Thiago Marrara (SP)
Já desde sua redação originária, a Constituição de 1988 prevê o dever de prestação de serviços públicos adequados e confere aos usuários o direito à reclamação por sua violação. O art. 175, parágrafo único, prescreve que “a lei disporá sobre: (...) II – os direitos dos usuários”; e “IV – a obrigação de manter serviço adequado”. Em sua versão inicial, o art. 37, § 3º dispunha complementarmente que “as reclamações relativas à prestação de serviços públicos serão disciplinadas em lei” (g.n.). Mais tarde, com a reforma administrativa e a edição da Emenda Constituição n. 19/1998, esse dispositivo foi significativamente ampliado, passando a dispor que: “a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços” (g.n.).
Ambos os dispositivos clamavam desde o final da década de 1980 por uma lei específica a cuidar do assunto. No entanto, por longo tempo, os direitos dos usuários e os parâmetros de prestação de um serviço adequado receberam apenas um tratamento genérico e precário em certos dispositivos da Lei de Concessões e em algumas normas setoriais. Não por outro motivo, na ocasião da reforma administrativa, considerou-se imprescindível reforçar os mandamentos constitucionais ao se prever na Emenda n. 19/1998 o artigo 27, que assim determinou: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação desta Emenda, elaborará lei de defesa do usuário de serviços públicos” (g.n.).
Apesar do reforço, cerca de 14 anos mais tarde, o Congresso ainda se encontrava inerte, o que levou o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a interpor, em 2013, uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Nela, a Ordem cautelarmente solicitou que se determinasse aos Presidentes da Câmara e do Senado, bem assim à Presidência da República, a adoção das providências para que a análise do Projeto de Lei n. 6.953/2002 e sua conversão em lei ocorressem no prazo máximo de 120 dias. Requereu, ainda, que o STF confirmasse a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos usuários de serviços públicos enquanto não editada a clamada lei específica.
Na qualidade de relator, o Ministro Dias Toffoli reconheceu a mora legislativa e determinou em decisão monocrática a elaboração da lei em 120 dias. Ao fazê-lo, entre outras coisas, aduziu que o art. 27 da EC 19/1998 criou “verdadeira imposição legiferante, a qual, dirigida ao Estado legislador, tem por finalidade vinculá-lo à efetivação de uma legislação destinada: (a) a assegurar a prestação de serviços públicos de qualidade à coletividade e (b) a estabelecer mecanismos específicos de proteção e defesa dos usuários” (g.n.). Ademais, considerou que o fato de já tramitar na casa um projeto de lei a respeito do assunto não afastava a inconstitucionalidade da inércia legislativa (“inertia deliberandi”), baseando-se para tanto na argumentação empregada pelo Ministro Gilmar Mendes na ADI n. 3.682/MT, cujo item 2 da Ementa assim dispôs:
“Apesar de existirem no Congresso Nacional diversos projetos de lei (...), é possível constar a omissão inconstitucional quanto à efetiva deliberação e aprovação da lei complementar em referência. As peculiaridades da atividade parlamentar que afetam, inexoravelmente, o processo legislativo, não justificam uma conduta manifestamente negligente ou desidiosa das Casas Legislativas, conduta esta que pode pôr em risco a própria ordem constitucional. A intertia deliberandi das Casas Legislativas pode ser objeto da ação direta de inconstitucionalidade por omissão” (ADI n. 3682/MT, relator: Min. Gilmar Mendes, DJe 05/09/2007).
Quanto ao pedido de aplicação subsidiária e provisória do CDC às relações de usuários de serviços públicos, não houve decisão em sede cautelar, pois preferiu o relator deixá-lo para “análise mais aprofundada por parte do Tribunal – caso ainda subsista a mora -, e após colhidas as informações das autoridades requeridas e as manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República”. E efetivamente o pedido ficou prejudicado, pois, em virtude da decisão cautelar do STF, o Congresso finalmente agiu como deveria e, em 29 de junho de 2017, publicou-se a Lei n. 13.460, conhecida como Código de Defesa do Usuário de Serviço Público (que aqui se indicará pela sigla CDUSP).
Em seus 25 artigos e 7 capítulos, o novo Código trata de: i) disposições preliminares, incluindo normas de aplicabilidade e conceitos; ii) dos direitos básicos e deveres dos usuários; iii) das manifestações de usuários de serviços públicos; iv) das ouvidorias; v) dos conselhos de usuários; vi) da avaliação continuada dos serviços públicos e vii) das disposições finais e transitórias.
Diante de seus variados mandamentos, inúmeras são as questões e dúvidas jurídicas que se colocarão aos entes públicos, aos prestadores de serviços públicos e às entidades responsáveis pela defesa de usuários. Com a aprovação do CDUSP, o que mudou no ordenamento jurídico brasileiro em termos de garantia de direitos dos destinatários de serviços públicos? Em que medida os direitos dos usuários foram expandidos? Como essas modificações afetaram a esfera jurídica dos prestadores? Quais são os impactos esperados sobre contratos de delegação de serviços públicos a entidades particulares?
Nas poucas linhas desse estudo, descabe esboçar respostas a todas as indagações concebíveis. Todavia, existe uma questão cuja resposta serve a todas elas, nomeadamente a relativa à definição dos limites de aplicabilidade do CDUSP. Quais entidades estão submetidas ao Código? As entidades de todos os Poderes ou apenas do Executivo? As privadas ou apenas as estatais? Que usuários foram beneficiados? A partir de quando essas mudanças valerão? Respostas a essas questões pressupõem um exame mais detalhado das disposições preliminares e das disposições finais do Código, pois nelas o legislador inseriu os mandamentos para tentar solucionar muitas dessas dúvidas.
O primeiro parâmetro de delimitação da aplicabilidade do CDUSP se encontra no conceito de “serviço público”. Afinal, os instrumentos desse Código dizem respeito apenas a usuários desse tipo de função administrativa prestativa, não abrangendo os cidadãos atingidos por atividades de polícia, restrições à propriedade ou atividade econômica estatal, por exemplo. Exatamente por isso, o legislador reputou imprescindível oferecer uma definição legal geral de serviço público, da qual, aliás, prescindia o ordenamento jurídico brasileiro até 2017. Ao fazê-lo, empregou uma concepção bastante ampla, já que definiu o conceito como qualquer “atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou entidade da administração pública” (art. 2º, II, g.n.).
A definição legal evidencia que o Código abarca serviços públicos sociais ou econômicos consistentes na oferta de uma prestação (como os serviços educacionais, de tratamento de saúde, de assistência social ou jurídica) ou na entrega de um bem (como os serviços de fornecimento de água, de alimentos, de medicamentos) ao usuário, pessoa física ou jurídica. Mas não é só isso. O art. 2º, II ainda menciona a expressão “atividade administrativa” certamente no intuito de incluir na definição legal os chamados serviços públicos administrativos, que desempenham função complementar ou de suporte a um serviço público principal (como os serviços de creche, de alimentação ou de apoio psicossocial prestados por universidades públicas a seus discentes ou os serviços de arquivamento ou processamento de dados prestados por certos órgãos públicos a outros).
O segundo parâmetro de delimitação da aplicabilidade das normas do CDUSP se revela no art. 1º, § 1º e também na parte final do art. 2º, II. Nesses dois dispositivos, estende-se a aplicabilidade das normas de proteção de usuários a serviços prestados pela Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios.
Sob a perspectiva federativa, isso significa que todos os entes políticos se submetem ao Código editado pelo Congresso. E nisso não há inconstitucionalidade, dado que, embora não prevista de modo explícito no rol de competências privativas do art. 22 da Constituição, a competência do Congresso para editar o CDUSP como diploma nacional se assenta tanto no art. 37, § 3º I da Constituição, quanto no próprio art. 27 da EC n. 19/1998. Nada impede, contudo, que os entes estaduais e municipais, bem como as próprias entidades estatais em seu âmbito, detalhem e até ampliem as previsões do Código, no intuito de lhes dar mais efetividade. E isso fica evidente em muitos dispositivos, como o art. 17, que atribui a cada Poder e esfera de governo a competência para editar atos normativos específicos acerca da organização e do funcionamento das suas ouvidorias.
Em relação à divisão dos poderes especificamente, a discussão da aplicabilidade pode parecer mais complexa a alguns, sobretudo porque o Código se refere somente à Administração Direta e Indireta no art. 1º, § 1º e no art. 2º, II. Disso se extrai que suas normas de proteção incidem sobre serviços executados tanto por um órgão da Administração Direta, como uma Secretaria estadual ou municipal, quanto por um ente descentralizado, como uma autarquia. Tampouco há dúvida de que o CDUSP vincula órgãos especializados e com autonomia mais alargada dentro do próprio Executivo, como o Ministério Público e as Defensorias. No entanto, resta a dúvida sobre a aplicabilidade do diploma e seus instrumentos a serviços do Judiciário e do Legislativo. Esses dois poderes terão que implementar os vários instrumentos do Código?
A reposta é indubitavelmente afirmativa e isso por duas razões simples. De um lado, já há muito tempo é consenso doutrinário que a administração pública não equivale a Poder Executivo. Ela representa um complexo de funções que se concentra no Executivo, mas nele definitivamente não se esgota. Ao desempenharem serviços públicos ou exercerem outras funções administrativas, também o Judiciário e o Legislativo farão parte da Administração Pública e, por conseguinte, restarão subordinados a todos os seus preceitos, salvo na presença de norma especial. É isso que justifica a incidência da legislação de licitações, de processo administrativo e, agora, de defesa dos usuários aos três poderes. Não bastasse isso, de outro lado, embora o CDUSP tenha se referido à administração direta e indireta, sem fazer menção expressa aos Poderes Legislativo e Judiciário nos art. 1º, § 1º e no art. 2º, II, ele utiliza a expressão “cada Poder” em vários outros trechos, dando a entender que seus mandamentos vinculam as três esferas sem exceção. Isso se vislumbra, por exemplo, nos art. 3º, 7º, § 5º e 17. Assim, sempre que esses poderes prestarem serviços públicos – como se vislumbra, por exemplo, nos vários cursos que escolas do legislativo e da magistratura, mesmo sem serem universidade, oferecem ou vendem à população –, esse Código se aplicará.
O terceiro parâmetro de aplicabilidade do CDUSP reside no art. 1º, § 2º. Nele se prescreve que “a aplicação desta Lei não afasta a necessidade de cumprimento do disposto: I – em normas regulamentadoras específicas, quanto se tratar de serviço ou atividade sujeitos a regulação ou supervisão” (...). A interpretação desses mandamentos deve se apoiar sobretudo na oração “a aplicação desta Lei não afasta a necessidade de cumprimento...” (g.n.). Nesse trecho, o legislador deixou evidente que o CDUSP representa um corpo de normas básicas de proteção, às quais se somam normas setoriais de entes reguladores. Note-se bem: o dispositivo em comento não afirma que os instrumentos de proteção do CDUSP deixam de se aplicar quando houver norma regulatória, mas sim que eles conformam meios mínimos de tutela do usuário, cabendo ao regulador detalhá-los, adaptá-los, complementá-los ou ampliá-los – nunca, porém, reduzir sua função ou seu papel.
O quarto parâmetro de aplicabilidade do CDUSP diz respeito à sua relação com as normas do CDC, que em vários dispositivos também faz menção a entes públicos e ao serviço adequado. Para esclarecer esse difícil tema de harmonização legal, o Congresso prescreveu dois relevantes mandamentos. De acordo com o art. 1º, § 2º, a aplicação do CDUSP não afasta a necessidade de cumprimento do disposto: “II – na Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, quando caracterizada relação de consumo” (g.n.). Novamente resta claro que o CDUSP representa o corpo básico de garantias para todos os usuários de serviços públicos. Sendo assim, as normas do CDC poderão se somar a ele, mas jamais afastar sua aplicabilidade.
Para que essa acumulação normativa ocorra, é preciso que uma condição seja cumprida, qual seja: a caracterização de uma relação de consumo. Ao estabelecer essa condição, o legislador buscou corretamente esclarecer que, para certos serviços, não fará sentido a utilização dos meios adicionais de defesa do CDC, pois não haverá uma verdadeira relação de consumo em sentido estrito. É o que se vislumbra, por ilustração, em serviços uti universi, como os serviços de drenagem de águas pluviais, de varrição de ruas ou de segurança urbana, bem como em alguns serviços administrativos, como os de expedição de documentos ou de orientação da população.
O quinto parâmetro de aplicabilidade também envolve a relação do CDUSP com o CDC, mas se direciona exclusivamente aos serviços públicos prestados por particular. Conforme dispõe art. 2º, § 3º, aplica-se “subsidiariamente o disposto nesta Lei aos serviços públicos prestados por particular”. Com isso, buscou o legislador esclarecer que os serviços públicos executados indiretamente, ou seja, por particulares em nome do ente público titular se submeterá ao CDC e, apenas naquilo que houver lacuna, aos instrumentos do CDUSC.
Para particulares delegatários de serviços públicos como empresas concessionárias ou permissionárias ou mesmo entes do terceiro setor, as normas básicas são as do CDC e as normativas regulatórias, subsidiariamente aplicando-se o CDUSP naquilo que não tiver sido disciplinado por esses diplomas. Já para os serviços executados diretamente por pessoas jurídicas de direito público interno e, a meu ver, também por pessoas jurídicas estatais de direito privado que participem da Administração Indireta (como um consórcio privado regido pela Lei n. 11.107/2005), a regra se modifica. Aplica-se em geral o CDUSP como corpo de normas básicas e, adicionalmente, o CDC apenas se restar caracterizada a relação de consumo.
Enfim, o sexto parâmetro de aplicabilidade das normas do CDUSP é de natureza temporal e se encontra nas suas disposições finais. De acordo com o art. 25, a vacatio legis será de 360 dias para a União, os Estados e Municípios com mais de 500 mil habitantes; de 540 dias para Municípios com mais de 100 mil e menos de 500 mil habitantes e de 720 dias para Municípios com menos de 100 mil habitantes (art. 25). De modo adequado, o legislador reputou necessário conferir mais tempo a entes federados com menor população, presumindo que esses entes, em geral, dispõem de menos recursos financeiros, técnicos e de pessoal para implementar as novidades operacionais e organizacionais do CDUSP. Porém, a norma deve ser interpretada com cuidado.
Os prazos alargados não atingem qualquer serviço que se preste nos referidos municípios de menor porte, mas unicamente os que estiverem sob sua titularidade. Por exemplo, o prazo de implementação dos instrumentos de proteção dos usuários para os prestadores de distribuição de energia a domicílio (serviço federal) em um Município de 50 mil habitantes será de 360 dias, mas o prazo de adaptação dos serviços locais de educação básica nesse mesmo Município perfará 720 dias. A norma mais benéfica se limita a serviços de titularidade do Município demograficamente reduzido, não aos serviços de entes estaduais ou locais, ainda que prestados no território desses municípios menores.
Há situações ainda mais complexas, mas não explicitamente tratadas na lei, como a dos serviços sob titularidade compartilhada e a dos serviços sob gestão comum. No caso específico de titularidade compartilhada de serviço público entre Estado e Municípios em região metropolitana (serviço como atividade de interesse comum), o prazo deverá ser igualmente de 360 dias, dado que nesse caso não há razão fática a justificar o prazo mais alargado. Distinta é a hipótese de gestão associada de serviços públicos por consórcios públicos (sem titularidade compartilhada). Aqui, o prazo mais adequado parece ser o aplicável ao maior Município envolvido. Como o desempenho da atividade é conjunto a despeito da titularidade isolada ou individualizada, a adaptação do serviço a um automaticamente levará à concretização do mandamento do Código para todos os outros.
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PS. Registro meus agradecimentos ao Dr. Paulo Macera, mestre em direito administrativo pela USP, pela leitura crítica do esboço desse artigo, suas contribuições para a reflexão e sugestões de aperfeiçoamento do texto.
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