Vladimir da Rocha França (RN)
Talvez a publicidade seja um dos princípios jurídicos que apresente menor complexidade ou menor desforço de compreensão dentre as normas fundamentais do Direito Administrativo brasileiro.
Previsto expressamente no art. 37, caput, da Constituição Federal, determina-se para a Administração Pública o dever de disponibilizar os seus atos jurídicos para o conhecimento público. Em outras palavras, fazê-los disponíveis para todo e qualquer administrado.
O acesso do administrado aos atos jurídicos administrativos está, inclusive, também assegurado pela garantia fundamental consubstanciada no direito à informação, expressa no art. 5º, XXXIII, e no art. 37, § 3º, II, ambos da Constituição Federal. No plano infraconstitucional, a matéria está disciplinada pela Lei Federal n.º 12.527, de 18 de novembro de 2011.
É certo que há limites constitucionais a esse acesso. O direito fundamental à privacidade e a garantia institucional da segurança nacional podem justificar a eventual restrição ao conhecimento de alguns atos jurídicos administrativos.
Mesmo diante de preceito tão claro, é impressionante como os Poderes Legislativos de alguns Estados-membros ou Municípios costumam violá-lo em se tratando de seus cargos públicos efetivos. Especialmente quando se trata da nomeação para cargos de provimento efetivo ou o enquadramento de servidores públicos em face da implantação ou reestruturação de carreiras.
Para que os atos de nomeação e de enquadramento em cargos públicos efetivos sejam válidos, mostra-se indispensável a publicação deles na imprensa oficial. E, diante do texto do art. 37, caput, da Constituição Federal, a norma jurídica que institui comando incide e, por conseguinte, deve ser naturalmente aplicada pelo Poder Legislativo em todos os entes federativos.
Também não é preciso muito desforço intelectual para se chegar a conclusão de que a omissão contumaz da Administração do Poder Legislativo na observância dessa norma jurídica pode ser perfeitamente enquadrada como um sintoma patente de desvio de poder.
Ora, em face das competências administrativas do Poder Legislativo, dificilmente a publicação oficial da nomeação ou enquadramento de alguém em cargo público efetivo poderia significar a violação do direito à privacidade de quem quer que seja ou comprometer a segurança nacional ou a ordem pública.
Em rigor, não há dúvida que essa omissão administrativa do Poder Legislativo tem o objetivo concreto de burlar a norma constitucional veiculada pelo art. 37, I a IV, da Constituição Federal, que exige o concurso público para o provimento de cargo público efetivo. Cargo que, recorde-se, assegura ao seu titular a garantia da estabilidade, nos termos do art. 41 da Constituição Federal.
De fato, o art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias beneficiou as pessoas que ocupavam cargos públicos efetivos sem prévio concurso público. Mas não o fez indiscriminadamente, como se constata da leitura de sua redação:
“Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público.
§ 1º O tempo de serviço dos servidores referidos neste artigo será contado como título quando se submeterem a concurso para fins de efetivação, na forma da lei.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica aos ocupantes de cargos, funções e empregos de confiança ou em comissão, nem aos que a lei declare de livre exoneração, cujo tempo de serviço não será computado para os fins do "caput" deste artigo, exceto se se tratar de servidor.
§ 3º O disposto neste artigo não se aplica aos professores de nível superior, nos termos da lei”.
Convém lembrar que o art. 243 da Lei Federal n.º 8.112, de 11 de janeiro de 1990, bem como os dispositivos legais estaduais e municipais que copiaram, são passíveis de serem reconhecidos como inconstitucionais, uma vez que violam frontalmente o art. 19, § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Também convém ressaltar que mesmo as pessoas agraciadas por tal generosidade do Poder Constituinte, não têm o direito ao enquadramento nos cargos resultantes da reestruturação ou criação de carreiras na Administração Pública. A interpretação do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias deve ser interpretado restritivamente uma vez que se trata de exceção clara à norma constitucional que instituiu a obrigatoriedade do concurso público, e a ampliação desarrazoada dos efeitos desse preceito constitucional vai de encontro ao princípio da moralidade administrativa.
Comprovado que a situação jurídica do servidor público não sofre a incidência da norma veiculada pelo art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, nem é compatível com o art. 37, I a IV, da Constituição Federal, como deve ser compreendido o ato de nomeação ou de enquadramento que o beneficiou, e que não observou ainda o princípio da publicidade?
Não se pode negar que o ato em questão exista. Afinal, o servidor público em apreço foi designado para cargo público efetivo ou nele enquadrado, por meio de declaração emitida por autoridade pública. E, não se pode perder de vista que é usado para justificar o pagamento de remuneração a esse agente com recursos públicos.
Quanto à validade, à luz do art. 2º da Lei Federal n.º 4.717, de 29 de junho de 1965, identificam-se as seguintes invalidades nesse ato.
Em primeiro lugar, destaca-se o vício de forma, pois não houve a devida divulgação oficial, em afronta inequívoca ao princípio da publicidade.
Também há inexistência dos motivos, já que não há norma jurídica que lhe dê suporte ou, se ela existe, encontra-se eivada de inconstitucionalidade. Ainda nesse aspecto, registre-se que o agente não foi aprovado em concurso público nem preenche os requisitos especiais do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Por fim, existe o desvio de finalidade. Somente interesse de ordem estritamente privada faria um gestor público expedir tal ato, escondendo-o do público.
Logo, é patente que esse ato jurídico deve ser decretado nulo, seja pela própria Administração do Poder Legislativo, seja pelo Poder Judiciário. A invalidação deve retirar o ato do sistema para que ele deixe de ensejar efeitos jurídicos e materiais futuros, bem como determinar o término do vínculo jurídico entre o Estado e o administrado indevidamente nomeado, ou o retorno o servidor ao cargo de origem em caso de enquadramento.
Já os pagamentos ilícitos feitos antes da invalidação devem ser objeto de ressarcimento pela pessoa que os recebeu, caso não consiga demonstrar que concretamente trabalhou para a Administração do Poder Legislativo. Naturalmente, é importante que os gestores públicos que expediram o ato - ou contribuíram para escondê-lo – sejam condenados a indenizar o Estado, sem prejuízo de sua responsabilização pela prática de ato de improbidade administrativa e de ato ilícito penal.
No que concerne à estabilização, o prazo prescricional de cinco anos previsto para a invalidação judicial deve ser contado a partir da publicação do ato na imprensa oficial. O mesmo raciocínio deve ser aplicado ao prazo decadencial da invalidação administrativa, nos termos da lei de cada ente federativo.
Com a devida vênia, entender que esses prazos de estabilização devem ter outro termo inicial, como a data da emissão do ato, ou a data do início do pagamento viciado, é contemplar o padrinho e o apadrinhado com a total impunidade.