Vanice Regina Lírio do Valle (RJ)
A adoção da governança como modelo de formação das decisões no âmbito da Administração Pública tem-se hoje por recomendável como se extrai inclusive da recente edição do Decreto Federal 9203/17, que “Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”.
Integra o elenco de mecanismos de governança pública traçados pelo referido Decreto, a gestão de riscos como componente do controle, estratégia tida como instrumental ao “alcance dos objetivos institucionais e para garantir a execução ordenada, ética, econômica, eficiente e eficaz das atividades da organização, com preservação da legalidade e da economicidade no dispêndio de recursos públicos”. O que se deseja aqui destacar é a relação entre a ideia de gestão de riscos, e a atividade desenvolvida pela Advocacia de Estado – instituição apta a identificar um particular segmento de risco da atividade administrativa; aquele decorrente da judicialização.
Parece também assentado que quando menos por força do princípio da legalidade insculpido no art. 37, caput CF; a importância da ação preventiva da Advocacia de Estado. Em verdade, pontualmente se terá até mesmo referência normativa expressa a essa exigência, como é a conhecida hipótese do art. 38, Parágrafo Único da Lei 8666/93. O que não resta tão claro é a contribuição, na perspectiva de gestão de riscos, que a Advocacia de Estado possa ofertar a partir dos dados extraídos dos litígios provocados a partir de determinado programa de ação estatal – ou da ausência de política pública em matéria específica.
É verdade que eventual impacto para a Administração decorrente da existência de litígios se teve pela primeira vez percebido com a edição da Lei Complementar 101/00, com a exigência em seu art. 4º, § 3º do Anexo de Riscos a ser ofertado com a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Já naquele momento, a perspectiva de uma condenação judicial de elevada monta se identificava como risco suscetível de inclusão no referido anexo, ante o evidente potencial de reflexo no equilíbrio fiscal. A perspectiva porém era limitada, tendo em conta efeitos possível de uma demanda pontual.
A recente explicitação da importância da gestão de riscos, e ainda a referência a um processo decisório “orientado pelas evidências” (art. 4º, VIII do Decreto 9302/17) convoca a Administração Pública a um novo olhar na matéria. Impõe-se reverter uma lógica segundo a qual a existência de uma massa de conflitos judicializados “ordinários” se constitui fenômeno inevitável; verdadeiro “custo fixo” da Administração, com o qual nada se tem a aprender no que diz respeito à avaliação das políticas públicas em andamento.
Quem atua no exercício da Advocacia de Estado sabe que a judicialização de demandas não atendidas pela Administração, ou cuja providência de atendimento pareça ao cidadão inadequada, é fato que hoje, com frequência, representa por si um risco de multiplicação exponencial, no fenômeno que se identifica como “demanda de massa”. Uma decisão judicial onde se alcança uma antecipação de tutela, tem um efeito potencializador desse mesmo debate, especialmente em unidades da federação dotadas de um Judiciário mais estruturado. Um processo se transforma facilmente em uma centena de processos de mesmo conteúdo. O fenômeno impacta hoje de tal forma o funcionamento do Judiciário que Conselho Nacional de Justiça editoua Portaria Nº 148 de 05/11/2015 do, que institui Grupo de Estudo para elaboração de projeto de resolução com vistas à criação de centros de inteligência e monitoramento de demandas de massa nos tribunais brasileiros.
Judicialização significa portanto o risco de ampliação ad infinitum do volume de conflitos, com os evidentes efeitos sociais, políticos e econômicos decorrentes desse contencioso. Mas o elemento mais relevante que a Advocacia de Estado pode extrair do universo de pretensões judicializadas, é indentificar o que não funciona bem, ou parece insuficiente, tendo em conta uma determinada política pública em curso. Aqui o papel institucional da Advocacia de Estado se conecta com a recomendação de um processo decisório embasado em evidências como atributo relevante da governança pública.
Indiscutível a posição privilegiada dos órgãos de Advocacia de Estado para informar sobre o que se postula judicialmente, e qual o quadro de fatos que leva essa pretensão a ser judicializada. Esse conhecimento é útil não só para a avaliação em si da política pública em curso, mas também para o desenvolvimento de soluções que mantenham o contato com essa mesma realidade de fatos e de expectativas que se tem narrada nas demandas judiciais.
Não se pode também desconsiderar que com a intensificação do fenômeno da judicialização da vida no Brasil se relaciona à chamada crise de representação, e a um descrédito generalizado em relação ao Executivo ou Legislativo. Por isso, não é incomum que os reclamos contra uma determinada política pública se apresentem diretamente ao Judiciário. Nestas hipóteses, as estruturas diretamente relacionadas à atividade-fim; à política pública que se está criticando, nem mesmo tem conhecimento da existência de uma área de reclamo ou insatisfação, eis que a luta política nos órgãos revestidos de representação (Executivo ou Legislativo) se viu descartada como alternativa eficaz. Este é um cenário em que só a Advocacia de Estado será capaz de municiar a Administração dos elementos necessários a revelar um risco oculto às demais estruturas de poder, mas que pode impactar fortemente a ação governamental.
Governança pública com gestão de risco e decisão embasada em evidências exigem uma nova relação entre Administração Pública e suas estruturas de Advocacia de Estado, que hão de ser vistas em si como um centro de inteligência em favor do aprimoramento da ação governamental. Indispensável reconhecer e incorporar o aprendizado decorrente da crítica ao agir estatal que se empreende nas lides forenses.
O desafio a rigor se põe para ambos os atores envolvidos. É preciso que a Administração não veja a Advocacia de Estado como um órgão á parte, com o qual as atividades-fim não tem qualquer contato ou relação a desenvolver. Fazer saber o que está determinando a existência de litígios é um importante componente para o desenho das políticas públicas. Da mesma maneira, indispensável conhecer qual a visão do Judiciário, expressa nas sentenças, sobre essa mesma política pública. Para que essa interação funcione, é preciso que os órgãos envolvidos (Secretarias e Advocacia de Estado) desenvolvam uma interação e uma linguagem comum que permita esse aprendizado.
Gestão estratégica de acervo judicial é de ser igualmente um componente a ingressar nas práticas da Advocacia de Estado, que quem se exigirá voltar os olhos não só ao cumprimento dos prazos judiciais, mas também e especialmente, às oportunidades de aprendizado sobre erros e acertos da Administração Pública que um acervo judicial oferece. Grandes órgãos de Advocacia de Estado criam hoje seus “núcleos” para o patrocínio de demandas de massa – mas ainda objetivando exclusivamente atender aos prazos e audiências, sem extrair desse conjunto de insatisfações, qualquer elemento mais substantivo de orientação à remodelagem das políticas públicas em curso.
O desafio se apresenta agora sob outra roupagem – a da contribuição à governança pública – mas em verdade em pouco inova à convocação que a Carta de 1988 já empreende a uma Advocacia de Estado qualificada como função essencial à justiça, e vocacionada à zeladoria da juridicidade – como ensinou Diogo de Figueiredo em “A Advocacia de Estado revisitada”. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado, Rio de Janeiro – Edição especial (50 anos), 2006, p. 315.
É certo que a existência em si da demanda judicial não evidencia erro nas escolhas da Administração Pública. Mas elas tornam claro ao menos que há insatisfação – o que já determina, num ambiente democrático, quando menos o esclarecimento pelo Poder Público de quais sejam seus critérios de decisão e estratégias de ação. Isso sim é a governança pública que se deseja; a que começa com transparência.
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