Rita Tourinho (BA)
A Bahia, cantada em versos e prosas, traz dentre os seus encantos o Carnaval. Festa que atrai milhares de turistas nacionais e estrangeiros e que, normalmente, vem acompanhada de polêmicas, seja pela performance exagerada de alguns artistas, seja pela quebra da tradição na escolha de um Rei Momo que não pesa mais que 70 quilos, seja pelo gosto do público que, por vezes, elege figuras de comportamento questionável como ídolo da folia. O certo é que, a cada ano, novos questionamentos são lançados em torno da festa.
No ano de 2016, não foi diferente. O Município de Salvador, ao negociar patrocínios para o Carnaval, firmou ajuste com uma importante marca de cervejaria, comprometendo-se a garantir a sua exclusividade no circuito, não só no que se refere à divulgação de sua marca, como também à sua comercialização pelos vendedores ambulantes. Ou seja, a autorização para comercialização de bebidas no circuito de carnaval foi condicionada à venda exclusiva da marca da patrocinadora, que forneceu aos vendedores ambulantes os isopores plotados com o seu logotipo. Por certo que tal restrição atingiu somente os vendedores ambulantes, não se estendendo àqueles comerciantes que possuem estabelecimentos no circuito da festa. Como justificativa, o Município alegou que foi aberta oportunidade a todos os interessados, através de processo licitatório, e a marca escolhida, vencedora do certame, apresentou como contrapartida a importância de 25 milhões de reais.
De imediato, representações foram encaminhadas ao Ministério Público alegando a violação ao direito do consumidor da livre concorrência. Polêmica instalada. Passa-se à análise do tema.
Sabe-se que o desempenho da atividade econômica, fundado no princípio da livre concorrência, é assegurado no ordenamento jurídico brasileiro, constando do art. 170, da Constituição Federal.
A previsão do direto fundamental de explorar atividades econômicas não quer dizer, obviamente, que não lhes possam ser impostas condições ou limites. Daí a possibilidade de se condicionar as atividades privadas à prévia autorização administrativa (art. 170, parágrafo único, da CF). Por outro lado, a autorização não pode servir de instrumento para inviabilizar ou tornar excessivamente restrita a atividade da iniciativa privada.
Logo de início, pode-se afirmar que o interesse público e o interesse privado estão de tal forma instituídos pela Constituição, que não se pode afirmar uma relação de prevalência entre eles. Cogita-se hoje da função atribuída à Administração de ponderação dos interesses em confronto e, como bem afirma Odete Medauar, em sua obra O Direito Administrativo em Evolução, “o princípio é da não sacrificabilidade a priori de nenhum interesse“.
Após tais considerações iniciais, será precipitada qualquer posição em defesa da efetiva ilegalidade ou legalidade da restrição imposta aos vendedores ambulantes pela Administração Municipal.
No caso em análise, o instrumento jurídico utilizado para deferir a comercialização de bebidas no circuito do Carnaval de Salvador foi a autorização.
Inicialmente a autorização foi concebida por Otto Mayer como ato administrativo que retira a proibição preventivamente estabelecida pela norma de polícia. Assim, a autorização reestabelece a liberdade inicial do sujeito, garantindo que a atividade não causará perturbação para a ordem pública.
Uma segunda construção salienta a preexistência do direito titularizado pelo autorizatário, cujo deferimento da autorização apenas remove os limites ao exercício de tal direito. Enterría e Fernandez afirmam que diante da intensidade dos poderes discricionários que a Administração se reserva, com a consequente liberdade de outorgar ou negar as autorizações, torna-se cada vez mais ilusória a imagem de um direito preexistente à autorização.
Percebe-se, então, a utilização do termo “autorização” em sentido amplo consistindo na retirada de um obstáculo ao exercício de um direito, que a princípio, pode não ser próprio do beneficiário.
No ordenamento jurídico brasileiro prevalece a autorização como ato administrativo discricionário, através do qual a Administração faculta o exercício de atividade material, de caráter precário. Logo, distancia-se de algumas das noções expostas pelos autores antes elencados, uma vez que não reconhece um “direito preexistente” ao deferimento da autorização, pois, se assim fosse, caberia à autoridade competente, para outorgar a autorização, apenas verificar o preenchimento dos requisitos legais exigidos, ficando afastada a possibilidade da análise da conveniência e oportunidade para a prática do ato.
No presente caso, a autorização conferida aos vendedores ambulantes não se restringe apenas à remoção de obstáculo ao exercício de atividade econômica em proporção que permita um convívio harmônico e confortável entre os vendedores ambulantes e entre estes e os foliões, característica típica das autorizações de polícia. A emissão de tal autorização envolve também a utilização de um espaço público, uma vez que o ato foi deferido para ocupação de local determinado no circuito do Carnaval.
Assim, pode-se afirmar que a autorização deferida aos vendedores ambulantes para a comercialização de bebidas no circuito do Carnaval envolve, a um só tempo, a remoção de obstáculo para o exercício de atividade comercial e a ocupação de área pública.
Ora, sendo a autorização ato administrativo discricionário constitutivo de direitos, cabe ao ente público competente não somente decidir quanto ao seu deferimento, como também estabelecer condicionantes à sua prática, sem ultrapassar as barreiras do ordenamento jurídico.
No caso em análise, houve limitação ao número de autorizações deferidas, em proporção ao espaço a ser ocupado, e condicionou-se o ato administrativo à comercialização exclusiva da marca patrocinadora do Carnaval.
Assim, instalou-se o conflito entre a liberdade conferida à Administração Pública para estabelecer condicionantes à prática do ato de autorização (que no presente caso envolve o exercício de atividade material e utilização de espaço público) e o direito do consumidor à livre concorrência.
Ora, como solucionar tal conflito? Recorrendo-se, ao certo, à ponderação de princípios e valores aplicados ao caso concreto.
Sabe-se que ao papel do Estado contemporâneo somam-se demandas crescentes com recursos escassos. Tal situação faz com o que o poder público tenha que buscar mecanismos alternativos para financiar o cumprimento de suas funções, uma vez que os instrumentos tradicionais (arrecadação tributária, endividamento, etc) mostram-se insuficientes. Isso tem levado à busca de alternativas, dentre as quais, tem-se a “rentabilidade dos bens públicos”, que seria uma gestão eficiente do patrimônio público com vistas à geração de receitas, fazendo com que desempenhe uma função adequada a atual realidade socioeconômica, na qual cabe ao Estado realizar variadas tarefas, para cuja prossecução torna-se indispensável a rentabilização dos seu patrimônio. O aproveitamento econômico do bem público pressupõe que alguém arque com os custos de uma determinada utilidade, que não necessariamente tem que ser aquele a quem é deferido o uso, podendo ser um agente econômico que se beneficie indiretamente com a utilização.
Partindo-se do quanto já exposto sobre a possibilidade de se impor limitações ao direito fundamental do exercício da atividade econômica, somada à total viabilidade de condicionar o exercício de tal atividade em espaço público, resta apenas ponderar se a restrição imposta no presente caso – impossibilidade de comercialização de outras marcas de bebidas que não a da patrocinadora do Carnaval no circuito da festa – justifica-se frente ao benefício alcançado – arrecadação de 25 milhões de reais pelo Município. Quer dizer, a análise do caso concreto perpassa pela ponderação dos valores envolvidos, com a utilização do princípio da proporcionalidade.
Assim, ao restringir a comercialização de bebidas pelos vendedores ambulantes a uma única marca, houve uma restrição aos consumidores, não absoluta, posto que estes continuam a ter acesso aos estabelecimentos comerciais privados existentes no circuito que, sendo licenciados, poderão comercializar qualquer marca, sem restrição. Em contrapartida, certamente o Município não arrecadaria o montante obtido com o patrocínio, caso esse fosse limitado apenas à divulgação da marca.
Sendo a autorização ato administrativo praticado no exercício de competência discricionária, nada impede que o seu deferimento imponha restrições. No entanto, as restrições estabelecidas devem ser justificadas em razão dos benefícios auferidos com a mesma. Ou seja, na situação fática cabe a ponderação, recorrendo-se ao princípio da proporcionalidade, entre a limitação gerada aos consumidores no circuito do carnaval e a obtenção de recursos pelo município em face de tal restrição. Por certo, para tal ponderação, diversos fatores devem ser considerados, a exemplo da possibilidade de livre consumo em estabelecimentos comerciais existentes no circuito do Carnaval, a crise financeira que atravessa o país, que atinge indistintamente ao setor público e privado, a possibilidade de autorizações sem restrições fora do percurso da folia.
Enfim, as ponderações realizadas revelam a dificuldade do controle da situação posta pelos órgãos competentes, uma vez que a aplicação do princípio da proporcionalidade na ponderação dos valores contrapostos na espécie parece em um primeiro momento colocar a balança com o pêndulo equilibrado, situação que leva a sindicabilidade do ato a uma “zona cinzenta” de difícil penetração.
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