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A imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento do dano na Lei de Improbidade Administrativa

ANO 2018 NUM 411
Vladimir Aras (DF)
Professor de Processo Penal (UFBA) e de Direito Penal (IDP), Mestre em Direito Público (UFPE), MBA em Gestão Pública (FGV), membro do Ministério Público brasileiro desde 1993, atualmente no cargo de Procurador Regional da República em Brasília.


21/08/2018 | 4760 pessoas já leram esta coluna. | 25 usuário(s) ON-line nesta página

Introdução

No julgamento do RE 852.475 RG / SP, interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, o STF, decidindo por apertada maioria, manteve a integridade do §5º do art. 37 da Constituição.

Para o recorrente, o Tribunal de Justiça de São Paulo ofendera esse dispositivo originário do texto de 1988, pois, segundo a Promotoria, “mesmo que se considerassem prescritas as penas previstas na Lei n. 8.429/92, esta prescrição não alcançaria a penalidade (...) de ressarcimento do erário”.

Argumentou ainda o Parquet paulista que o art. 37, § 5º “contém dois comandos: o primeiro, da prescritibilidade dos ilícitos administrativos praticados por qualquer agente público, segundo dispuser a lei, e o segundo, o da imprescritibilidade das ações de ressarcimento, não podendo a lei, obviamente, dispor em contrário”.

A Constituição de 1988 claramente previu a imprescritibilidade das ações de ressarcimento em caso de improbidade administrativa. 

No RE 852.475 RG / SP (Tema 897), o STF parecia caminhar para afastar a imprescritibilidade e aproximar o prazo prescricional da ação cível do prazo prescricional das ações penais correspondentes. Via de regra um ato de improbidade administrativa é também um ilícito penal. Nada a objetar que assim seja para estipular um limitador temporal paras as sanções do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), entre as quais estão a suspensão dos direitos políticos, a multa e a perda do cargo. Porém, a obrigação de ressarcimento é coisa diversa, não é pena, não se sujeitando a esses prazos.

A regra do art. 37, §5º da CF é clara, diria aquele juiz. A parte final do parágrafo diz muito e não poderia ser extirpada, como se pretendia:

“§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”

Quando adotada em recurso extraordinário com repercussão geral, a decisão final do STF tem efeito vinculante. A alteração dessa regra trintenária atingiria todas as ações cíveis de ressarcimento baseadas na LIA, em tramitação no País, seja na Justiça dos Estados ou na Justiça Federal. Seria lei nova.

Os respeitáveis juízes do STF não são eleitos, têm cargos vitalícios e não respondem a ninguém. Por isso mesmo, deveriam ser mais comedidos no julgar e deveriam mais respeitar a vontade da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e o espírito deste tempo, que é intolerante com agentes públicos ímprobos e pessoas jurídicas corruptoras. Não se deveriam deixar levar por esse constante ativismo judicial, que, como temos visto também em matéria penal, tem conduzido a inovações quase sempre para pior. E com convicção!  

Antecedentes da tese

O ataque processual ao §5º do art. 37 da Constituição estava no horizonte de quem acompanha a pauta do STF. Em 2016, ao julgar um recurso extraordinário oriundo de Minas Gerais (STF, Pleno, RE 669.069 RG /MG, rel. Min. Teori Zavascki, j. em 03/02/2016), a Suprema Corte, por maioria, apreciando o tema 666 da repercussão geral, negou provimento ao recurso e fixou a tese de que “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”.

O tema 666 dizia respeito à “imprescritibilidade das ações de ressarcimento por danos causados ao erário, ainda que o prejuízo não decorra de ato de improbidade administrativa.”

Nos embargos de declaração que opôs, a Procuradoria-Geral da República tentou obter decisão que deixasse claro que as ações ressarcitórias que decorrem de atos de improbidade ou de ilícitos penais não haviam sido alcançadas pela tese 666 do acórdão proferido no RE 669.069 RG / MG.

Ou seja, a PGR pretendia deixar clara a prescritibilidade da ação cível relativa a atos ilícitos em geral, mas não da pretensão vinculada a atos de improbidade administrativa a que alude o §5º do art. 37. Na ocasião, os ministros do STF restringiram a discussão no RE 669.069 RG / MG à prescritibilidade das ações sobre ilícitos civis “de direito privado”.

Como consta do voto do ministro Zavascki, sua intenção era fazer valer a seguinte tese:

“A imprescritibilidade a que se refere o art. 37, §5º, da CF diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos ao erário decorrentes de atos praticados por qualquer agente, servidor ou não, tipificados como ilícitos de improbidade administrativa ou como ilícitos penais”.

No entanto, Zavascki ficou vencido e prevaleceu a posição do ministro Luiz Roberto Barroso, e a tese da repercussão geral do RE 669.069/MG foi assim redigida: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil".

Nos casos de ilícito civil em geral, o prazo prescricional é de 5 anos, conforme o art. 1º do Decreto 20.910/1932. Neste quadro limitado, era a adequada solução, à luz da legislação dos anos 1930, para resolver as questões da tutela patrimonial da Administração Pública, quando levada por atos ilícitos de “direito privado”.

O recurso extraordinário do MP paulista

O tema 887 da repercussão geral no RE 852.475 RG / SP ia além desse debate e pretendia fixar a “prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos por ato de improbidade administrativa”. Dizia respeito, portanto, a atos ilícitos “de direito público”, ainda que praticados por particulares ou pessoas jurídicas privadas.

Ao final, seis dos onze ministros se posicionaram pela imprescritibilidade dessa espécie de ação de improbidade residual, sendo afastadas as teses da prescrição quinquenal e da prescrição regida pela lei penal.

Não havia razão constitucional ou legal que permitisse estender o raciocínio da tese 666 à prescrição da ação civil de improbidade administrativa (residual), que é aquela que busca apenas afirmar a obrigação de reparar o dano causado ao erário como consequência do ato ímprobo. Dever de reparação não é pena. Portanto, não se sujeita ao seu tratamento.

Tampouco fazia sentido regular, ainda mais por via judicial, a prescrição de uma ação cível meramente ressarcitória, sujeitando-a a prazos do direito penal (punitivo). A obrigação reparatória, embora decorrente do ato ilícito (criminal ou não), não é sanção penal. O dever de reparar o dano tem tratamento específico no Código Penal como efeito automático da condenação (art. 91, inciso I). Na legislação civil e processual civil, é consequência direta do ato ilícito (art. 186 do CC) e da cláusula neminem laedere.

De fato, foge à competência do STF legislar “positivamente” contra o texto expresso do art. 37, §5º da CF e de sua lógica intrínseca, para, a pretexto de dar segurança jurídica a quem lesou os cofres públicos, estipular prazo para as ações de ressarcimento específicas da LIA, sem lei.

O sistema brasileiro anticorrupção, cuja construção nos últimos anos segue mais ou menos bem graças a uma série de leis aprovadas pelo Poder Legislativo, sofreria duro golpe se a prescritibilidade vingasse.

A imprescritibilidade da ação de ressarcimento no sistema anticorrupção

Felizmente, consumado o julgamento do RE 852.475 RG / SP em agosto de 2018, a ação civil para a reparação do dano ao erário continua imprescritível, o que tem um significado muito importante para além dos casos judicializados, e que não são poucos, sobretudo nos milhares de municípios do País. Centenas de milhões de reais podem ser cobrados de agentes públicos ímprobos e de empresas corruptoras, que lesaram o erário.

Decisão pela prescritibilidade sinalizaria para os agentes públicos ímprobos e empresas corruptoras que o tempo sana tudo, não só as sanções stricto sensu da Lei de Improbidade Administrativa. Com isso, a percepção de risco judicial (para o negócio ou a negociata) se reduziria, e, em consequência, diminuiria a propensão dos autores de ilícitos à autocontenção e à formalização de ajustes em leniência e em colaboração premiada. Escassearia também o conjunto de incentivos à adoção de condutas éticas por agentes públicos e atores do mercado, afrouxando-se a lógica da conformidade (compliance), que ainda deve se consolidar no Brasil.

A equação é simples. Se os riscos de natureza corporativa, profissional, pessoal, comercial ou reputacional sofrem incremento, valem a pena a colaboração com o Estado e as saídas negociadas (negotiated settlement). Se não há riscos judiciais ou se estes são baixos, a persuasão à compliance se rarefaz. Do mesmo modo, a atmosfera de impunidade se adensa, e os agentes ímprobos e corruptores ganham fôlego para montarem novos esquemas em detrimento do erário.

A decisão que se desenhava no plenário do STF era, por isto, um nudge às avessas, uma peça de arquitetura jurídica capaz de motivar negativamente o comportamento dos agentes públicos, dos agentes do mercado e também das partes da relação processual. Em lugar de convidá-los a ações positivas de transparência e integridade, a decisão da Corte pela prescritibilidade da ação cível de ressarcimento desencorajaria aquele que, de outro modo, poderia sentir-se estimulado a colaborar e o convocaria a acomodar-se. Seria uma cotovelada que reprimiria posturas positivas no mercado e na governança pública, e mais um empurrãozinho ladeira abaixo nos esforços nacionais por probidade. 

O recurso, contudo, foi provido em parte e o art. 37, §5º, permaneceu íntegro no que realmente importa.

Os ministros da Suprema Corte sabem que o lema primordial na luta contra a corrupção é a privação do proveito do ilícito (seja civil ou penal) associado à reparação integral do dano causado às vítimas. O ilícito não pode compensar. Por isso, o Ministério Público e os demais legitimados devem sempre realizar investigações patrimoniais competentes para assegurar a recuperação doméstica e a repatriação de ativos, promover as reparações devidas e obter o confisco do lucro criminoso.

A ação cível, sine die, que põe em marcha o dever de reparar o dano causado ao tesouro público por um ato de improbidade é um componente fundamental dessa estratégia universalmente consagrada e também do regime de sanções em sentido lato, decorrentes da conduta ímproba. Serve ademais como um fator crucial para desencorajar o enriquecimento ilícito ou suprimi-lo.

Não por outro motivo, a reparação integral do dano é inegociável, mesmo no âmbito dos acordos de leniência da Lei Anticorrupção Empresarial (art. 16, §3º, da Lei 12.846/2013). E é inegociável porque o ilícito não pode gerar proveito indevido, direto ou indireto, que fique imune ao confisco (disgorgement), nem ser perdoado sem depuração do prejuízo causado à Administração Pública, isto é, à sociedade como um todo.

A Suprema Corte não se anestesiou. Exerceu juízo crítico coletivo sobre seu papel de órgão responsável por legitimar em última instância os deveres de probidade e integridade que o texto de 1988 impôs a todos os agentes públicos, cuja executoriedade a sociedade reclama, e que ao Tribunal cabe fazer valer.

A prescritibilidade da ação de ressarcimento no direito comparado

Há quem diga que a imprescritibilidade da ação de ressarcimento de dano causado por ato ímprobo (doloso) de improbidade administrativa ofenderia a segurança jurídica.

Embora não tenha visto esse argumento na doutrina brasileira, pontuo que, de fato, no contexto do Conselho da Europa, as ações de ressarcimento são prescritíveis. Conforme o art. 7º da Convenção Civil contra a Corrupção (ETS 174), concluída em Estrasburgo em 1999, a ação de ressarcimento é prescritível e esse prazo não pode ser inferior a 3 anos, contados da data ciência do fato e da autoria. Contudo, tal prazo prescricional não deve ser superior a 10 anos:

Article 7 – Délais

1Chaque Partie prévoit dans son droit interne que l'action en réparation du dommage se prescrit à l'expiration d'un délai d'au moins trois ans à compter du jour où la personne qui a subi un dommage a eu connaissance ou aurait dû raisonnablement avoir connaissance du dommage ou de l'acte de corruption, et de l'identité de la personne responsable. Néanmoins, cette action ne pourra plus être exercée après l'expiration d'un délai d'au moins dix ans à compter de la date à laquelle l'acte de corruption a été commis.

Porém, mesmo com essa nota de direito comparado, a questão é que a Constituição brasileira, inserida numa realidade jurídica de espoliação secular dos tesouros públicos, preferiu solução mais rigorosa. Quis que a ação fosse imprescritível e o fez expressamente no §5º do art. 37.

Por isso, ainda que se admita, somente para argumentar, que assim fosse, jamais caberia ao STF alterar o sentido e o alcance da norma constitucional, porque não há como dá-la como incompatível com o texto de 1988 nem com qualquer de seus preceitos fundamentais, entre os quais está, evidentemente, a defesa da probidade administrativa.

O resultado do julgamento do recurso extraordinário

A decisão que se avizinhava no tema 897 não atendia ao interesse público e só beneficiaria delinquentes e agentes ímprobos. O “crime” compensaria, seria a mensagem ouvida, um péssimo nudge no campo anticorrupção.

Naturalmente, os ministros do STF podiam, como podem, escolher a orientação doutrinária ou judicial que quiserem, no exercício do tão propalado e criticável “livre conhecimento”. Vide Streck, entre outros. Porém, ao cumprirem o papel de “guardiães da Constituição”, os juízes da Suprema Corte devem observar o espírito vivo da Carta de 1988, a mesma que os empodera, para corretamente interpretá-la, mas jamais para deturpá-la.

Embora mereça correções – que estão sendo gestadas no foro apropriado – a Lei de Improbidade Administrativa de 1992 é elogiada em todo o mundo, especialmente por ser uma peculiar ferramenta de atuação do Ministério Público na tutela anticorrupção, fora do campo penal. A conjugação de instrumentos cíveis e penais para a luta contra a desonestidade na gestão pública é uma boa prática internacional que o Brasil tem aplicado com eficiência em diversos momentos e que já foi testada com sucesso.

Diferentemente do que se alegava, o regime de imprescritibilidade da pretensão de reparação não traz insegurança jurídica alguma para o autor do ato ilícito, seja ele pessoa física ou jurídica. Para que a ação de ressarcimento por ato de improbidade administrativa “residual” seja viável e livre de marcos temporais, o Ministério Público e os demais legitimados têm de demonstrar a ocorrência do ato de improbidade, em concreto, ainda que essa prova não possa mais suscitar a aplicação das sanções do art. 12 da LIA, porque, estas sim, atingidas pela prescrição.

Permance hígido apenas o dever de reparar o dano, que não desaparece pelo decurso do tempo, desde que os legitimados para a ação cível demonstrem o seu pressuposto: a ocorrência de um ato ímprobo doloso, uma vez que, por 6 votos a 5, o STF manteve a imprescritibilidade das ações cíveis de ressarcimanento por ato doloso de improbidade, tornando prescritível a ação relativa a conduta culposa.

Conclusão

É de se celebrar que resultado favorável do julgamento do RE 852.475 RG / SP. Não se afrouxou a proteção do interesse público e sobretudo do erário; não foi minado o direito do povo a um governo honesto; enfim, não foram alargados os ralos por onde escorre o dinheiro público e, com ele, se vão a saúde, a educação, a infraestrutura e parte do futuro do Brasil. 



Por Vladimir Aras (DF)

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