Vladimir da Rocha França (RN)
O Direito Público brasileiro tem, dentre as suas principais premissas, a tese de que houve a aplicação do modelo liberal de Estado e de Direito no Brasil durante a vigência das ordens constitucionais regidas pela Constituição Imperial de 1824 e da Constituição Federal de 1891.
No modelo liberal de Direito, os valores da vida, liberdade e propriedade são fundamentais. É justamente a tutela jurídica desses bens o instrumento indispensável para que todo e qualquer ser humano tenha uma existência digna, uma esfera de direitos intangível pelo Estado e pelos demais membros da sociedade.
Cabe ao Estado liberal assegurar às pessoas a oportunidade de exercer o direito à vida, o direito à liberdade e o direito de propriedade, em toda sua plenitude, conciliando as diversas esferas jurídicas individuais entre si, assim como protegendo-as na forma previamente estabelecida em normas gerais estabelecidas por representantes democraticamente eleitos. Ou seja, sob a forma da lei e em consonância com a ideia de igualdade formal.
O poder estatal deve ser necessariamente limitado pela lei e marcado pela divisão funcional de suas funções jurídicas (legislação, administração e jurisdição). Assim, procura-se prevenir o arbítrio do Estado e legitimar a sua própria existência em face dos direitos individuais.
Em matéria de ordem econômica, o Estado liberal deve se limitar à tutela jurisdicional, confiando na liberdade econômica, na força vinculante dos contratos e na propriedade privada como instrumentos do progresso.
Já na ordem social, o Estado liberal deve prestar serviços de assistência àqueles incapazes para o trabalho ou atuar em situações de calamidade pública, sem prejuízo da segurança pública. Serviços como saúde, educação e previdência social, tal como vistos hodiernamente, são naturalmente assumidos pela iniciativa privada, com cunho lucrativo ou não.
Nesse diapasão, o Estado liberal garante a defesa nacional, a diplomacia, a segurança pública e a jurisdição, tudo na forma da lei. A instituição de limitações jurídico-administrativas à liberdade individual e à propriedade privada somente se justificam na forma da lei, com o escopo de harmonizar as esferas jurídicas individuais no espaço socioeconômico.
Em rigor, não existe um único modelo liberal de Estado e de Direito. A grosso modo, poderíamos identificar três deles: (i) o modelo britânico; (ii) o modelo estadunidense; e, (iii) o modelo francês.
Esses modelos se diferenciam, basicamente, pela relação à aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais, bem como pela estruturação dos Poderes do Estado.
Exposto esse modelo, realmente houve a sua implementação desse modelo de Estado e de Direito no Brasil, em toda a sua história?
Inicialmente, não se deve perder de vista o modelo de Estado e de Direito que vigorou no Brasil durante o seu período colonial.
O Estado português nesse período era basicamente um Estado patrimonialista, e não liberal. No patrimonialismo, não há uma nitidez clara entre o público e o privado, sendo o recurso público visto como um recurso pessoal à plena disposição do governante. Esses recursos públicos são empregados pelo governante para a conquista e consolidação de apoio político.
Outro ponto essencial no patrimonialismo reside no fato de que o governante é visto como sócio obrigatório das principais atividades econômicas existentes na sociedade. Assim, para se desenvolver uma ação lucrativa, demanda-se uma forte intervenção estatal por meio de concessões outorgadas com a finalidade de garantir sustentação política do governante. Sem prejuízo, é claro, da forte tributação para garantir dinheiro para os privilégios, cargos e verbas a serem distribuídos dentre os apaniguados do Poder.
Não se olvide que todo o território brasileiro e seus recursos naturais passaram a integrar o patrimônio do Estado português a partir de 1500 (situação que permaneceu até 1822). As terras eram concedidas aos protegidos do governante. As atividades econômicas somente poderiam ser desempenhadas com a participação obrigatória desse mesmo governante, por aqueles pelos quais tivesse a devida afeição.
Esse modelo patrimonialista foi reproduzido pelas autoridades delegadas da Coroa portuguesa. Estas, por sua vez, passaram a concentrar e exercer prerrogativas similares àquelas do Rei de Portugal na metrópole, naquilo que não contrariasse e não fosse descoberto este soberano.
Se o Brasil Colônia apresentou uma economia mais pujante e rica em comparação com a sua metrópole durante certo tempo, isso ocorreu muito mais pela falta de efetividade das normas intervencionistas portuguesas do que pela sua aplicação. Economia que, aliás, passa a sofrer mais revezes na medida que o interesse da Coroa portuguesa aumenta, por meio da proibição ou do crescente controle das atividades econômicas desenvolvidas na colônia.
Em 1822, quando o Brasil rompeu seus laços políticos com Portugal, os seus pais fundadores, de fato, tinham forte inspiração nos modelos liberais britânico e francês. Aqueles mais simpáticos ao modelo liberal estadunidense – como os que lideraram rebeliões como a Insurreição Pernambucana de 1817 ou a Confederação do Equador em 1824 – não tiveram muito sucesso na composição de nossa primeira Constituição.
Tendo como base as monarquias constitucionais britânica e francesa, a Constituição Imperial de 1824 institui: (i) o Estado unitário, como forma de Estado; (ii) a monarquia como forma de governo; (iii) o parlamentarismo como sistema de governo; (iv) a jurisdição administrativa para o controle dos atos da Administração Pública; e, (v) reconhece os direitos individuais a todos os súditos livres e os direitos políticos àqueles que tivessem um certo e elevado grau de patrimônio.
Entretanto, essa Constituição tinha uma peculiar separação de poderes, que permitia uma forte concentração de prerrogativas nas mãos do Imperador. Ademais, embora ela apresentasse uma forma liberal, a infraestrutura patrimonialista permaneceu. Só que, ao invés do Rei de Portugal, cabia ao Imperador o papel de governante máximo e de sócio obrigatório de tudo o que fosse efetivamente lucrativo. E, recorde-se, a Coroa brasileira tornou-se sucessora natural dos bens e monopólios econômicos que antes integravam a esfera de domínio da Coroa portuguesa.
Alie-se a tudo isso, a aplicação da legislação portuguesa vigente ao tempo da Independência – as Ordenações Filipinas - tanto às relações de Direito Privado como para as relações de Direito Público.
Assim, o empresário brasileiro crescia na medida em que lhe permitia o Imperador ou seus delegados. Títulos nobiliárquicos, todos sem a possibilidade de sucessão hereditária, cargos públicos e concessões eram outorgados graciosamente pelo Imperador, de acordo com o seu juízo de conveniência estritamente política.
Com o golpe de Estado que derrubou o Império, a fonte de inspiração mudou para o modelo liberal estadunidense. Com o Decreto n.º 1 de 15 de novembro de 1889 e a Constituição Federal de 1891, instituiu-se: (i) o Estado federal como forma de Estado; (ii) a república como forma de governo; (iii) o presidencialismo como sistema de governo; e, (iv) o monopólio da jurisdição pelo Poder Judiciário, admitindo-se o controle judicial incidental e difuso de constitucionalidade; e, (v) o reconhecimento dos direitos individuais e políticos para todos os cidadãos.
Embora a Constituição Federal de 1891 tenha preservado formalmente os direitos individuais e ampliado os direitos políticos, a velha estrutura intervencionista e patrimonialista foi essencialmente mantida. O Imperador foi substituído pelo Presidente da República, eleito em eleições pouco “republicanas” dentre a elite que se enriqueceu sob os auspícios do Império deposto. A diferença passou a residir na fixação de mandatos para a Chefia do Poder Executivo e na implantação do coronelismo.
No coronelismo, os velhos instrumentos intervencionistas e patrimonialistas foram adaptados à estrutura de poder decorrente do federalismo. Nesse diapasão, laços foram firmados entre o Presidente da República e os Governadores de Estado, e entre estes os líderes políticos locais (os “coronéis”). Liames estruturados no intercâmbio de verbas, cargos e concessões públicas, destinados à promoção dos protegidos dos governantes e no sufocamento daqueles impelidos para a oposição.
Observe-se ainda que somente em 1916, surge uma legislação civil efetivamente afinada com o modelo liberal de Direito em matéria de contratos e de propriedade. Ou seja, de 1822 a 1916, as relações privadas continuaram regidas por uma legislação civil própria do Estado patrimonialista português.
O fim da chamada República Velha vem com a Revolução de 1930, reflexo da insurgência do empresariado que se sentia desprestigiado e das classes médias que nasceram com a debacle da força econômica dos setores que davam sustentação ao patrimonialismo coronelista.
Em matéria de ordem social, tanto a Constituição Imperial de 1824 como a Constituição Federal de 1891 garantiram o ensino público, mas limitaram o que modernamente se conhece por seguridade social aos serviços de “socorros públicos”, voltados para as vítimas de calamidade pública.
Todavia, no final do século XIX e no início do século XX, várias leis foram editadas no sentido de criar sistemas previdenciários em prol de categorias específicas de trabalhadores. E, sem prejuízo da previdência social assegurada aos agentes públicos pela Constituição Federal de 1891.
É interessante notar que, em rigor, não houve a transição do Estado liberal para o Estado social no Brasil, pelo simples fato de que os direitos individuais assegurados na Constituição Imperial de 1824 e na Constituição Federal de 1891 careciam de efetividade quando confrontados com o intervencionismo patrimonialista do Estado na ordem econômica. E, quando finalmente entrou em vigor o Código Civil de 1916, de perfil econômico liberal, o modelo de Estado e de Direito que serviu de inspiração para as ordens constitucionais citadas se encontrava em profunda crise, agravada pela Primeira Guerra Mundial.
O que, em verdade, ocorreu com o advento da Constituição Federal de 1934, foi essencialmente a legitimação constitucional do intervencionismo estatal que já vinha sendo praticado desde 1500 na ordem econômica, ampliando-o cada vez mais. Também é imperativo destacar a imposição constitucional da intervenção estatal na ordem social, com a inserção dos direitos sociais no rol de direitos fundamentais.
Ao se observar atentamente a própria evolução do catálogo de direitos fundamentais na História do Direito Constitucional brasileiro, constata-se que os direitos sociais foram marcados por uma pujante expansão, sendo ampliados a cada nova ordem constitucional desde 1934. Passou a ser interesse do Estado, democrático ou autoritário, garantir uma rede proteção social mais extensa possível, com o aumento da tributação, das limitações jurídico-administrativas aos direitos individuais e das normas de ordem pública nas relações privadas.
Os direitos individuais e políticos, por sua vez, nascidos em 1822, foram ampliados em 1891, redimensionados em 1934, aterrados em 1937, recuperados em 1946, esvaziados em 1967 e 1969, novamente ressurgindo em 1988.
Getúlio Vargas e os militares jamais se atreveram a promover “retrocessos sociais”, para empregar uma expressão bem ao gosto do senso comum teórico das academias jurídicas brasileiras. O mesmo não pode ser rigorosamente dito quanto aos direitos individuais e políticos, esmagados sem remorso para dar sustentação às respectivas ditaduras.
A impressão que se tem é a de que a doutrina brasileira, ao mimetizar a doutrina estrangeira, importou no pacote um fenômeno jamais visto em nosso País: o Estado liberal em toda sua clássica plenitude.