Rodrigo Valgas dos Santos (SC)
É com elevada honra, que em nome do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo - IBDA, prestamos tributo a uma das maiores e icônicas administrativistas do País. O gáudio é ainda maior porque trata-se de Professora que moldou e influenciou muitos administrativistas, cujas obras são de permanente consulta, orientação e mesmo referência obrigatória nos mais diversos temas.
Discursos de homenagem são momentos mágicos. Por um átimo nos espelhar na beleza da vida do outro; mirar na alteridade; desejar seguir exemplos; almejar conquistas; aspirar ideais e com isso transformar nossas próprias vidas. Hoje nos cabe destacar a vida e a importância da Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, cuja existência intensa e plena de realizações nos inspira.
Em dias onde a doutrina - como tradicional fonte do Direito - parece um tanto combalida, as lições da Professora Maria Sylvia continuam com força; persuasão; guiando a miríade de decisões administrativas e judiciais que se valem dos seus ensinamentos.
Fins da década de 90 tive o privilégio de ser seu aluno na Especialização em Direito Administrativo da Universidade Regional de Blumenau, e verificar, como discípulo, sua marcante personalidade e o brilho de seu pensamento jurídico. A alegria deste dia é igualmente partilhada por seus alunos da USP aqui presentes e de tantos, Brasil afora, que igualmente frequentaram a sala de aula sob a firme condução de nossa Professora. A homenageada faz jus ao lema contido no brasão da Cidade de São Paulo: Non Ducor, Duco (Não sou conduzido, conduzo).
Esta frase diz muito de nossa querida Professora. Durante sua vida conduziu, não foi conduzida. Em tempos onde a mulher não gozava da merecida igualdade, igualdade que até hoje temos uma dívida histórica em resgatar, a Mestra sempre seguiu altiva e resoluta em seu caminho.
Para conhecer verdadeiramente alguém é preciso conhecer seu caráter e suas experiências de vida. Maria Sylvia nasceu em São Paulo, mas foi criada em Poá, uma instância hidromineral próxima da Capital. A vida interiorana foi deliciosa. Muitas árvores; bicicleta; frutas e sabores da infância que até hoje guarda na memória.
Sua mãe Cármem foi determinante em sua formação. Era professora e desejava que todas suas filhas seguissem este caminho, o que veio a concretizar-se. A pequena Maria Sylvia teve o privilégio de ser aluna de sua mãe. Rígida na correção das provas, Dona Cármem chegava a diminuir suas notas e das suas irmãs para que se atestasse, publicamente, que não havia qualquer preferência; que suas filhas deveriam esforçar-se muito além dos demais. Dizia Dona Cármen que se algo pudesse ser escrito em seu epitáfio de modo a condensar sua existência seria: Cármen, a justa.
A austeridade materna em sua educação moldou sua personalidade. Todos sabemos do seu perfil discreto e sóbrio, além de cumprir as tarefas que lhe são confiadas com a mais alta seriedade e retidão. Para os que a conhecem mais proximamente não passa despercebido seu fino humor.
Já seu Pai Alcides era de personalidade diversa. Espírito alegre, músico nato, tocava acordeon e violão. Quando calava o silêncio com o som dos seus instrumentos, atraía a vizinhança que se ajuntava à celebração, formando um conjunto inusitado que a todos tocava a alma. Também era um cinéfilo e regularmente projetava filmes em alvos lençóis que faziam a alegria da criançada e da nossa Mestra. Para coroar, era um imitador de primeira; fazia encarnar diante da plateia atenta as mais diversas e curiosas figuras.
Influenciada por seu pai, Maria Sylvia queria mesmo ser pianista. Começou tardiamente seus estudos e se intitula uma pianista frustrada.
Já que nossa homenageada aprecia tanto o piano, gostaria de contar uma história da grande pianista brasileira Guiomar Novaes.
A carreira internacional de Guiomar Novaes deu-se na Europa e nos Estados Unidos, consagrando-a como uma das notáveis pianistas do século XX. Quando estava nos Estados Unidos, foi convidada a tocar num recital em uma mansão. Ao chegar, achou estranho não haver ninguém nos arredores. Foi conduzida à sala de música onde havia um piano e, para seu espanto, apenas duas cadeiras. Tratava-se de um casal devoto do seu trabalho. Ao abrir a tampa do piano, veio a surpresa: encontrou em cada tecla uma pérola deixada por seus secretos admiradores, com as quais fez um belo colar. Pois assim é o trabalho de Maria Sylvia, seus escritos são pérolas! Pérolas que estão à disposição de quem quiser enveredar pelo que há de mais nobre no Direito Administrativo brasileiro.
Quando nossa Professora voltou da pequenina Poá para residir na Paulicéia desvairada foi um choque. Sua vontade era cursar Filosofia, mas também inscreveu-se em Direito. Foi aprovada em ambos, mas inicialmente preferiu Filosofia. Depois de algum tempo resolveu optar pelo Direito, curso no qual veio a dedicar-se integralmente e a consagrar-se.
Nos seus estudos durante a Faculdade não tinha preferência por Direito Administrativo, mas sim por Processo Civil e Direito Comercial.
Casou-se em 1967 com Valter, seu companheiro de jornada, sua alma gêmea. A cumplicidade de ambos e o mútuo apoio foram fundamentais para que a Professora Maria Sylvia pudesse dedicar-se aos estudos e contar com seu incentivo em tudo que faz.
Tradicionalmente Valter a acompanha em todas as palestras e Congressos. Também hoje homenageamos o dileto Valter. O preito ora realizado à sua companheira é, igualmente, seu.
Naquele tempo, vejam só! não se aceitavam mulheres no Ministério Público ou no Judiciário. Tecnicamente podiam inscrever-se nas provas, mas nenhuma delas era aprovada após a avaliação das provas escritas e orais do concurso.
Em 1969 prestou concurso para o cargo de Procuradora do Estado de São Paulo, passando nas primeiras colocações, entrando em exercício em 1970. Exercia função consultiva e assessoria técnica legislativa, atividades que demandavam muita pesquisa e estudo.
Daí surgiu a relação de amor com o Direito Administrativo. Afinal, foi sua atividade de Procuradora do Estado quem influenciou sua escolha de administrativista hoje consagrada.
Fez mestrado e doutorado orientada pelo Professor Cretella Júnior. Começou a ministrar aulas a convite do Professor Dalmo Dallari, mas o Professor Cretella Júnior a convidou para exercer a docência no direito administrativo. Quando iniciou suas aulas já era Doutora. Em 1988 fez concurso para livre docente e em 1991 fez concurso para professora titular. Todos seus trabalhos de mestrado, doutorado, livre docência e titular viraram livro.
Sempre exerceu a docência com liberdade de cátedra, autonomia essencial para o salutar e plural ambiente universitário. Esta independência é essencial para a formação das novas gerações e num Estado Democrático e Social de Direito não pode ser ameaçada por quaisquer órgãos ou poderes da República.
A pedido dos alunos resolveu escrever um livro que traduzisse com independência seu modo de pensar o Direito administrativo e além disso fosse bem didático. Seus estudos para livre docência foram a base para o afamado Direito Administrativo.
E por falar em livros, não podemos deixar de dizer uma palavra sobre sua obra. Livros são pontes que nos ligam à eternidade. Livros nos fazem viver em terra após deixarmos este plano. E não são poucos os lançados pela renomada autora. Destacamos:
Direito administrativo.
Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas.
Direito Administrativo: Pareceres.
Uso privativo de bem público por particular.
Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo.
Servidão administrativa.
Uso privativo de bem público por particular.
Do direito privado na administração pública.
Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988.
Temas polêmicos sobre licitações e contratos.
Estatuto da cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001.
Uma das principais características da nossa Professora é a renovação de ideias e o enfrentamento dos mais diversos temas do Direito Administrativo da atualidade.
É natural que com o passar dos anos nos conformemos um bocadinho com nossas conquistas e deixemos de lado novos projetos ou desafios que possam nos levar mais adiante. Isto não se passa com Maria Sylvia cujo modelo nos ensina a driblar as armadilhas do tempo. Como diz Belchior: “o novo sempre vem”.
Não contentando-se com a vasta obra já escrita, sempre pensa naquilo que ainda pode produzir. Nesse particular, conta com grande vantagem pois pôde acompanhar como poucos as profundas mutações pelas quais passou o direito administrativo nos últimos 50 anos, possibilitando-lhe transitar entre o passado e o futuro.
Talvez a mais notável qualidade da Mestra seja manter projetos em comum com gerações mais novas de administrativistas, inclusive com preciosas obras coletivas. Além deste fato atestar seu vigor e capacidade de renovação, comprova – como dizem nossos irmãos latinos – que trata-se de uma “Maestra” admirada e querida pelos jovens. Poderia existir glória maior?
Em recente homenagem recebida pela querida Maria Sylvia nas arcadas da Faculdade do Largo de São Francisco, lhe foi lido o belíssimo poema XIII do livro “Cânticos” de 1927 da genial Cecília Meirelles. Por mais que tenha procurado outro, outro não encontrei que melhor traduzisse a existência de nossa querida Professora.
"Renova-te. Renasce em ti mesmo. Multiplica os teus olhos, para verem mais. Multiplica-se os teus braços para semeares tudo. Destrói os olhos que tiverem visto. Cria outros, para as visões novas. Destrói os braços que tiverem semeado, para se esquecerem de colher. Sê sempre o mesmo. Sempre outro. Mas sempre alto. Sempre longe. E dentro de tudo."
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PS. O presente texto foi apresentado como discurso de homenagem à Professora Doutora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por ocasião do XXXII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, de 17 a 19 de setembro de 2018, em Florianópolis/SC. Muitas das informações foram obtidas do site: Direito do Estado e estão disponíveis em: http://www.direitodoestado.com.br/tvdireito/depoimentos-magistrais/maria-sylvia-zanella-di-pietro