Vladimir da Rocha França (RN)
Um dos princípios fundamentais do sistema do Direito Positivo é o federalismo. Além de reger a organização político-administrativa do Estado brasileiro, constitui um dos limites materiais ao poder de reforma constitucional, consoante o art. 1º, caput, o Título III, e o art. 60, § 4º, I, todos da Constituição Federal.
É cediço que o federalismo brasileiro tem as especificidades que a Constituição Federal lhe outorga. Não se deve cair na tentação de assumir que certas concepções da Ciência Política como aquelas que são necessariamente positivadas no Direito posto. O mesmo vale para a importação ingênuas de modelos jurídicos estrangeiros.
No federalismo brasileiro, há quatro espécies de entes político-administrativos, tendo cada um deles sua esfera de competências legislativas e administrativas demarcada pela própria Constituição Federal. São eles: (i) a União; (ii) os Estados-membros; (iii) o Distrito Federal; e (iv) os Municípios.
Recorde-se que, por injunção do princípio da isonomia, não existe hierarquia entre eles. Cada ente político-administrativo tem personalidade jurídica de Direito Público interno e, como já dito, sua própria esfera constitucional de competências. Caso um deles queira tratar de matéria constitucionalmente designada para outro, a lei ou ato administrativo que este expedir padecerá de nulidade.
Um dos critérios previstos na Constituição Federal para o reconhecimento da esfera constitucional de competências do Município consubstancia-se no conceito de interesse local. Observe-se o disposto no art. 30, I e V, da Constituição Federal:
“Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
(...)
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.
Enquanto conceito jurídico fluido, o conceito de interesse local se apresenta muito vago, fato que permite o acolhimento dos mais diversos interesses e serviços públicos. Contudo, sua ambiguidade deve ser reduzida ao máximo possível por meio de uma interpretação sistemática, que leve em consideração as dimensões axiológica, fática e normativa do sistema do Direito Positivo.
Recorde-se que a técnica dos conceitos jurídicos fluidos viabiliza a adaptação da norma jurídica à realidade e às transformações sociais, econômicas e culturais da sociedade.
Os interesses são fins ou valores fixados pelos indivíduos que demandam, para a sua satisfação, alguma conduta humana. Quando são compartilhados pelos indivíduos enquanto membros de uma sociedade, num dado espaço e num dado tempo social, e delineados pelos princípios jurídicos vigentes, está-se diante de interesses públicos.
Para fins de competência constitucional, o interesse local consiste no interesse público local, aquele que diz predominantemente respeito aos indivíduos que residem nos limites do Município ou que neles têm negócios jurídicos, enquanto sujeitos à ordem jurídica municipal. A classificação do serviço público como de interesse local deve seguir naturalmente esse parâmetro.
É interessante anotar que dificilmente se encontra um interesse público que não esteja expressa ou implicitamente fixado, ainda que de modo inicial, pela própria Constituição Federal. Em rigor, o interesse público local constitucionalmente determinado, cuja densificação legislativa e concretização administrativa pressupõe predominantemente a atuação do Poder Público do Município.
Nesse diapasão, não há sentido em se reconhecer de interesse público local, serviços públicos que exorbitem a esfera socioeconômica do Município e que demandam uma gestão integrada com a participação do Poder Público do Estado-membro. Como entender de competência municipal, os serviços públicos de saneamento básico em áreas densamente urbanizadas? Ou então serviços públicos concedidos de transporte público cuja prestação é economicamente inviável caso o Município seja o Poder Concedente?
Esse fato é agravado pela manifesta inviabilidade econômica e financeira da maioria dos Municípios brasileiros, criados apenas para dar sustentação a projetos patrimonialistas de poder dos grupos políticos que lutaram para a sua criação e suposto fortalecimento. Praticamente entes parasitários no sistema de repartição de receitas tributárias, que pioram ainda mais o déficit fiscal dos Municípios que merecem efetivamente existir. Aliás, como já dissemos em outra oportunidade, o municipalismo é a doença infantil do federalismo brasileiro.
Para a racionalização dos serviços públicos, a Constituição Federal prevê instrumentos que poderiam ser melhor empregados para tanto. Mas que melhor funcionariam caso o interesse público deixasse de ser considerado local para ser reconhecido como predominantemente estadual.
Há mecanismos como a região metropolitana, a aglomeração urbana e a microrregião, que podem ser instituídos por meio de lei complementar estadual para a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum a Municípios limítrofes, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal.
Também não se deve esquecer a gestão associada de serviços públicos, prevista no art. 241 da Constituição Federal e disciplinada pela Lei Federal nº 11.107, de 6 de abril de 2005 (“Dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá outras providências”).
Por que não começarmos a pensar a matéria sob uma perspectiva, digamos, “estadualista”?