tratando de contrato de trabalho, a Administração Pública deverá solicitar a sua invalidação judicial.
À luz do art. 50, I e III, e §§ 1º e 3º, da Lei Federal n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999, não basta que a Administração Pública afirme vagamente que o candidato não possui todas as características fenotípicas esperadas. E, se ela não consegue descaracterizar de modo claro, explícito e congruente a “negritude” do administrado, a auto-declaração não pode ter seus efeitos jurídicos ignorados.
Ademais, a Administração Pública não deve aplicar o art. 2º, parágrafo único, da Lei Federal n.º 12.990/2014, fundado em motivos estranhos à dimensão fenotípica. Por conseguinte, a origem social do candidato, o fato de ter sido ou não efetivamente prejudicado pela sua cor, suas preferências culturais ou estéticas, não são argumentos ou parâmetros legítimos para se apurar a veracidade da referida auto-declaração.
E, se o candidato já tiver se identificado – ou sido identificado - como “preto” ou “pardo” junto ao IBGE, não há como se rejeitar a veracidade de sua auto-declaração no concurso público federal, à luz do princípio da boa-fé. Ora, se o IBGE, ente da Administração Pública da União, já reconheceu o administrado como “negro”, como se admitir que o “tribunal racial” do certame possa se recusar a fazê-lo? Uma das finalidades das “leis raciais” de Brasília não é justamente espancar o fenômeno do “branqueamento” da população brasileira? A adoção do critério da auto-declaração não existe para estimular o “preto” ou “pardo” a assumir a sua cor?
Enfim, para se prevenir o arbítrio na recusa das auto-declarações emitidas com amparo na Lei Federal n.º 12.990/2014, exige-se que a Administração Pública demonstre a ausência de qualquer dúvida razoável quanto ao não enquadramento do candidato como “negro”. Nesse diapasão, a palavra final quanto a condição de “negro” do candidato deve caber ao Poder Judiciário.
Pensar o contrário, com a devida vênia, é esvaziar por completo a efetividade da Lei Federal n.º 12.990/2014.