Silvio Guidi (SP)
A cada dia que passa, as notícias sobre a falência da saúde pública no Brasil assustam mais. É inevitável tropeçar em reportagem que falam sobre a falta de medicamentos em unidades públicas assistenciais, no sucateamento e no mau uso de equipamentos, na falta de hospitais e dá má estrutura dos já existentes. Também muito se diz sobre a falta de médicos e demais profissionais da saúde. Em contrapartida, não se vê no orçamento alternativas relevantes para ampliar a verba púbica destinada à saúde. É que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil, para cumprir a obrigação que se propôs, de prestar de saúde de forma universal e gratuita, deveria aumentar em 300% o orçamento a ela destinado. Nem o maior dos otimistas diria que isso é possível.
Mas há um recado constitucional que vem sendo solenemente ignorado pelos nossos gestores públicos, qual seja o dever de priorizar ações preventivas de saúde (artigo 198, II da CF). Essa escolha constitucional nada tem de aleatória. De um lado, porque é melhor ao cidadão não ser acometido de certa doença do que dela ser curado, ainda que o processo de cura seja rápido. De outro, porque a atuação preventiva é mais barata do que aquela que combate a doença instalada. Existem várias formas de prevenção de doenças, desde a vacinação, a conscientização para evitar o fumo, o consumo de álcool em excesso, a utilização de preservativos, o estímulo a uma alimentação saudável etc. Mas, um dos mais eficientes é o saneamento básico. Segundo a OMS, a cada dólar investido em saneamento são economizados aproximadamente mais de quatro dólares.
Embora os números possam trair os operadores do direito, pouco íntimos do seu manuseio, chama a atenção o fato de o Brasil poder, ao invés de tentar ampliar o orçamento da saúde em 300%, tentar economizar 400% para universalizar o atendimento, por meio de investimento em saneamento. Nessas contas de mais e menos, o que fica evidente é que o atingimento da universalização da saúde passa pela diminuição do consumo. Não porque o sistema de saúde diminuirá o atendimento à população, mas porque a população precisará menos de atendimento se tiver acesso amplo a saneamento básico.
Mas, o investimento em saneamento no país está longe do ideal. De acordo com dados do Instituto Trata Brasil, 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e faltam a 100 milhões serviços de coleta de esgoto. Além disso, aproximadamente 43% do esgoto gerado no país não é tratado. Em resumo, 1,2 bilhão de m³ de esgoto são despejados na natureza. Além do mal causado ao meio ambiente, a falta de serviços de saneamento tem impacto gigantesco na saúde da população. Por exemplo, no ano de 2013 (ainda de acordo com dados do Trata Brasil), foram gastos 140 milhões de reais com internações de doenças gastrointestinais (diarreia, especialmente). Além disso, em razão do afastamento de trabalhadores, em decorrência dessas doenças, estimou-se um impacto negativo na economia de aproximadamente 240 milhões de reais.
Apesar desse quadro catastrófico, os investimentos públicos no país são tímidos. O custo estimado para universalizar os serviços de saneamento, nos próximos 20 anos, é de aproximadamente meio trilhão de reais. Mas, de acordo com o próprio Governo Federal, os investimentos federais no setor, no ano de 2017, foram de apenas 9 bilhões. Diante desse quadro, a infraestrutura do saneamento passa a depender, preponderantemente, da contraprestação financeira paga por quem consome tais serviços públicos. Ou seja, vive o saneamento do regime tarifário.
Já não é de hoje que, nos grandes centros urbanos, é possível identificar uma massa populacional suficiente para usufruir e remunerar os serviços de água e esgoto. Nessas regiões, o preço pago pelo usuário contempla: o serviço consumido em si; o custo direto e indireto para a prestação; os valores para manutenção e ampliação da infraestrutura e; o custeio, parcial ou integral, do consumo de serviços de saneamento por aqueles que não detêm condições de adimplir com os valores da tarifa. Este último insumo, por demais legítimo, é conhecido como tarifa social. Sua lógica, de subsídio entre usuários (cruzado), tem fundamento no princípio da solidariedade (art. 3º, I da CF).
Certamente, todos esses componentes de preço devem ter dose ótima para formar a tarifa. Qualquer exagero pode elevá-la demasiadamente, colocando em risco a possibilidade de pagamento. Essa dificuldade pode impactar na arrecadação e, por consequência, inviabilizar a continuidade da prestação. Por isso, a universalização dos serviços de saneamento, nos centros urbanos, ocorre de forma paulatina. A expansão da rede, em certa medida, não afetará tanto o preço da tarifa. É que, ao passo que é expandida, o consumo também aumenta, havendo o retorno financeiro do investimento anteriormente realizado. Isso, desde que a população atendida pela expansão tenha condição de arcar com o custo da tarifa.
Já a população carente sofre uma duplamente com essa lógica. Primeiro, porque há um limite de subsídio, o qual deve equilibrar a ampliação do custo pago por aqueles com capacidade financeira sem onerá-los excessivamente, sob o risco de também torná-los incapazes da pagar a tarifa. Segundo, e o que é mais trágico, é que a expansão da rede não pode focar de forma desmedida os vulneráveis, porque na hipótese deles não há o retorno do investimento da expansão por meio da implementação da tarifa a partir da disponibilização do serviço. Portanto, a expansão da rede de saneamento, para atender a população carente, ocorre na carona da ampliação para atendimento da população economicamente capaz de pagar a tarifa. E tudo isso é ainda mais trágico porque, sem saneamento, essa parcela da população tem maior chance de adoecer. Entretanto, a condição de miserabilidade também a impede de contratar serviços privados de saúde, tendo de buscar a rede pública, que é incapaz de atendê-la.
Esse quadro ainda é assustadoramente piorado quando se fala de regiões menos povoadas. Vários fatores desestimulam a implantação de uma rede de saneamento. Ainda que haja na região uma parcela da população economicamente capaz de pagar a tarifa, o custo da implementação do sistema será demasiadamente alto, sendo que sua repartição entre os usuários (economicamente capazes ou não) gerará uma tarifa cara demais para ser paga. Ou seja, nas regiões menos povoadas, a chance de a população miserável receber serviços de saneamento é ainda menor.
Diante disso tudo, no Brasil, apesar do serviço de saneamento ser público, sua prestação é direcionada, majoritariamente, às parcelas da população de maior poder econômico. A partir dessa lógica, ainda que chegue o dia da universalização, um número significativo de brasileiros já terá adoecido ou até morrido por falta de serviços de saneamento, seja pela ausência de sua prestação em si ou ainda pelo nefasto impacto que essa ausência causa no orçamento da saúde pública.
É preciso, portanto, romper com a premissa de que a ampliação da infraestrutura de saneamento deve, necessariamente, encaixar-se na dinâmica de projetos financeiros (project finance) onde há um aporte inicial de recursos na fase de implementação do serviço (fase de obras) e, posteriormente, o retorno desse investimento (com lucro) a partir da disponibilização do serviço e do recebimento da contraprestação tarifária. Deve-se reconhecer que numa série de hipóteses os serviços de saneamento serão deficitários, especialmente, como se viu, quando prestados à população mais carente e/ou que está longe dos grandes centros.
A alternativa a esse quadro caótico é a injeção de dinheiro público na infraestrutura do saneamento. A partir desse movimento, a ampliação da rede não mais dependerá da capacidade econômica do usuário ou da sustentabilidade financeira do projeto, mas sim da condição do Estado em aportar recursos. Essa atuação estatal pode ocorrer de várias formas.
Numa delas, o Poder Público assume a construção da infraestrutura de saneamento, entregando-a à empresa estatal ou ao concessionário para ser mantida a operada. Outra, típica das concessões patrocinadas (previstas no artigo 2º, §1º da Lei de PPPs nº 11.079/2004), é a contraprestação pública adicional à tarifa paga pelo usuário. Tal contraprestação, pode tanto substituir quanto incrementar o subsídio cruzado entre usuários. Ainda no âmbito das concessões patrocinadas, é possível que a atuação estatal se dê por meio de aporte de recurso público (art. 6º, §2º da Lei de PPPs). Esse aporte serve para diminuir o custo da fase de implementação do projeto. Ao invés de buscar empréstimos no mercado, e transferir os custos (juros) desse empréstimo para o projeto, aumentando o preço da tarifa, o privado recebe a totalidade ou a parcela do valor para realização das obras de infraestrutura diretamente da Administração contratante. Ainda no ambiente da concessão patrocinada, é possível a inserção de receitas alternativas ao projeto. Elas derivam de projetos associados e também auxiliam na diminuição do preço da tarifa.
Há, ainda, no ambiente da Lei de PPPs as alternativas das concessões administrativas. Nelas, também podem haver aportes e receitas alternativas. No entanto, a remuneração paga ao prestador deriva exclusivamente da Administração contratante. Essa alternativa é ideal para aquelas situações em que a implementação da infraestrutura e a prestação dos serviços de saneamento é executada em regiões pouco povoadas ou onde a população habitante é, em sua maioria, extremamente carente.
A partir da constatação da necessidade de injeção de verba estatal nos projetos de saneamento deficitários, é de se indagar se as receitas previstas para o orçamento da saúde pública podem ser utilizadas. É que, apesar dos serviços de saneamento contribuírem muito para a saúde da população, seu objetivo não é a saúde em si, mas o fornecimento de água consumível, a coleta e o tratamento do esgoto.
Na CF, consta obrigação a cada um dos entes federativos de gastar certo percentual de seu orçamento com atividades destinadas à saúde da população. Em 2012, depois de uma série de discussões acerca do que efetivamente poderia ou não ser considerado como gastos com saúde, foi editada a Lei Complementar nº 141, que disciplinou o tema. Nos vários incisos do artigo 3º, onde se localizam as atividades públicas que podem ser financiadas com verba derivada do orçamento da saúde, a lei destaca duas hipóteses em que o saneamento se enquadra. A primeira (prevista no inciso VI) é para a realização de saneamento básico de domicílios e pequenas comunidades, com a necessidade de anuência do Conselho de Saúde do ente federativo financiador. A segunda (inciso VII), permite a utilização de verba destinada à saúde para o financiamento do saneamento de distritos sanitários indígenas e quilombolas. Mas, no artigo 4º, inciso V, a norma diz que não serão considerados como gastos de saúde, aqueles de saneamento voltados para ações financiadas ou mantidas por meio de instituição de taxa, tarifa ou preço público como contraprestação ao serviço prestado.
A interpretação da norma que recorta as possibilidades de vinculação do orçamento da saúde a gastos com saneamento deve se dar com certa pragmática, especialmente porque, como se viu, a prestação de serviços de saneamento tem impacto relevantíssimo na saúde pública. De uma interpretação literal, principalmente desvinculada do princípio republicano constitucional previsto no inciso III do artigo 3º da CF (é objetivo da república erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais), pode derivar a perpetuação da ausência de universalização dos serviços de saneamento, com impactos nefastos à população mais carente. É possível compreender a norma, portanto, da seguinte forma:
(i) a verba da saúde pode ser utilizada para a infraestrutura de saneamento de comunidades indígenas e quilombolas;
(ii) a verba da saúde pode ser utilizada para a infraestrutura de saneamento de domicílios e de pequenas comunidades, desde que, quando de sua utilização, não esteja sendo cobrada taxa, tarifa ou preço público (o que parece lógico, já que o serviço não estará disponível para fruição, sendo inviável a cobrança de contraprestação financeira). Isso não significa que, se houver cobrança por serviços de fornecimento de água, a verba da saúde não possa ser utilizada para financiar a infraestrutura de coleta e destinação de esgoto.
(iii) a verba da saúde pode ser utilizada para remunerar os serviços prestados à parcela da população que não reúne condições para realizar a contraprestação.
(iv) a verba da saúde não pode ser utilizada para a implementação ou prestação de serviços de saneamento não direcionados às zonas domiciliares, como as da indústria e do comércio.
Trazendo as permissões da LC 141 para as hipóteses de utilização de recursos públicos nos projetos de saneamento, surgem algumas alternativas. A primeira é a vinculação, ao orçamento da saúde, de aporte público e contraprestação pública numa concessão administrativa para levar saneamento a domicílios situados em regiões menos povoadas. A concessão administrativa também poderia ser utilizada para levar saneamento a população de comunidades indígenas e quilombolas. Também é possível utilizar o orçamento da saúde para aporte público em concessões patrocinadas, desde que a infraestrutura construída esteja voltada prioritariamente ao atendimento de domicílios. Não há óbice para que, a partir do momento em que for possível fruir do serviço, seja cobrada contraprestação privada (taxa, tarifa ou preço).
Inevitavelmente, deverão ser realizados estudos por parte da Administração, com vistas a identificar o tempo de retorno social e econômico dos investimentos. Ou seja, em quanto tempo e em que condições a máxima da OMS, de um dólar investido para quatro economizados, irá se confirmar. Não se pode, a partir dessa promessa de economia, esvaziar os já escassos cofres da saúde pública de forma irracional. Caberá ao gestor público, muita habilidade para desenhar a equação econômico-financeira para apontar em que momento o fornecimento de serviços de saneamento irá começar a diminuir os gastos com saúde pública. As PPPs, nesse ambiente de definição da equação econômico-financeira, surgem como interessante alternativa. Isso porque, a regra geral que norteia esses contratos impõe ao parceiro privado o investimento na infraestrutura (à exceção da possibilidade de aportes público). Somente depois que disponível o serviço, poderá o particular começar a ser remunerado. Essa dinâmica difere a remuneração do privado, pela implementação da infraestrutura, ao longo do contrato, que poderá durar até 35 anos. Essa alternativa não impacta tanto os cofres públicos (incluindo aqui o orçamento da saúde) e permite que a saúde pública absorva com maior eficiência, e sem tanto comprometimento de seu orçamento, os benefícios dos serviços de saneamento.