Sílvio Luís Ferreira da Rocha (SP)
I. O tema do desvio de finalidade está na pauta do dia, em especial pela nomeação de um ex-presidente para o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil para, segundo os adeptos do desvio de finalidade, outorga-lhe foro privilegiado.
A oposição ingressou com medidas judiciais contra o ato. A par disso, respeitáveis opiniões jurídicas favoráveis e desfavoráveis foram produzidas nos meios de comunicação. Escrevo este artigo para expressar como professor minha opinião jurídica sobre o tema e responder às inquietantes dúvidas suscitadas.
II. É certo que o ordenamento jurídico dispensa tratamento normativo à finalidade, vista, em última análise, como “o bem jurídico da vida pretendido pelo ato ou, em outras palavras, o resultado previsto legalmente e correspondente à tipologia do ato administrativo ou ao objetivo intrínseco à categoria do ato”(Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, cit., 29a ed., p. 409;. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, cit., 23a ed., p. 209; Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, cit., 3a ed., 2a tir., vol. I, p. 531). Por isso afirma-se com certa frequência que “não se pode buscar através de um dado ato a proteção de bem jurídico cuja satisfação deveria ser, em face da lei, obtida por outro tipo ou categoria de ato” e, se isso ocorrer, possivelmente, estar-se-á diante daquilo que a doutrina denomina de “desvio de poder” ou “desvio de finalidade”. Em suma, haveria desvio de poder quando o agente visa a satisfazer finalidade alheia à natureza do ato utilizado, de modo que o desvio de poder representaria um mau uso da competência, na medida em que o agente busca finalidade incompatível com a natureza do ato.(Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, cit., 29a ed., p. 410.).
O desvio de poder manifestar-se-ia de duas formas: (a) quando o agente busca finalidade alheia ao interesse público, como no caso em que usa de poderes para beneficiar a si próprio ou parente ou para prejudicar inimigos, como negar a expedição de alvará de funcionamento a novo estabelecimento a fim de evitar concorrência com seu próprio estabelecimento ou (b) quando o agente pretende uma finalidade – ainda que de interesse público – alheia a categoria do ato que utilizou como remover alguém para castigá-lo.(Idem, p. 411).
Essa teoria surgiu em França para minorar os efeitos prejudiciais da imunidade dos atos discricionários ao controle jurisdicional. No começo do século XIX a França criou o recurso por excesso de poder para controlar, excepcionalmente, os atos de autoridade em alguns dos seus aspectos. Nessa linha evolutiva foi construída a tese do desvio do poder, que, em síntese, afirma que a liberdade de decisão conferida ao órgão administrativo não o autoriza a afastar-se do fim em consideração ao qual o poder a outorgou. Segundo Caio Tácito, Temas de Direito Público, 1º. volume, p. 997, “a primeira decisão do tribunal administrativo francês, homologada pelo Imperador, que se constitui como semente dessa figura de controle jurisdicional foi o famoso aresto no caso Lesbats, emitido em 25 de fevereiro de 1864 e confirmado por outra decisão de 7 de junho de 1865. Anulando ato do Prefeito de Fontainebleau que, no uso do poder de polícia, negara autorização ao recorrente para o ingresso de suas viaturas no pátio da estação de estrada de ferro a fim de servir aos passageiros que desembarcavam, caracterizou a decisão judicial que o objetivo do ato administrativo não era, como devia ser, o fim daquela competência discricionária - o atendimento satisfatório dos usuários - mas em verdade o de garantir outro transportador, já autorizado, o monopólio do serviço”.
A partir da constatação de que toda atividade administrativa deve dirigir-se à consecução de um fim, determinado sempre, expressa ou tacitamente, pela norma que atribui o poder para atuar, chegou-se à conclusão que o afastamento da autoridade do fim que condiciona o exercício de sua competência, autoriza considerar ilegítimo o ato ou a decisão adotada “porque os poderes administrativos não são abstratos, utilizáveis para qualquer finalidade, mas funcionais, outorgados pelo ordenamento em vista de um fim específico e o afastar-se do mesmo obstrui a fonte de sua legitimidade”.(Eduardo Garcia de Enterria, Curso de Direito Administrativo, p. 402).
III. Ocorre que a aplicação dessa teoria não é tão simples como parece.
Primeiro por que os atos administrativos podem ser praticados levando-se em consideração fins públicos e fins privados e nem sempre nos encontramos na presença de uma intenção inadequada. Por essa razão, a teoria do desvio de poder ou do desvio de finalidade evoluiu de uma mera concepção subjetiva para uma concepção objetiva em que o ato será viciado quando não mantiver uma relação adequada com a finalidade em vista da qual poderia ser praticado e, assim, o que o viciaria não seria o defeito de intenção, quando existente, mas o desacordo objetivo entre a finalidade do ato e a finalidade da competência.
Nesse sentido, salvo melhor juízo, a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“No desvio de poder, ao contrário do que habitualmente se afirma e do que nós mesmos vínhamos sustentando, nem sempre há um ‘móvel’, isto é, uma intenção inadequada. Com efeito, o agente pode, equivocadamente, supor que uma dada competência era prestante de direito, para a busca de um dado resultado e por isto haver praticado o ato almejando alcançá-lo pela via utilizada. Neste caso não haverá intenção viciada”.
“É certo, entretanto, que o frequente, o comum, é que exista vício de intenção, o qual poderá ou não corresponder ao desejo de satisfazer um apetite pessoal. Contudo, o ato será sempre viciado por não manter relação adequada com a finalidade em vista da qual poderia ser praticado. O que vicia, portanto, não é o defeito de intenção, quando existente - ainda que através disto se possa, muitas vezes, perceber o vício - mas o desacordo objetivo entre a finalidade do ato e a finalidade da competência”. 5(Curso de Direito Administrativo, pp. 349 e 350) (g.n).
Por isso, autor como Eduardo Garcia de Enterria sustentou que “o vício de desvio de poder é um vício de estrita legalidade. O que se controla é o cumprimento do fim concreto assinalado na norma habilitante; esse controle se realiza mediante critérios jurídicos estritos e não mediante regras morais”. 6(Curso de Direito Administrativo, 2a. edição, p.349).
A teoria do desvio do poder recebeu entre nós tratamento especial por Caio Tácito em tese elaborada para obtenção da livre-docência de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1951, aprovada por unanimidade, pela banca examinadora constituída por Oscar Tenório, Roberto Lyra, Seabra Fagundes, Carlos Medeiro Silva e Themistocles Cavalcante, denominada “o Desvio de Poder em Matéria Administrativa”. Caio Tácito após discorrer com maestria a respeito da Teoria do Desvio de Poder na França, Itália, Portugal e Estados Unidos, trata do tema no Brasil com o firme propósito de evidenciar a inteira compatibilidade da teoria do desvio de poder com o direito positivo nacional e o sistema judiciário de controle da Administração. De acordo com ele, a doutrina brasileira e a jurisprudência nacional aceitam pacificamente a opinião que restringe a ação jurisdicional em matéria administrativa estritamente ao controle de legalidade. Assim, a anulação tanto ex officio, como judicial, somente ocorrerá em virtude de vício de legalidade. O desfazimento do ato administrativo por motivos de oportunidade e conveniência, ou seja, em função do mérito, constitui a figura da revogação, monopolizada pela instância administrativa.(Temas de Direito Público, Estudos e Pareceres, 1o. volume,p.138)
As divergências, segundo ele, estão em localizar onde a função jurisdicional controladora se exaure e onde se inicia o território da liberdade discricionária da Administração. A legalidade do ato administrativo não é composta exclusivamente de fatores externos ao ato relacionados com a competência, a forma ou o objeto. A legalidade se interioriza nos motivos e, sobretudo, nos fins prescritos à autoridade administrativa. O requisito da finalidade é a disciplina principal do ato em relação ao interesse público. A administração não pode agir, imprecisamente, segundo a veleidade ou o capricho do agente público. A Administração deve sempre visar um objetivo prefixado na sua competência própria. (Temas de Direito Público, Estudos e Pareceres, 1o. volume,p.138).
A finalidade vincula permanentemente a conduta administrativa e se a lei permite discricionariedade no tocante à escolha dos motivos ou à determinação do objeto, o mesmo não ocorre em relação ao fim, pois a atribuição de um órgão administrativo pressupõe uma destinação explícita ou implícita na regra de competência. (Ibidem, p. 139)
A imposição legal de um fim previamente consagrado representa um limite ao poder discricionário, à capacidade de opção do administrador. A inobservância da finalidade pressuposta do ato vicia-o irremediavelmente, eliminando qualquer efeito jurídico, exceto, subsidiariamente, o de responsabilizar o Estado e o Servidor. Desta forma, não é possível ilidir o fim legal do ato substituindo-o por outro fim público ou privado. Não é a qualidade do fim, mas a sua natureza legal que legitima a prática administrativa. (Ibidem, p. 140)
Entretanto, admite o referido autor a conjugação da finalidade legal da competência com outro qualquer fim, de ordem pública ou privada. Isso não invalida o ato. Assim, além de atender a finalidade legal, a autoridade administrativa pode atender com o mesmo ato a quaisquer outros fins públicos ou privados. Não basta, portanto, provar a existência de uma finalidade alheia à previsão da lei: é necessário expor, meridianamente, a ausência do interesse público específico em virtude do qual foi conferida à autoridade administrativa a finalidade discricionária.(g.n)(Ibidem, p. 157)
Nota-se, portanto, do exposto, até o presente momento, que a prova da existência de uma finalidade alheia à previsão da lei, por si, não é fundamento para invalidar-se o ato administrativo por desvio de finalidade, mas, pelo contrário, exige-se a demonstração de ausência total do interesse público específico em virtude do qual foi conferida à autoridade administrativa a competência discricionária. No caso da nomeação do ex-presidente como Ministro Chefe da Casa Civil não se pode deixar de antever um interesse legítimo da Presidenta em reorganizar a base política de sustentação do seu governo, o que seria possível pela experiência política do nomeado.
IV. Além disso, deve-se atentar para o fato de que o ato de nomeação de um ministro não é propriamente um ato administrativo, mas um ato político. A tripartição de funções não esgota todas as possíveis atividades do Estado, pois há a função política ou de governo, que consiste na direção suprema e geral do Estado e lhe determina os fins, como: a convocação extraordinária do Congresso Nacional; a nomeação de comissões parlamentares de inquérito; as nomeações de ministros de Estado; as declarações de guerra; a edição de medidas provisórias; o veto. As possíveis manifestações do exercício da função política decorrem diretamente da Constituição, dizem respeito mais à política, à condução dos negócios do País, demandam liberdade de opção na escolha das soluções dos problemas que se apresentam.
Põe-se aqui com maior intensidade a questão da possibilidade do controle pelo Poder Judiciário de tais atos. Mais uma vez é Caio Tácito quem nos adverte que:
“A ação jurisdicional sobre atos administrativos deve-se confinar, porém, nos precisos limites do controle de legalidade. Não pertence ao Poder Judiciária a apreciação da oportunidade ou da conveniência. Não pode o juiz penetrar, nem de leve, no terreno discricionário, substituindo a vontade do administrador pela sua. A injustiça ou a inconveniência, a inoportunidade ou o desacerto do ato administrativo são territórios vedados à apreciação judicial. O exame do mérito pertence, por inteiro, à autoridade administrativa e não pode ser alcançado pela revisão jurisdicional”.
“A discrição administrativa opera, interiormente, com plena liberdade de critérios; o controle judiciário somente lhe patrulhará as fronteiras, evitando as incursões ilegais e excessivas.” (Temas de Direito Público, Estudos e Pareceres, 1o. volume, p. 74 e 75).
Por outro lado, não obstante a forma de nomeação (livre indicação do Presidente da República) os Ministros de Estado são titulares de cargos constitucionais e agem em nome e por conta do Estado, como titulares do direito de participação ativa na vida deste, em observância ao princípio democrático e republicano. Desta forma, o que os habilita a exercer às respectivas funções não é nenhuma qualidade profissional, mas o status político de cidadãos. Os seus direitos e os seus deveres advêm diretamente da Constituição e das leis, de modo que a relação jurídica entre eles e o Estado é estatutária, institucional. (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. II, p. 288).
Digo isto, por que a restrição a que o nomeado ocupe o cargo de ministro com base na teoria subjetiva do desvio de poder significa, em última análise, uma restrição aos respectivos direitos fundamentais políticos que o permitem participar dos assuntos políticos do Estado. Assim, impedir o nomeado de ser empossado como Ministro de Estado com fundamento na antiga lição do desvio de finalidade consiste em criar uma proibição estranha ao ordenamento jurídico, pois, como regra, a vedação de assumir função pública depende de circunstâncias jurídicas específicas, como o trânsito em julgado de sentença condenatória criminal ou o trânsito em julgado de sentença condenatória em ação de improbidade administrativa (Art. 15, incisos III e V da Constituição Federal).
Este é um tema tão caro ao Estado Democrático de Direito que Pimenta Bueno ao analisar o assunto previsto no artigo 8º, inciso II, ainda na Constituição do Império destacava que “o gozo dos direitos políticos, a participação ou intervenção no governo ou regime político do Estado é tão importante, que a lei não devia deixar de prever as circunstâncias em que ele deve ser interrompido em benefício da segurança social”(Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, 6ª edição, p.596).
Desta forma, a centralidade dos direitos fundamentais obriga-nos a rever a compreensão de antigos institutos, criados numa época em que os Direitos fundamentais ainda não haviam sido erigidos em centro irradiador de efeitos hermenêuticos e integrativos sobre todos os demais institutos jurídicos.
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