Thiago Marrara (SP)
A fase de “habilitação” nas licitações para obras, serviços e bens na União Europeia ora se mostra muito mais rígida, ora mais flexível que a tratada pela legislação brasileira. De uma parte, os requisitos de controle da participação de agentes de mercado na licitação são muitos mais amplos e exigentes que os nossos. A Diretiva 2014/24 requer não apenas a comprovação da capacidade de contratar, mas extrema lisura e seriedade por parte dos licitantes, dentro e fora do ambiente de contratação. Daí a razão pela qual impõe a exclusão de licitantes vinculados ao terrorismo e permite que se os afaste por comportamento anticoncorrencial ao longo do certame. Para compensar essa rigidez, o direito europeu, de outro lado, apresenta inúmeras técnicas assaz interessantes de comprovação de capacidade do agente econômico desejoso de contratar com o Estado, desde documentos únicos até técnicas de “empréstimo” de requisitos de habilitação.
A mistura normativa entre rigidez e flexibilidade procedimental não é impensada, involuntária. Ao se examinar os requisitos de contratação na Diretiva 2014/24, a todo o momento se nota que o objetivo do legislador comunitário foi o de incrementar, continuamente, a tutela de interesses públicos primários e o grau de competição nas licitações dos países-membros que se submetem ao modelo europeu. A flexibilidade e a rigidez são empregadas, portanto, sob escopos precisos, o que se perceberá na apresentação panorâmica da “habilitação” e, em seguida, dos curiosos mecanismos de comprovação da situação dos licitantes.
Ao disciplinar a contratação de fornecimento de bens, prestação de serviços e realização de obras, a Diretiva 2014/24 estabeleceu um conjunto de critérios formais de participação que ultrapassa de modo significativo aquele presente na tímida fase de habilitação das licitações brasileiras. O que chamamos de fase de habilitação no Brasil envolve, no direito comunitário, a verificação de múltiplos “motivos de exclusão”, de “critérios de seleção” e, eventualmente, a observância de limites de participação estipulados pela autoridade contratante em casos especiais.
Para que se possa celebrar um contrato com a Administração, não basta, pois, que a proposta apresentada esteja em conformidade com os requisitos, as condições e os critérios legais e constantes do ato convocatório (“anúncio de concurso”, na terminologia portuguesa). É preciso que incontáveis requisitos de ordem subjetiva se cumpram, ou seja, que a proposta provenha de um proponente “que não se encontre excluído” (nos termos do art. 57), que cumpra os critérios de seleção (do art. 58) e que respeite eventualmente os critérios não discriminatórios (do art. 65). Assim como se vislumbra nas leis brasileiras mais recentes, nas licitações europeias abertas, tanto os critérios de exclusão quanto os de seleção poderão ser examinados antes ou após a fase de julgamento das propostas (art. 56, 2).
Para poder contratar um agente econômico que participe das diferentes modalidades licitatórias europeias, compete à Administração Pública dos Países-Membros inicialmente verificar se o licitante deve ser excluído do certame e se, por razões adicionais sujeitas a ponderação, o próprio órgão contratante deseja excluí-lo, de ofício ou a pedido de outro país-membro. Grosso modo, os chamados “motivos de exclusão” dividem-se em compulsórios (art. 57, 1) e facultativos (art. 57, 4). Configurados os primeiros, a decisão administrativa será vinculada, embora aceite exceção; se verificado algum dos segundos, a exclusão será discricionária.
Os motivos de exclusão obrigatória do licitante dividem-se em dois grandes grupos:
De outra parte, a Diretiva cuida de hipóteses de exclusão facultativa. Isso inclui um rol bastante extenso de situações que, apenas para ilustrar, ocorrem quando: 1) o licitante descumprir as normas do art. 18, 2, referente a obrigações de ordem ambiental, social e laboral estabelecidas pelo direito da União Europeia, pela legislação nacional, por convenções coletivas e disposições internacionais em matéria ambiental, social e laboral; 2) os bens do licitante estiverem sob a administração judicial ou caso suas atividades estejam suspensas em razão de estado de insolvência; 3) a autoridade contratante demonstrar, por qualquer meio adequado, que o licitante cometeu falta profissional grave que coloque em dúvida sua idoneidade; 4) a autoridade tiver “indícios suficientemente plausíveis” para concluir que o licitante celebrou acordos com outros no intuito de distorcer a concorrência; 5) houver conflito de interesses que não possa ser eficazmente corrigido por outras medidas menos invasivas; 6) verificarem-se deficiências significativas ou persistentes na execução de um contrato público anterior, inclusive de concessão, que tenham levado à rescisão antecipada, à condenação por danos ou a outras sanções comparáveis; 7) o licitante apresentar declarações ou informações falsas para a verificação dos motivos de exclusão ou o cumprimento dos critérios de seleção; 8) o licitante tiver diligenciado no sentido de influenciar indevidamente o processo de tomada de decisão da autoridade contratante, de obter informações confidenciais suscetíveis de lhe conferir vantagens indevidas na licitação ou tiver prestado informações errôneas e capazes de influenciar materialmente as decisões de exclusão, seleção ou adjudicação.
Como se vislumbra, as causas de exclusão, obrigatórias ou facultativas, são amplíssimas e abrem espaço para que um licitante seja excluído do certame com ou sem base em uma condenação anterior transitada em julgado. Isso significa que, em certos casos, a Diretiva afasta a presunção de inocência anterior à condenação e permite formas de exclusão cautelar. No entanto, ela claramente resguarda o direito de ampla defesa dos interessados nesses casos (art. 57, 6). Para resguardar seus interesses, poderá o agente econômico fornecer provas de sua probidade e lisura, as quais, se consideradas suficientes, afastarão a exclusão. Ademais, o art. 57, 3 prevê que, quando a informação ou documentação apresentada, for ou parecer incompleta ou incorreta, ou quando faltarem documentos específicos, as autoridades adjudicantes poderão, salvo disposição em contrário da legislação nacional, solicitar aos licitantes que apresentem, acrescentem, clarifiquem ou completem a informação ou a documentação pertinentes num prazo adequado – respeitados, sempre, os princípios da igualdade de tratamento e da transparência. Fora isso, para proteção da lisura dos procedimentos, a Diretiva determina que os Estados membros especifiquem as condições de aplicação dos motivos de exclusão por normas nacionais e estabeleçam de modo claro que o prazo de exclusão de licitações não superará cinco anos da condenação (nos casos de exclusão obrigatória) e três anos a contar da data do fato pertinente (nos casos de exclusão facultativa).
Embora deflagrem semelhante efeito procedimental, ou seja, ocasionem o afastamento de um licitante, os critérios de seleção não se confundem com os motivos de exclusão acima abordados. Nos termos do art. 58, a Diretiva restringe os critérios de seleção a três grupos, os quais serão empregados pelas autoridades contratantes como condição de participação respeitando-se a regra da necessidade – ou seja, não poderão exigir mais que o necessário para verificar que o licitante poderá cumprir o contrato administrativo. Referidos grupos se relacionam com:
Diferentemente dos motivos de exclusão, os critérios de seleção, como apontados, não se afastam muito daquilo que já se conhece no direito brasileiro. Destarte, para fins de comparação jurídica, mais interessante que analisar seus conteúdos é apontar os interessantes mecanismos que a Diretiva 2014/24 oferece aos licitantes para comprovar tanto os requisitos de seleção, quanto a não incidência dos motivos de exclusão. Nesse particular, por buscarem facilitar a comprovação da situação dos licitantes, sobretudo num contexto em que se almejar estimular a concorrência transfronteiriça nos mercados públicos, as seguintes técnicas e normas merecem destaque e reflexão:
Em síntese, ao longo desse breve panorama acerca da etapa formal de contratação, ao mesmo tempo em que se pretendeu demonstrar que o direito comunitário europeu é extremamente rigoroso no tocante às condições subjetivas do licitante, objetivou-se acentuar a flexibilidade e as facilidades que se conferem aos órgãos públicos e aos licitantes para comprovarem suas condições de contratar com o Estado, promovendo-se assim uma mais efetiva concorrência transfronteiriça nos contratos públicos regidos pelo direito europeu em favor das liberdades fulcrais que sustentam o bloco de integração.
Ver video 346 Thiago Marrara (SP) Acordos de Leniência e sua Repercussão para a Administração Pública e para a Defesa da Concorrência |