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Reguladores vorazes

ANO 2017 NUM 352
Vladimir da Rocha França (RN)
Advogado. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Associado II do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


27/04/2017 | 3560 pessoas já leram esta coluna. | 20 usuário(s) ON-line nesta página

Como se espera de um Estado de Direito na contemporaneidade, o Estado brasileiro está fundado numa ordem constitucional que elege dentre seus fundamentos a livre iniciativa.  Isso implica no reconhecimento da liberdade econômica e da propriedade privada como bens protegidos no sistema de direitos fundamentais que justifica a própria existência do Poder Público.

Em razão de metas constitucionais de Justiça Social, legitima-se o Estado a intervir tanto no domínio econômico como no domínio social, no intuito de impor ou induzir o comportamento dos administrados com vistas à concretização de objetivos de interesse público.  Recorde-se que no sistema do Direito Positivo do Brasil, os interesses públicos já se encontram previamente demarcados na Constituição Federal.

Nesse diapasão, o Estado, por meio da Administração Pública, tem em regra à sua disposição, duas opções de modelos jurídicos: (i) o modelo jurídico da regulação, no qual se investe o Poder Público de competências administrativas de natureza normativa, ordenadora, fomentadora e judicante, destinadas a fazer com que os administrados realizem compulsória ou facultativamente condutas consideradas, por lei, exigíveis ou convenientes para o interesse público a ser concretizado; ou, (ii) o modelo jurídico da prestação, em que a Administração Pública Direta ou Indireta, ou delegado do Poder Público, assume o dever de ofertar gratuita ou onerosamente bens e serviços para os administrados.

Em ambos os modelos jurídicos, exige-se o respeito à legalidade administrativa e aos direitos fundamentais individuais dos administrados.

Isso não significa dizer que o Poder Público tenha legitimidade para absorver todos os bens e serviços conhecidos no atual contexto socioeconômico e técnico-científico.  Quanto mais, os bens e serviços criados na dinâmica de uma Sociedade que confere licitude ao ambiente usualmente conhecido como Mercado. 

O Mercado, enfatize-se, não constitui um conglomerado de empresários no estilo de “Mr. Burns”, de “Goldfinger” ou de “Tio Patinhas”, que manipula ou domina todas as demais pessoas.  Trata-se sim de um sistema social complexo formado pelos fornecedores e consumidores de bens e serviços economicamente apreciáveis, bem como pelas relações sociais que eles travam em seu cotidiano para satisfazer suas próprias necessidades. 

Aliás, a própria Constituição Federal expressamente reconhece que é livre aos administrados o exercício da atividade econômica, somente podendo ser exigido deles o dever de solicitar a permissão da Administração Pública para fazê-lo se a lei assim estabelecer.

Também não há dúvida de que existem campos no domínio econômico constitucionalmente demarcados para os administrados em geral.  Se aquela atividade não tiver sido tipificada como serviço público ou qualificada como monopólio da União, o administrado tem o direito subjetivo de explorá-la, sem prejuízo da regulação estatal que a lei lhe impuser.

Em rigor, quando um novo bem ou serviço surge no Mercado, sempre surge alguém que deseja submetê-lo a um modelo jurídico específico, sob o falacioso argumento que a nova atividade não está “regulamentada”.

Ora, todo novo bem ou serviço no domínio econômico já nasce sob a incidência das normas jurídicas veiculadas pela Constituição Federal, pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, em se tratando do sistema do Direito Positivo.  Sem prejuízo, ressalte-se, das competências administrativas de natureza tributária e de polícia administrativa que já existem no Direito pátrio.  Basta que o referido bem ou serviço não esteja previamente tipificado como ilícito.

Mas toda vez que surge um novo modelo jurídico no Mercado, fundado na autonomia privada, surgem legisladores avessos à livre iniciativa e à livre concorrência que desejam garroteá-lo numa teia regulatória destinada tão somente a esvaziar a sua efetividade junto ao consumidor.  São os reguladores vorazes.

Os reguladores vorazes clamam por uma maior intervenção da Administração Pública, partindo consciente ou inconscientemente da premissa de que vigoraria nas relações privadas uma legalidade estrita.  Ou então, procuram realizar uma interpretação extensiva do rol constitucional de atividades tipificadas como serviços públicos ou como monopólios federais, de modo a conferir ao Estado um papel maior do que a Constituição Federal já lhe determina.

Não se pode olvidar que a autonomia privada e a legalidade, quando conjugadas, conferem ao administrado a permissão de explorar ou não as atividades econômicas que não lhe sejam proibidas por lei.  Sem esse espaço jurídico de liberdade, não há Estado de Direito.

Justamente porque os serviços públicos são atividades de titularidade do Estado, sujeitos ao regime jurídico-administrativo, a ampliação desse campo somente pode ser feita por lei, e não por intermédio de uma interpretação que procura suprir uma suposta lacuna regulatória em face da inovação.  Em rigor, não há lacuna regulatória, mas sim uma regulação vigente que não satisfaz ao regulador voraz.

Quanto aos monopólios federais, ainda que eles estejam sujeitos ao regime jurídico de Direito Privado que seja compatível com o regime jurídico-administrativo, a Constituição os considera atividades econômicas cujo titular é a União.  Mesmo assim, convém asseverar que se deve aplicar aqui o mesmo raciocínio proposto à identificação dos serviços públicos.

Reguladores vorazes produzem regulações vorazes, muitas vezes antinômicas entre si e ensejadoras de uma teia legislativa que deixa o administrado na condição de refém de interesses corporativos vendidos como interesses públicos.  Aparato normativo este que também acaba por inibir a força criativa da iniciativa privada e a melhoria das condições socioeconômicas da própria Sociedade.

Para que se desperte o apetite do regulador voraz, basta que o novo bem ou serviço satisfaça o consumidor.  O sucesso, para ele, somente pode advir de uma concessão, permissão ou autorização outorgada pelo Estado por meio da Administração Pública.



Por Vladimir da Rocha França (RN)

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