Vladimir da Rocha França (RN)
Consoante o art. 207, caput, da Constituição Federal, as universidades federais gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Essa garantia institucional também é reconhecida para as “instituições de pesquisa científica e tecnológica” da União, nos termos do § 1º do art. 207 do texto constitucional.
Ao se examinar os arts. 43 a 57 da Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que disciplina a educação superior no Brasil, deve-se concluir que as universidades federais devem necessariamente adotar o modelo jurídico de autarquia. As características básicas desse modelo jurídico estão de algum modo sintetizadas no art. 5º, I, do Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, malgrado as críticas que se possa fazer à redação desse enunciado legal.
Como toda pessoa jurídica de Direito Público da Administração Indireta, a universidade federal está sujeita integralmente ao modelo jurídico constitucional prescrito nos arts. 37 a 41 da Constituição Federal.
Nesse diapasão, convém lembrar que a soberania é atributo da República Federativa do Brasil, não servindo a autonomia autárquica, ainda que se trate de uma universidade pública, como um feixe de competências ilimitadas em face do princípio da legalidade e do modelo jurídico constitucional de Administração Pública. Nesse modelo jurídico no âmbito da União, reconhece-se à Administração Direta (Presidência da República e Ministérios de Estado) a competência de controlar a Administração Indireta (as pessoas jurídicas mencionadas no art. 37, XIX, da Constituição Federal, no art. 5º do Decreto-lei nº 200/1967, e no art. 41, IV e V, do Código Civil), com a finalidade máxima de harmonizar a atuação administrativa com a juridicidade, as políticas públicas vigentes e as prioridades que o povo elegeu ao escolher o titular do Poder Executivo Federal.
Esse controle é tradicionalmente conhecido como tutela administrativa ou supervisão ministerial, quando se trata da organização administrativa brasileira. No caso da universidade federal, a tutela administrativa compete ao Ministro de Estado da Educação, haja vista o art. 33 da Lei Federal nº 13.844, de 18 de junho de 2019, sem prejuízo do disposto no Decreto-lei nº 200/1967.
Por injunção do princípio da legalidade administrativa, as universidades federais somente estão autorizadas a fazer aquilo que a lei expressa ou implicitamente lhes permitir, sem prejuízo dos deveres jurídicos que a mesma lhes impõe. No processo legislativo brasileiro, as medidas provisórias são leis, ainda que sejam expedidas pelo Presidente da República em situações (que deveriam ser) excepcionais, nos termos do art. 59, V, do art. 62, e do art. 84, XXVI, todos da Constituição Federal.
Portanto, se a medida provisória é válida, a universidade federal deve observá-la ou aplicá-la fielmente quando as normas que ela veicular incidirem na sua estrutura e atividades institucionais. E assim deve ser enquanto aquele ato jurídico legislativo não for revogado, rejeitado pelo Congresso Nacional ou julgado inválido pelo órgão jurisdicional competente em sede de controle principal e concentrado de constitucionalidade.
Também não se deve perder de vista que compete ao Presidente da República exercer a direção superior da Administração Pública Federal com auxílio dos Ministros de Estado, bem como prover os cargos públicos nas universidades federais, à luz o art. 84, II e XXV, da Constituição Federal. No âmbito da universidade federal, essa competência também abarca as funções públicas constantes do art. 37, V, do texto constitucional, cujo acesso é restrito justamente a servidores públicos federais titulares de cargo público efetivo que preencham os requisitos legais para exercê-las.
Observe-se ainda que a competência para o provimento desses cargos pode ser delegada ao Ministro de Estado, conforme o art. 84, parágrafo único, da Lei Maior. E este, poderá, por sua vez, delegá-la ao dirigente máximo da universidade federal, observados os arts. 11 a 14 da Lei Federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
Ademais, os atos jurídicos administrativos normativos editados pela Presidência da República, bem como aqueles expedidos pelos Ministérios de Estado, devem também ser observados ou aplicados pelas universidades federais. É o que se depreende da análise do art. 84, I, II, IV e VI, e do art. 87, parágrafo único, I e II, ambos da Constituição Federal, e do art. 2º, parágrafo único, I, da Lei Federal nº 9.784/1999.
Caso o referido ato jurídico normativo seja revogado ou invalidado, aí sim a universidade federal fica livre da obrigatoriedade de cumpri-lo.
Com efeito, as universidades federais devem observar a norma da gestão democrática do ensino público na forma da lei, conforme o art. 206, IV, da Constituição Federal, e reiterado pelo art. 56 da Lei Federal nº 9.394/1996. E, como a lei determina que os seus dirigentes devem ser escolhidos por meio de eleição, cabe ao Ministério de Estado da Educação zelar pelo seu cumprimento, tendo-se em vista o art. 26, parágrafo único, “a”, do Decreto-lei nº 200/1967.
Em rigor, o que a norma da gestão democrática do ensino público impõe é que se assegure a representação de todos os membros da comunidade universitária nos órgãos colegiados deliberativos, de acordo com os atos jurídicos administrativos normativos editados pela própria universidade federal, e que estão amparados no art. 56 da Lei Federal nº 9.394/1996.
A norma constitucional em apreço também atinge a escolha daqueles que devem exercer as funções de chefia e direção na universidade federal, notadamente em face do art. 37, V, da Constituição Federal, servindo o processo democrático como redutor do espaço de discricionariedade administrativa em matéria de nomeação do Reitor. Mas não a ponto de eliminar por completo a competência do Reitor de escolher livremente seus auxiliares diretos, sob pena de se esvaziar por completo sua autoridade e tornar completamente sem sentido a sua própria função pública.
De todo modo, a lei pode reduzir, mas jamais eliminar a discricionariedade administrativa na escolha dessas funções públicas, sob pena de se usurpar competência constitucional da Presidência da República. Mas nada impede que a lei reduza as opções de escolha da Presidência da República para a função de Reitor de universidade federal, podendo a autoridade competente apenas nomear um daqueles que componha a lista que lhe tenha sido encaminhada pela comunidade universitária, após o devido processo eleitoral.
Atualmente, o processo de nomeação para as referidas funções públicas nas universidades federais se encontra disciplinada no art. 16 da Lei Federal nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, regulamentado pelo Decreto Federal nº 1.916, de 23 de maio de 1996. Nesse modelo jurídico, determina-se que o Reitor de universidade federal deve ser obrigatoriamente escolhido dentre os nomes que compuserem lista tríplice encaminhada pela entidade, após processo democrático na comunidade universitária. Não se verifica aqui qualquer inconstitucionalidade nesse complexo normativo.
Evidentemente, se houver alguma proibição legal que impeça a nomeação de todos os componentes da lista tríplice, a Presidência da República deve recusá-la, cabendo à universidade federal realizar novo processo eleitoral. Sem prejuízo, enfatize-se, da nomeação de Reitor pro tempore, nos termos do art. 7º do Decreto Federal nº 1.916/1996.
Tentou-se revogar tal modelo jurídico por meio da Medida Provisória nº 914, de 24 de dezembro de 2019, mas ela teve a sua vigência encerrada em 1º de junho de 2020, nos termos do art. 62, § 3º, da Constituição Federal.
Recentemente, houve a edição da Medida Provisória nº 979, de 9 de junho de 2020, que autoriza o Ministério da Educação a nomear pro tempore o Reitor de universidade federal cujo mandato se encerre durante emergência pública sanitária que justificou a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, não havendo processo eleitoral concluído antes da suspensão das aulas presenciais em razão da Pandemia COVID-19.
No mesmo ato jurídico legislativo, proíbe-se a realização do processo eleitoral previsto no art. 16 da Lei Federal nº 5.540/1968 durante o período de emergência pública sanitária decorrente da Pandemia COVID/19.
Embora a Medida Provisória nº 979/2020 aparentemente atenda aos requisitos da relevância e da urgência, há invalidade quanto ao seu objeto. Mas não por afronta ao art. 207 da Constituição Federal, com a devida vênia.
Inicialmente, destaque-se que a Medida Provisória nº 979/2020 esvazia de modo paradoxal a competência privativa do Presidente da República para prover a função pública de Reitor, ao outorgá-la diretamente ao Ministro de Estado da Educação. A delegação de competência administrativa deve ser realizada por ato jurídico administrativo, e não por ato jurídico legislativo.
Não se pode olvidar que a medida provisória é ato jurídico legislativo de competência privativa do Presidente da República, mas que precisa ser convertido em lei ordinária para que as normas que ela veicula sejam estabilizadas no sistema do Direito Positivo.
Esse ato jurídico legislativo também fere os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, haja vista o art. 7º do Decreto Federal nº 1.916/1996 já instrumentalizar de modo congruente e adequado a Presidência da República diante da impossibilidade material de se dar cumprimento ao art. 16 da Lei Federal nº 5.540/1968. De todo modo, entende-se aqui que a nomeação pro tempore prevista nesse dispositivo regulamentar deve ser fundamentada, por força do art. 50, I, da Lei Federal nº 9.784/1999.
Ainda sob a óptica da princípio da proporcionalidade, não se justifica a proibição abrupta da realização do processo eleitoral previsto no art. 16 da Lei Federal nº 5.540/1968 sem se levar em consideração a situação de cada universidade federal.
Por conseguinte, não há como se aceitar a constitucionalidade da Medida Provisória nº 979/2020, nem qualquer outro ato jurídico normativo que tenha por escopo inutilizar, consciente ou inconscientemente, a norma da gestão democrática do ensino público.