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Parlamentarismo e Limites à Reforma Constitucional

ANO 2016 NUM 231
Valmir Pontes Filho (CE)
Professor Titular de Direito Administrativo da Universidade Federal do Ceará. Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Ex-Procurador Geral do Município de Fortaleza.


10/08/2016 | 7413 pessoas já leram esta coluna. | 20 usuário(s) ON-line nesta página

A Constituição goza, tanto do ponto de vista político como jurídico, de indiscutível em relação às demais normas do sistema jurídico positivado, posto que estas, necessariamente, se hão de naquela fundamentar. Afinal, a Constituição, é a única das manifestações normativas que emana do exercício de um poder de natureza exclusivamente política – o Poder Constituinte – insubmisso a qualquer regramento jurídico humano anterior. Sob o ângulo formal, portanto, o órgão elaborador da nova Lex Magna não está obrigado a seguir qualquer regra jurídica antecedente.

Claro que, ao se elaborar uma Constituição, inevitavelmente respeitadas serão determinadas tradições ou costumes políticos, bem como as tendências ideológicas prevalecentes naquele momento inovador. Daí decorrem, de hábito as mais agudas transformações quanto à forma (monarquia ou república) e o regime de governo (presidencialismo ou parlamentarismo), por exemplo, bem como ao sistema de liberdades básicas do cidadão e da sociedade. Tal momento é ímpar, singular, e, de hábito, resultante de graves distúrbios de índole política, a exigirem uma mudança de rumos.

A Constituição brasileira em vigor, cuja rigidez, pressuposto de sua supremacia, se vê configurada, espe­cialmente em seu art. 60. Com efeito, ao ali disciplinar as hipóteses em que é possível a sua própria alteração, a Lei Maior de 1988 se quis proteger, em primeiro lugar, da ação deletéria do legislador comum. Em outras palavras, deixou claro que as leis ordinárias, complementares ou delegadas, assim como qualquer outra espécie legislativa assemelhada (como a “medida provisória”), ou mesmo de inferior hierarquia (como o decreto regulamentar), jamais poderiam ter a veleidade de contrariar suas disposições.

Todas essas manifestações normativas infraconstitucionais devem, obrigatoriamente, manter-se mesurosas aos princípios e regras da Lei Fundamental, sob rigorosa pena de invalidade. Ergueu a Constituição, em torno de si mesma, portanto, uma muralha de proteção, fortificada o suficiente para que sua já mencionada rigidez - e sua supremacia, consequentemente - não viesse a ser abalada. E nem se diga que se tratou de providência desnecessária, de mera sofisticação imaginada pela mente academicista de alguns doutrinadores. Ao contrário, põe-se tal muralha como indispensável não apenas para sua mantença como norma supe­rior, mas para a própria sustentação do regime democrático que a Constituição erigiu e daquilo que põe como a própria razão de ser do Direito: o princípio da segurança das relações jurídicas.

Sem tal segurança ou estabilidade nas relações que o Direito se propõe a regular (ou, se assim se preferir, das normas jurídicas voltadas à regulação das respectivas relações), sequer se pode falar em convivência harmônica entre os homens. Muito menos em progresso social e econômico. Defender a integridade da Constituição, portanto, não é simples exercício de retórica bacharelesca, mas de salvaguarda da própria civilização humana, cujo desenvolvimento moral e material depende, basicamente, do nível de segurança em que os relacionamentos humanos se desenvolvem.

A Constituição em vigor, todavia, como qualquer outra, não se desejou imutável, intangível às mudanças sócio-políticas impostas pelo próprio decorrer do tempo. Nem o poderia, na medida em que, se assim não fosse, se tornaria logo superada e, muito provavelmente, albergadora de prescrições ineficazes, des­compassadas com a realidade. Eis porque admitiu ela ser modificada pelas chamadas “emendas constitucionais”. Mas tais modificações se hão de produzir não só dentro dos estritos e rígidos limites pela Constituição mesma delineados, mas, muito especialmente, quando presentes motivos relevantes de ordem pública, ou seja, quando a sociedade, democraticamente auscultada, o exija.

Mais oportunas não poderiam ser as palavras de Josaphat Marinho, ex-Senador da República e Professor da Universidade Federal da Bahia: “A estabilidade institucional deve superpor-se a razões filosóficas e políticas, de sorte que a Constituição somente seja alterada por superiores motivos de ordem social e pública. Não cabe julgá-la intocável, pois há de ser instrumento adequado a regular continuamente a vida do Estado e da sociedade. Para tanto, pressupõem-se mudanças naturais no texto...” (Limites ao poder de revisão constitucional, in RTDP 24/98, São Paulo, Malheiros, pp. 5/13).

Muitas vezes, infelizmente, exatamente à falta do necessário discernimento, por conta do desamor ao constitucionalismo ou, pior, para a satisfação de interesses políticos menores, casuísticos, defende-se a reforma da Constituição como se se tratasse de algo corriqueiro. Novamente a inolvidável lição de Josaphat: “A liberdade de rever a Constituição é condicionada ao interesse coletivo e do Estado. A satisfação desse interesse é que imprime dimensão real a todas as leis, e não o atendimento das reivindicações de partidos, facções e maiorias ocasionais... Equivale a dizer que as mutações constitucionais necessárias, indicativas da libertação das gerações entre si, visam ao bem-estar do todo social no tempo preciso, e não do benefício de segmentos menores e isolados da sociedade. Por isso são legítimas” (Artigo citado, p. 6.).

Nem sempre, aliás, para que se atinja o propósito de “modernizar” o Texto Supremo, é necessária uma “emenda” formal. Basta dar a ele a interpretação adequada, promovendo-se a chamada “mutação constitucional”: “... para corrigir deficiências e omissões dos textos constitucionais que não lhes comprometem a essência, a solução está na interpretação inteligente deles, que varia do esclarecimento lógico à construção do espírito do sistema... Por exegese, portanto, é possível suprir as falhas do instrumento constitucional, sem necessidade de alterar-lhe a expressão formal. A inteligência completa do texto, mantendo-o na sua literalidade, para não lhe enfraquecer o prestígio de documento permanente e supremo. Trata-se de forma superior de conservar a autoridade da Constituição, dela extraindo postulados compatíveis com sua sistematização” (Artigo citado, pp. 6/7.)

O que não se pode, como dantes assinalado, é superar os limites impostos ao intérprete/aplicador, a quem não é dado inovar, ao seu talante, a ordem jurídica, notadamente a de índole constitucional.

Ao prever a edição das tais emendas constitucionais, fê-lo a Constituição da República exatamente para estabelecer, rígida e minudentemente, normas disciplinadoras de sua produção. Quis, assim, por intermédio delas, ver-se atualizada, mas sob bem postos parâmetros, absolutamente incontornáveis e por ela mesma positivados.

Daí uma óbvia conclusão: as emendas constitucionais são manifestações normativas que se hão de subsumir à própria Constituição, porque desta derivadas e a esta subordinadas. Vêm a ser regras infraconstitucionais, portanto. E nem poderia ser diferente, já que oriundas de um órgão constituído (o Congresso Nacional, no nosso caso), estruturado pela Constituição, e não de um órgão constituinte, capaz de elaborar a própria Constituição. Assim, não se imagine que uma emenda, uma vez formalmente aprovada - e por tal motivo passando a formalmente integrar o texto constitucional - com este se confunda e não possa ter sua constitucionalidade (ou validade perante a Constituição) questionada.

É claro que pode, exatamente porque sua edição resulta do exercício do poder reformador, cujo espectro competencial está definido pela Constituição. Esta, por seu turno, se origina do exercício do poder constituinte, aquela “...força política incondicionada em termos jurídicos e fixadora de uma nova ideia fundamental de direito” (Conforme felicíssima definição de Paulo Garrido Modesto, emérito constitucionalista e administrativista, em brilhante artigo intitulado Reforma administrativa e direito adquirido). Assim, se as emendas emanam de um poder legiferante condicionado juridicamente pela Lei Suprema - que as prevê e regula - e não de uma “força política incondicionada em termos jurídicos”, como bem disse Paulo Modesto, desarrazoado seria pensar que elas, as emendas, não pudessem ter sua inconstitucionalidade decretada (pelas vias anteriormente já indicadas).

Não se trataria, aí, como alguns poderiam pensar, de identificar uma “inconstitucionalidade na própria Constituição”, coisa que a lógica jurídica de plano refuta. As aparentes incompatibilidades entre as regras da Constituição mesma – tal como originariamente posta - são, em verdade, resultado da sua equivocada exegese e resolvíveis, sempre, pela interpretação lógico-sistemática que dela se faça, privilegiados os seus princípios. Já a contradição entre a Constituição originariamente posta e uma emenda se há de resolver em favor daquela, invariavelmente, em razão de seu superior posicionamento hierárquico.

Mesmo que se entenda - como o faz Modesto, com a argúcia de sempre, que o poder reformador “... expressa também de forma especial ou incomum a soberania popular través o Parlamento” (V. artigo citado, p. 7.), é preciso bem compreender: a) que as leis - ordinárias ou complementares, por exemplo - igualmente são produzidas pelo Parlamento e refletem (ou hão de refletir, em homenagem ao princípio republicano), a soberania popular; b) que, mesmo elaboradas de forma “especial”, as emendas constitucionais não se podem nunca pôr no mesmo patamar das normas constitucionais em si mesmas, forjadas pelo poder constituinte originário, este sim, inconfundível (por sua índole exclusivamente política), uno, incindível, supremo, e não só “incomum”.

Manifestando sua lúcida inconformação com o que há ocorrido com frequência em nosso país, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma: “... a pretexto de efetuar Emendas Constitucionais, o legislador ordinário - que não recebeu mandato constituinte e cuja posição é juridicamente subalterna - poderia, inclusive, em comportamento “de fato”, não jurídico, derrocar a Constituição, por si mesmo ou tangido por algum caudilho, travestido ou não de democrata... Diante de evento de tal natureza, as medidas que fossem impostas perderiam o caráter de Emendas. Converter-se-iam, elas próprias, em novo exercício do Poder Constituinte, tal como ocorreria após revoluções ou golpes de Estado... É claro, entretanto, que nas situações desse jaez estaria rompida a ordem constitucional vigente e inaugurada outra” (Curso de direito administrativo, 11ª ed., 1999, São Paulo, Malheiros, p. 212.).

Examine-se, pois, o tal processo especial e solene de produção das emendas constitucionais, buscando extrair da Constituição da República Federativa do Brasil os limites ao poder de reforma. Sem a menor pretensão de originalidade, eis como esses limites poderiam ser classificados:

a) limite procedimental quanto ao órgão de aprovação e promulgação (§§ 2º e 3º. do art. 60): somente ao Congresso Nacional é conferida a competência para, por intermédio de suas Casas legislativas (Senado e Câmara dos Deputados), aprovar as propostas de emendas constitucionais, sem que ao Chefe do Executivo sequer se confira, como ocorre em relação às leis ordinárias e complementares, a prerrogativa do veto; caberá às respectivas Mesas sua promulgação e atribuição do número de ordem; trata-se, como se vê, de notável exemplo da prevalência do princípio republicano, a relembrar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (arts. 1º, caput, e 2º). Sobre o princípio republicano, vale referir, aqui, à feliz idéia que teve o Professor Paulo Bonavides, como Presidente de Honra da Comissão encarregada de elaborar o trabalho de atualização da Constituição do Estado do Ceará, de incluir, na Carta cearense, a previsão de iniciativa popular de emenda constitucional, a ser subscrita por 1% do eleitorado. Inovadora, a proposta não me parece ofensiva ao paradigma da Constituição da República, na medida em que privilegia a república e a origem, democrática do poder.;

b) limite procedimental quanto à propositura (art. 60, caput e incisos I a III): consideram-se aptos a serem levados à deliberação do Congresso os projetos de emenda à Constituição que hajam sido subscritos: 1) por um terço, no mínimo, dos Deputados federais; 2) por um terço, no mínimo, dos Senadores; 3) pelo Presidente da República; e 4) por mais da metade das Assembleias Legislativas estaduais, desde que cada uma delas assim delibere pelo voto da maioria simples de seus membros, entendendo-se por  maioria simples, neste caso, a presença de tantos Deputados quantos necessários para formar o quorum mínimo para instalação dos trabalhos­ do órgão, quando considerar-se-á aprovada a iniciativa da proposta se esta obtiver mais votos favoráveis que contrários; se se exigisse maioria absoluta dos seus membros, seriam necessários metade dos votos de todos os integrantes da Casa, mais um;

c) limite procedimental quanto à votação (§ 2º do art. 60): para que a proposta de emenda, tal como apresentada, seja tida como aprovada, é necessário que obtenha, em cada uma das Casas do Congresso e em dos dois turnos de votação, o voto favorável de pelo menos dois terços (Trata-se, aí, de uma maioria qualificada, mais difícil de ser obtida) dos Deputados e dos Senadores (em cada um desses escrutínios); caso a proposta seja objeto de uma alteração qualquer no curso desse processo (digamos que no âmbito do Senado, depois que a Câmara dos Deputados haja sobre ela deliberado), haverá de retornar à Câmara, onde os dois turnos de votação devem ser repetidos (este é o pensamento do Professor Sérgio Sérvulo da Cunha, ao qual aderimos); trata-se, a desdúvidas, de meio extraordinariamente solene, previsto exatamente para preservar a rigidez (e conseqüentemente a supremacia) constitucional;

d) limites temporais ou circunstanciais (§§ 1º e 5º, do art. 60): o Congresso está proibido de deliberar sobre proposta de emenda constitucional duran­te a vigência do estado de sítio, do estado de defesa e da intervenção federal (situações em que a normalidade institucional está momentaneamente posta em cheque), assim como, na mesma sessão legislativa (anual), sobre matéria constante de proposta que haja sido rejeitada ou havida por prejudicada nessa dita sessão legislativa (quando, por exemplo, a proposta não é posta em votação em virtude de parecer contrário da Comissão de Constituição e Justiça ou quando não atingido o quorum mínimo para a instalação dos trabalhos);

e) limites materiais expressos: a Constituição cuidou de imunizar contra qualquer tentativa de modificação, por via de emenda, as seguintes matérias:

1) a forma federativa de Estado, com o que protegidas estão - em respeito mesmo à essência do princípio federativo - a autonomia político-administrativa dos Estados-membros, dos Municípios e do Distrito Federal cabe pôr em relevo, neste passo, que a federação constitucionalmente protegida outra não é outra senão aquela pela mesma Constituição instituída, é dizer, a que compreende, além da União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, pessoas políticas cuja autonomia jamais pode ser objeto de ataques; isso decorre, aliás, de uma interpretação sistemática dos arts. 60, § 4º, I, caput, e 18, caput, do Texto Supremo; o mesmo não se diga, porém, quando a proposta tem por escopo, por exemplo, transferir competência da União para os demais entes federados, pois aí, à vista da descentralização protagonizada, o princípio federativo restará privilegiado;

2) o voto direto, secreto universal e periódico, elementos que constituem a essência do princípio republicano; a República, portanto, vê-se superiormente protegida, mesmo quanto à ação do legislador constituinte derivado (observe-se que apenas na República há o sistema de voto direto, secreto e periódico; na Monarquia, por exemplo, ainda que democrático-parlamentarista, o Chefe de Estado não é eleito; e mesmo a eleição do Chefe de Governo não é necessariamente periódica; nem direta, já que a escolha do Primeiro Ministro se dá indiretamente, pelos parlamentares (e não diretamente pelo povo);

3) os direitos e garantias individuais que, previstos expressamente no próprio art. 5º da Constituição ou decorrentes do regime e dos princípios que ela adota, assim como dos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário (art. 5º, § 2º), igualmente se encontram na categoria das matérias vedadas à ação reformadora;

f) limite material político-institucional: ainda que não fixada de forma expressa ou direta, outra limitação à reforma constitucional reside, no nosso modo de ver, na absoluta impossibilidade de qualquer alteração dos arts. 1º e 3º da Constituição, com seus respectivos parágrafos (a intocabilidade do art. 2º - que estabelece serem Poderes (órgãos) independentes e harmônicos entre si o Legislativo, o Executivo e o Judiciário - já decorre, enfim, da vedação contida no art. 60, § 4º, III, da Constituição, o qual impede emenda tendente a abolir a “separação dos Poderes” (dos órgãos governativos); é que neles se vislumbram, como antes demonstrado, os fundamentos (a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político e o assento popular do Poder) e os objetivos fundamentais (a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação) da República Federativa do Brasil; tais fundamentos e objetivos consubstanciam aquilo que se deve entender por diretrizes políticas de toda a ação governamental do Estado brasileiro, exteriorizadas por verdadeiras regras principiológicas especiais, de natureza cogente, algumas até mesmo intimamente ligadas aos direitos e garantias individuais (protegidos pelo art. 60, § 4º, IV); assim, na medida em que se admitissem emendas capazes de modificar - a não ser que para torná-las mais fortalecidas e eficazes - tais diretrizes, é dizer, a descaracterizar esses fundamentos e objetivos fundamentais, na realidade se estaria a também admitir a própria desnaturação da República Federativa criada pela Constituição em 1988; ter-se-ia, em tal absurda hipótese, diante de outro país, com características jurídico-constitucionais inteiramente diversas daquelas tornadas básicas, essenciais à identidade do Estado brasileiro atual;

g) limite material implícito: embora não indicado, de maneira expressa, em dispositivo constitucional específico, há uma barreira lógica implícita - já que decorrente de mero raciocínio dedutivo - imposta ao poder reformador: a de que, por via de emenda, não é admissível promover-se a supressão, ou mesmo simples alteração, de qualquer das prescrições do art. 60 da Constituição, exatamente aquele que dita as normas conducentes da alteração constitucional; em suma, não se admite modificação alguma nas “regras do jogo”, ditadas pelo criador (o poder constituinte), às quais a criatura (o Congresso) se deve subordinar humilde e silenciosamente; a titularidade do exercício do poder de reforma e da iniciativa das Emendas, o meio de aprovação das propostas de emendas e os limites temporais, materiais, expressos e implícito, são permanentes e intocáveis; juridicamente inimaginável, por exemplo, a diminuição do quorum de aprovação das emendas constitucionais, com que se estaria, num extremo de irracionalidade, destruindo a própria rigidez da Lei Suprema.

A despeito disso, porém, não raro se tem falado em “flexibilizar” (o termo está em voga) o sistema de aprovação das emendas constitucionais, tornando-o menos rígido, com o intuito de facilitar a tramitação do projetos de interesse do Executivo federal; o Ministro da Justiça do Presidente eleito em 1995, chegou, para depois arrepender-se (segundo noticiou a imprensa), a sugerir uma proposta de EC reduzindo o quorum de aprovação das emendas. Trata-se, inequivocamente, de uma aberração sem par, comprometedora dos mais comezinhos princípios que inspiram e servem de norte ao constitucionalismo moderno, à ordem institucional e à segurança das relações jurídicas.

 Quanto às limitações materiais expressas, impende notar - como o faz, com inteira propriedade e a autoridade de sempre, José Afonso da Silva - que a utilização, pelo § 4º do art. 60, do vocábulo “abolir”, não significa apenas “extinguir”, mas qualquer ação voltada a promover vulneração ou fragilização desses princípios superiormente resguardados.

Veja-se a lição de José Afonso da Silva a respeito: “É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: ‘fica abolida a Federação... ou fica extinta a liberdade religiosa...’. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas tendentes, diz o texto) para sua abolição” (Curso de direito constitucional positivo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 69).

Impõe-se, neste lanço, fazer alusão a outro limite, de especialíssima ordem, a inibir o legislador reformador: o referente à intangibilidade do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Embora reconheçamos se trate de assunto ainda não estratificado em doutrina, não nos parece implausível, muito ao contrário, a defesa da tese de que as disposições transitórias da Carta Constitucional em vigor não podem ser modificadas por emendas.

Sigamos o seguinte pensar: quando o legislador constituinte de 1988 - fazendo uso do poder soberano que popularmente lhe foi outorgado - estabeleceu, além das prescrições comuns da Constituição (voltadas normalmente à regulação de eventos futuros, que viessem a ocorrer de sua promulgação e publicação em diante, inclusive estagnando a aplicação de regras passadas com ela não compatíveis, e, portanto, não recepcionadas), algumas outras, excepcionais, voltadas à normatização de situações cristalizadas no exato instante de sua edição. Estas, ditas “transitórias”, surgiram em um dado momento - exatamente o da promulgação da Constituição nova - num espaço-tempo definido, jamais sujeito a reconstituição. Registraram, pois, de modo “fotográfico” (e não “cinematograficamente”, como as demais, se nos é permitido repetir a conhecida analogia) ocorrências determinadas naquela dada quadra histórica. Assim, por exemplo, o art. 8º do ADCT (que concedeu anistia por crimes de motivação política).

Mesmo quando alusivos a eventos futuros (como é o caso dos arts. 3º, que previu a realização de uma “revisão constitucional”, e do próprio art. 8º, quanto aos respectivos efeitos financeiros, por exemplo), o fato é que esses dispositivos exteriorizaram uma vontade constituinte originária especial (transitória e tópica) ocorrida “em algum lugar do passado” (exatamente aos 5 de outubro de 1988), que nunca, em hipótese alguma, se poderia hoje reproduzir tal como foi emanada (a não ser que, como na ficção científica, se inverta a “seta psicológica” do tempo, de modo que nos seja possível lembrar do futuro e projetar o passado!).

Desejar modificá-las hoje, ou em qualquer momento após sua edição, significaria exatamente uma tentativa - ilógica, agressiva à razoabilidade (e irrealizável praticamente, segundo os postulados física quântica) - de retorno ao passado, a um evento histórico já ocorrido. Seria como se o legislador reformador de hoje quisesse (e pudesse) pôr-se no corpo e no espírito do legislador constituinte originário daquela época. A vontade superior deste último, expressa naquele exato instante, já se exauriu e não pode, é claro, ser recomposta nos momentos atuais, como se a criatura (o poder reformador) falasse pelo criador (o poder constituinte originário). Sem embargo disso, porém, se há esmerado o legislador reformador em não apenas alterar dispositivos do ADCT, mas procedido a inserções, nele, de novas regras, como se constituinte fosse. Mas não é aí isso que Alfredo Augusto Becker chamaria de “carnaval constitucional”. 

As emendas constitucionais - produzidas em respeito às limitações expressas e implícitas a que nos reportamos – se destinam a modificar a Constituição, alterando ou suprimindo dispositivos seus, ou mesmo acrescentando ao seu texto novas regras. A boa técnica legislativa recomenda que os artigos de uma emenda sempre se reportem a artigos, parágrafos, incisos e alíneas da Constituição originária, para dar-lhes nova redação, para acrescer-lhes algo ou simplesmente para lhes suprimir comandos. Mas não é isto o que vem ocorrendo com alguns dos mais recentes instrumentos de alteração constitucional, neles se vislumbrando tanto regras de “existência autônoma” como as que têm índole meramente transitória, regulando a aplicação da própria norma alteradora da Constituição.

Assim, por exemplo, os artigos 2º, da Emenda n. 8, e 3º, da Emenda n. 9 (ainda de 1995) tratam de estabelecer limitações materiais à edição de medidas provisórias, interditando-as ao trato por essa espécie normativa (Segundo tais preceitos, as matérias que tratam os artigos 21, XI e 177, §§ 1º e 2º, incisos I a IV (com nova redação que lhes foi dada pelas referidas ECs), não podem ser objeto de regulação por medida provisória). Eis que, embora não hajam cuidado de modificar o art. 62 da Constituição de 88 - introduzindo parágrafo que prescrevesse a proibição aludida - fê-lo por disposição autônoma que, embora formalmente não integre o Texto Maior, substancialmente dele faz parte (na medida em que uma emenda, se não for inconstitucional, se agrega à Constituição). O mesmo se diga, também do art. 33 da Emenda n. 19 (a definir o que são servidores não estáveis, para os fins do art. 169, § 3º, II, da Constituição).

Já os arts. 27 e 28, da Emenda n. 19, e 3º, 4º, 5º, 6º, 12 e 13 (dentre outros), da Emenda n. 20, têm por escopo estabelecer regras transitórias, relativas à viabilidade de aplicação das alterações introduzidas pelas ditas Emendas e, às vezes, da própria Constituição originariamente posta.

Cabe, então, indagar da natureza jurídica dessas regras autônomas ou de aplicação: já que não oriundas da vontade constituinte originária (e sim derivada), mas, por outro lado, integrando a Lei Suprema (desde que não vulneradoras dos limites constitucionais à produção de emendas), talvez pudéssemos chamá-las de normas constitucionais por adesão, ou de segundo grau. Nessa qualidade, embora da Constituição façam parte, estão sujeitas ao controle da constitucionalidade, o que lhes empresta natureza diversa das normas constitucionais originárias, ou de primeiro grau.

Mas tudo isto se afirmou com o propósito específico de sustentar a impossibilidade jurídica de se implantar entre nós, ainda por via de emenda, o parlamentarismo. Isto pela existência de uma vedação decorrente do princípio da separação dos Poderes. Deste decorre, enfim, a separação orgânica do Poder (em Legislativo, Executivo e Judiciário, tal como estabelecida pela Lei Suprema) e está infenso a qualquer modificação que vise a suprimir um desses órgãos, submeter um ao outro ou a restringir suas competências constitucionais. Aqui vale ponderar, primeiro, que uma eventual supressão da competência Presidencial para expedir medidas provisórias não estaria vedada, de vez que restaria devidamente homenageado o princípio democrático (ou o da participação popular); todavia, a limitação está a impedir a implantação, via emenda, do parlamentarismo: afinal, em tal sistema de governo é certo que o Executivo não é “independente” do Legislativo - como o quer o art. 2º da CF - mas um simples apêndice deste, podendo mesmo ter seu o mandato do seu Chefe (o Primeiro Ministro) encurtado por conta de “moção de desconfiança” votada pelo Congresso. Tal importa dizer que o Presidencialismo igualmente se vê imodificável.

Afinal, se no parlamentarismo o Executivo passa a ser dependente do Legislativo, posto que o Gabinete é constituído por maioria parlamentar, clara está a incompatibilidade entre um sistema e outro. Por fim, fundamental não deslembrar que o povo brasileiro já se manifestou, em plebiscito previsto originariamente pela Constituição (e não por emenda, registre-se), no art. 2º do seu Aro das Disposições Transitórias. E o fez no sentido da mantença do presidencialismo, o que pôs o assunto, como dito, “em algum lugar do passado”. 



Por Valmir Pontes Filho (CE)

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