Tarcila Reis (RJ)
A Reforma do Estado tem sido suscitada como medida necessária para a superação das crises econômica e política herdadas do governo Dilma Roussef. Um dos seus temas tradicionais é a descentralização. Trata-se de política pública que promove a transferência de competências políticas, administrativas e fiscais desde o centro para as unidades descentralizadas. Esta transferência de competências pode ocorrer entre entes federativos (desde a União para os Estados e os Municípios) ou dentro de um mesmo ente federativo (desde o poder executivo central para autarquias, empresas estatais, etc). Nesta nota, vamos nos restringir a discutir a descentralização entre entes federativos. Esta escolha se deve às dificuldades administrativas e fiscais enfrentadas atualmente pela União, Estados e Municípios, o que faz com que o equilíbrio do pacto federativo seja objeto de maior preocupação imediata.
Acontece que ainda não existe clareza sobre o objetivo da descentralização contemporânea. Nas Reformas do Estado precedentes, a descentralização tinha dois objetivos principais. O primeiro era de natureza política: a democracia sairia fortalecida se os Estados e os Municípios tivessem mais competências porque o cidadão, mais próximo do poder local do que do central, teria mais chances de participar da elaboração e da implementação das políticas públicas. O segundo objetivo era de natureza gerencial: as políticas públicas seriam implementadas de forma mais eficiente porque seu conteúdo seria mais adaptado à realidade local e as tomadas de decisão ocorreriam mais rapidamente porque envolveriam uma quantidade menor de agentes públicos. A sugestão desta nota é que o objetivo da “des-centralização” contemporânea deve ser concentrar mais esforços na solução dos problemas de articulação do que na divisão de competências entre os entes federativos. Entendemos que o mapeamento estanque de competências e discussões a respeito de sua distribuição entre os entes federativos precisam incorporar o aspecto dinâmico de sua execução para tentar fornecer soluções efetivas. Isto não significa confundir descentralização com cooperação, mas argumentar que cooperação é elemento subjacente à des-centralização contemporânea. É que identificamos a dinâmica entre os entes federativos como desafio crucial a ser enfrentado num Estado cuja complexidade dificulta a pecha de “descentralizado” ou “centralizado”, ou inviabiliza projeto num ou noutro sentido. Há, e assim deve ser, funções mais ou menos centralizadas e descentralizadas, o que torna a divisão de suas competências dependente da forma de articulá-las. Neste sentido, a proposta de focar mais na articulação do que na divisão de competências está fundada em três argumentos: (1) políticas públicas nacionais dependem de apoio político local; (2) os entes federativos são técnica, financeira e administrativamente interdependentes e (3) os efeitos da descentralização variam de acordo com a capacidade de articulação dos representantes dos entes federativos envolvidos na decisão de descentralizar.
Primeiro, a articulação entre os entes federativos deve ser o foco da des-centralização porque políticas públicas nacionais dependem de apoio político local para serem implementadas. Isto significa que uma mesma política pode ser mais ou menos bem sucedida a depender do grau de comprometimento obtido via articulação política com os entes descentralizados. Por exemplo, no final dos anos 90, o presidente Fernando Henrique Cardoso utilizou o discurso da estabilidade macroeconômica para promover o programa de ajuste fiscal (Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados) perante os estados federados. Isto ocorreu por meio de uma condução nacional da política fiscal, mas cujo sucesso foi construído no local: a renegociação da dívida dos estados foi condição para o estabelecimento de regras que garantissem o equilíbrio fiscal. A fim de garantir a aderência ao discurso federal e, assim, viabilizar o programa de ajuste fiscal, sua equipe econômica foi buscar apoio dos estados por meio da negociação das suas dívidas com a União. Em troca de reescalar seus débitos, 25 dos 27 estados da federação abriram espaço para o ajuste, cujas regras seriam previstas pela lei de responsabilidade fiscal. Pois bem, o ajuste fiscal ensaiado pela presidente afastada Dilma Roussef era também uma política nacional, mas sem qualquer base de apoio local. Ao contrário, o déficit de apoio local era tão grande que 11 estados federados foram ao Supremo Tribunal Federal discutir a mesma dívida que havia sido exitosamente acordada há 15 anos. E o fizeram com base em argumento frágil. Perante o STF, os estados basicamente alegam que legislação aprovada durante o governo Dilma (a lei complementar 148/2014, regulamentada pelo decreto 8.616 de 29 de dezembro de 2015, e a lei complementar 151/2015) mudou indexador e previu desconto no saldo devedor, condições e prazo para a renegociação da dívida dos Estados e Município com a União. Resumidamente, modificou-se a forma de cálculo do saldo da sua dívida com a União, pretendendo a aplicação de juros simples, a despeito de os juros compostos serem ordinariamente utilizados no mercado. A consequência da interpretação favorável aos estados federados seria o aumento dos descontos no saldo devedor e, assim, a redução das suas dívidas. A consequência para a União seria subsidiar as dívidas dos estados, já que seu financiamento se dá por meio de juros compostos, aumentando sua própria dívida. O fato é que não houve alinhamento político entre a União e os estados federados antes da mudança legislativa, desnaturando a segurança dos acordos firmados no final da década de 90 para pagamento da dívida, os quais viabilizaram o program de ajuste fiscal à época. Mais, a falta de alinhamento político aprofundou o dissenso e escancarou o desequilíbrio federativo. Neste contexto de déficit de articulação política, é interessante notar a opção do Supremo por uma solução política para divergência sobre o tipo de juros a ser aplicável. Em 27 de abril passado, a maioria do STF decidiu conceder sessenta dias para que o impasse federativo fosse tratado em seara política. A proposta surgiu do ministro Luis Roberto Barroso, que defendeu o “esforço para devolver a matéria para a mesa de negociação política", ressaltando que os autores das ações “são frações do mesmo país”. Isto significa que, apesar da lei nº 9.496/1997, o equilíbrio fiscal dificilmente será garantido pelo exercício isolado por cada ente federativo de sua gestão fiscal. A compatibilização da autonomia fiscal com um programa nacional de ajuste fiscal parece ser condicionada à articulação entre a União e as unidades descentralizadas.
Segundo, a articulação entre os entes federativos deve ser o foco da descentralização em razão da interdependência das entidades federativas para implementar suas respectivas políticas públicas de forma bem sucedida. Por mais criatividade que tenham, os estados e municípios dificilmente deslancham uma política pública isoladamente. Se é verdade que a União depende do apoio político dos estados e municípios para enraizar uma política nacional nos quatro cantos do país, ela pode se arriscar a dar sozinha os primeiros passos na sua implementação porque goza de lastro técnico, administrativo e financeiro. Já a maioria dos estados e quase a totalidade dos municípios não conhecem este luxo. Em regra, não conseguem nem iniciar o planejamento de uma política pública sem apoio técnico, administrativo ou financeiro dos demais entes federativos, ainda que tenham competência legal exclusiva sobre a matéria. Esta interdependência significa que a simples transferência de competências desde a União para os estados e municípios apresenta um modelo estático de organização do Estado distante da realidade de necessária implementação compartilhada de políticas. É o que acontece, por exemplo, com o tema de gestão, tratamento e disposição final de resíduos sólidos, cuja competência é originalmente municipal. A recente euforia com o tema decorreu da pressão legal para eliminar lixões até agosto de 2014, sob pena de responsabilidade por crime ambiental, multas e suspensão de verbas federais (Lei 12.305 de 2010). Esta euforia foi inclusive bancada por recursos do Ministério de Meio Ambiente para que o estados elaborassem estudos de regionalização, apontando, assim, quais municípios seriam afins. O estado de Minas Gerais ilustra o argumento da interdependência no caso de resíduos sólidos: foram firmados contratos de programa entre o estado e 43 municípios da região metropolitana de Belo Horizonte. As titularidades municipais do serviço foram consideradas como de “interesse comum” por meio da Lei Complementar 89 de 2006, que instituiu a região metropolitana de Belo Horizonte. O estado tem funcionado como ente articulador dos municípios e fato é que a parceria público-privada está em execução, ao passo que a massiva maioria dos municípios brasileiros não alcançaram a meta legal. Da mesma forma, em decisão de 2013 (Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842-RJ) a respeito da titularidade do serviços de saneamento básico em região metropolitana do Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o interesse comum (Estado e municípios) da matéria, mas freou a concentração de poder decisório em qualquer ente da federação, além de deixar em aberto a forma de governança da região metropolitana que as leis estaduais instituidoras podem lhe conferir. Ou seja, não há rigidez quanto à forma de realizar a articulação, mas esta é subjacente às demandas decorrentes da regionalização.
Terceiro, os resultados da descentralização variam de acordo com a capacidade de articulação dos entes federativos envolvidos na decisão de descentralizar. É que historicamente a proposta de descentralização às vezes parte da União e outras vezes dos estados e municípios. O ponto de partida conta para o resultado da política pública. Em razão de a União, os estados e os municípios possuirem motivações diferentes para propor a descentralização, suas respectivas capacidades de articular seus interesses contaminarão os resultados do movimento descentralizador-centralizador. Ou seja, se, por exemplo, um ente federativo conseguir se desvencilhar de obrigações administrativas, mas mantiver o poder financeiro, haverá descentralização administrativa sem a respectiva descentralização fiscal. A consequência é a transferência de obrigações administrativas sem a capacidade de levantar os recursos para cumpri-las. Foi o que aconteceu no âmbito da política educacional brasileira, cuja massiva municipalização de atribuições é totalmente incompatível com a capacidade fiscal dos municípios. Para tentar resolver o problema e promover o financiamento tripartite da educação, o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) foi criado em 1996. Embora uma iniciativa positiva, o financiamento tripartite não ficou imune ao fato de a União ter liderado sua constituição, sem uma balanceada articulação dos Estados e Municípios. Dos efeitos colaterais do FUNDEF, um dos mais criticados na literatura é a incompatível participação da União, considerando o aumento de responsabilidades das unidades descentralizadas. Como estes fundos de financiamento para políticas compartilhadas são soluções transitórias, em 2007 foi necessário novo processo de negociação para criação de nova fonte de financiamento para as competências já estabelecidas. No caso concreto, os Municípios sairam da negociação com ainda mais obrigações e sem recursos correspondentes, já que o FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) expandiu o benefício para todo o ciclo de educação básica e incrementou a participação municipal na educação fundamental. Em 2020, o FUNDEB será extinto e novo processo de negociação sobre as fontes de financiamento da educação vai decidir as consequências da descentralização. Este processo gerará mais ou menos dependência dos municípios vis-à-vis os estados e a União, de acordo com sua capacidade de articulação durante a elaboração da política descentralizadora. Finalmente, para reforçar nosso argumento segundo o qual os efeitos da descentralização variam de acordo com a capacidade de articulação dos representantes dos entes federativos envolvidos na decisão de descentralizar, vale mencionar a “transferências voluntárias” desde a União para os estados e municípios. As transferências voluntárias explicitam a concentração de receita na União, destacando a importância da capacidade de articulação dos entes potencialmente beneficiários. É que as transferências voluntárias são a possibilidade de a União, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, repassar recursos aos estados e municípios. O problema é que se trata de exercício ad hoc do manuseio dos recursos públicos. Ora, se os estados e municípios têm capacidades distintas de articular a obtenção de uma “transferência voluntária”, os estados e municípios sofrerão impactos distintos quando tiverem que assumir responsabilidades administrativas decorrentes de descentralização. Os que conseguirem obter mais transferências voluntárias estarão mais aptos a enfrentar as dificuldades financeiras decorrentes do aumento dos encargos administrativos.
Onde há crise, há apelo para, mais uma vez, reformar o Estado. Reformando-se, o Estado aprendeu a se salvar das crises, pelo menos por um período. Neste período de vislumbrar mais uma onda de grandes reformas, defendemos que a des-centralização contemporânea se empenhe a criar soluções para as dificuldades de articulação da governança intergovernamental. Esta proposta não negligencia a importância da divisão de competências, mas enfrenta sua insuficiência para resolver o problema dos desequilíbrios entre os entes federados. Parece que precisamos reconhecer que o pacto federativo é continuamente pactuado.