Vladimir da Rocha França (RN)
Com a entrada em vigor da Lei Federal nº 13.979, de 13 de janeiro de 2020, a Administração Pública de todos os entes federativos passaram a expedir atos jurídicos normativos infralegais com a finalidade de restringir o exercício do direito fundamental constante do art. 5º, XVI, da Constituição Federal: o direito de reunião pacífica.
O pressuposto de fato básico desses atos é justamente a pandemia decorrente da propagação do chamado vírus COVID/19 (“coronavírus”) por todo o globo terrestre, cumulada com a urgente necessidade de se restringir a aglomeração de pessoas em espaços abertos ao público, sejam eles estatais, sejam eles privados.
Aparentemente, as seguintes normas constitucionais e legais dariam amparo jurídico a tais providências normativas:
(i) a que trata da competência comum da União, dos Estados-membros, dos Municípios, do Distrito Federal e do Distrito Federal, para “cuidar da saúde”, prevista no art. 23, II, da Constituição Federal;
(ii) a que prescreve a competência legislativa concorrente da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal, em matéria de “defesa da saúde”, conforme o art. 24, XII, da Constituição Federal;
(iii) as que dispõem sobre as competências legislativas do Município sobre assuntos de “interesse local” e as suplementares à legislação federal e estadual, nos termos do art. 30, I e II, da Constituição Federal;
(iv) a que disciplina a competência regulamentar do Chefe do Poder Executivo, veiculada pelo art. 84, IV e VI, da Constituição Federal, e que deve ser reproduzida no plano estadual, distrital e municipal por simetria constitucional;
(v) as que regem as competências normativas dos Ministros de Estado e dos Secretários Estaduais, Distrital e Municipais de saúde, ao se examinar em conjunto o art. 87, parágrafo único, I e II, da Constituição Federal, com o art. 1º, o art. 2º, o art. 3º, o art. 7º e o art. 8º, todos da Lei Federal nº 13.979/2020.
Entretanto, ao se examinar o enunciado do art. 5º, XVI, verifica-se no suporte fático delineado na norma jurídica que ele veicula, os seguintes elementos constitutivos:
(i) a aglomeração temporária de mais de duas pessoas naturais em local aberto ao público, seja ele estatal, seja ele privado;
(ii) o caráter pacífico e desarmado da reunião;
(iii) a ausência de outra reunião previamente agendada para o local em apreço;
(iv) o prévio aviso à autoridade estadual ou distrital competente em matéria de segurança pública, haja vista o disposto no art. 144, V, e § 5º, da Constituição Federal;
(v) o prévio aviso às autoridades estadual (ou distrital) e municipal competentes na área da segurança viária, em virtude do art. 30, art. 144, § 10.
Se todos esses elementos estiverem presentes no caso concreto, a referida norma constitucional incide, o suporte fático se mostra suficiente e eficiente para o surgimento do fato jurídico tem, por sua vez, a eclosão dos seguintes direitos subjetivos:
(i) o direito subjetivo dos organizadores da reunião e a convocarem e a realizarem;
(ii) o direito subjetivo das demais pessoas de aderirem à reunião, nas condições comunicadas às autoridades estatais já mencionadas.
Nessa relação jurídica, o sujeito passivo é o Estado, em todas as suas faces estabelecidas pelos princípios da separação dos poderes (art. 2º da Constituição Federal) e federativo (art. 1º, caput, e arts. 18 e 19, todos da Lei Maior).
É importante salientar que o conteúdo do que será expresso durante a reunião não poderá ser objeto de constrição estatal, haja vista a vedação constitucional à censura, consagrada no art. 5º, IX, §2º, e art. 220, § 2º, todos da Constituição Federal.
Pode-se discutir se a Administração Pública teria o dever jurídico de proibir a manifestação coletiva, com amparo no art. 3º, IV e no art. 5º, XLIII, ambos da Constituição Federal, e no art. 20 da Lei Federal nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, ou nos arts. 286 e 287 do Código Penal. Se a reunião tiver por objetivo questionar a vigência de leis ou atos jurídicos normativos que estejam em vigor, não se vê como se justificaria constitucionalmente tal vedação administrativa.
Alguns aspectos, usualmente ignorados, devem ser lembrados no exercício do direito de reunião pacífica.
A reunião deve ser temporária, não se admitindo que ela permaneça indefinidamente no local onde ocorrerá. Notadamente, quando se trata de bem público, independentemente de sua natureza (arts. 98 e 99 do Código Civil).
Como marco temporal razoável, deve-se entender que o tempo da reunião não pode ser superior a vinte e quatro horas.
Também se mostra imprescindível que haja a comunicação prévia às autoridades estatais acima referidas. Isso se justifica para a preservação da ordem pública e a harmonização do direito de reunião pacífica com os direitos fundamentais das pessoas naturais que optaram por não aderir ao chamado dos organizadores da manifestação coletiva em apreço.
E, acrescente-se, a reunião deve transcorrer de acordo com o que foi comunicado à autoridade estatal competente.
Pensar o contrário, com a devida vênia, é corroborar o abuso de direito, ato ilícito previsto no art. 187 do Código Civil.
Decretado o estado de defesa, pode haver o estabelecimento de restrições ao direito de reunião pacífica, ainda que exercido no seio de associações, consoante o art. 136, §1º, da Constituição Federal.
E, o direito de reunião pacífica pode ser suspenso por injunção de decreto de estado de sítio, nos termos do art. 139, IV, da Constituição Federal.
Feitas essas considerações, teria a autoridade administrativa, seja ela de que nível federativo ou hierárquico, impedir a realização da reunião pacífica em face do interesse público da defesa da saúde, no contexto da pandemia atual?
Naturalmente, se a reunião convocada não observar os requisitos previstos no art. 5º, XVI, da Constituição Federal, a Administração Pública tem o dever jurídico de impedir que a mesma ocorra, para preservar a ordem e a segurança públicas ou a segurança viária. Se ela estiver ocorrendo, autoridade estadual ou distrital competente deve determinar a sua dispersão, observado o princípio da proporcionalidade.
Nesse ponto, a legislação disponível antes da entrada em vigor da Lei Federal nº 13.979/2020 e dos atos jurídicos normativos nela embasados já disponibiliza todos os instrumentos necessários para a atuação da Administração Pública.
E, se a reunião convocada preencher integralmente todos esses requisitos, ainda assim é lícito à Administração Pública proibir a sua realização com amparo nessa legislação excepcional?
Salta aos olhos que a Constituição Federal estabelece expressamente as hipóteses nas quais se admite o estabelecimento de restrições adicionais ao direito de reunião pacífica, bem como a própria suspensão desse direito fundamental.
Nesse diapasão, a lei não poderia determinar restrição ou suspensão do direito fundamental de reunião pacífica, sob pena de inconstitucionalidade. Mostra-se imperativa a decretação de estado de defesa para o estabelecimento das referidas restrições, e de estado de sítio para a suspensão em questão.
Logo, os atos jurídicos administrativos normativos que têm determinado a suspensão do direito de reunião pacífica são passíveis de serem reconhecidos como inconstitucionais. Ainda nesse ponto, os atos jurídicos administrativos em sentido estrito e negócios jurídicos administrativos fundados naqueles são passíveis de invalidação, por vício quanto ao motivo.
Poder-se-ia arguir a possibilidade da proibição administrativa à reunião pacífica, para prevenir a prática do crime previsto no art. 268 do Código Penal. Mas mesmo as medidas sanitárias emergenciais devem ser compatíveis com os direitos fundamentais individuais, sob pena de se abrir largo espaço para arbitrariedade estatal.
Se há a necessidade de se restringir ou suspender direito fundamental de reunião pacífica em razão da defesa da saúde pública, cabe ao Estado decretar o estado de defesa ou o estado de sítio, conforme o caso.
De todo modo, ainda que se admita a validade constitucional desses atos jurídicos administrativos normativos, deve-se ponderar até que ponto se pode impedir a realização de reuniões pacíficas em bens privados abertos ao público. Especialmente, quando elas têm cunho religioso.
O que o Estado tem legitimidade para impedir seria a adesão e participação das pessoas que devem ser atingidas pelas medidas de isolamento e de quarentena, prescritas nos arts. 2º e 3º, I e II, e §4º, ambos da Lei Federal nº 13.979/2020, e elucidadas pela Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020, expedida pelo Ministério de Estado de Justiça e Segurança Pública e pelo Ministério de Estado da Saúde. Resta saber que forma de controle poderia ser estabelecido para se atingir tal finalidade com eficiência administrativa.
Finalmente, assevere-se que a Lei Federal nº 13.979/2020 não trata expressamente do direito de reunião pacífica. E, recorde-se o que consta de seu art. 3º, § 2º:
“Art. 3º (...)
§ 2º Ficam assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo:
I - o direito de serem informadas permanentemente sobre o seu estado de saúde e a assistência à família conforme regulamento;
II - o direito de receberem tratamento gratuito;
III - o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020”.
O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado não tem força normativa para se instituir atalhos legislativos ou infralegislativos ao arrepio dos direitos fundamentais individuais. Por melhor que seja causa.
Senão, estar-se-á criando perigosos precedentes nas relações entre o Estado-administração e os administrados no Brasil.