Ricardo Marcondes Martins (SP)
Com o fim do Estado Nazista o legalismo entrou em crise. Conforme bem retrata François Rigaux (La loi des juges), no Estado Nazista as leis raciais foram formalmente aprovadas pelo Parlamento, consideradas válidas por boa parte dos Professores de Direito e, o que é pior, admitidas pelo Judiciário. Consequentemente, com o fim do Nazismo impôs-se a revisão da Teoria geral do Direito: não se admite mais um sistema normativo alicerçado apenas nas competências estabelecidas. Justificar a observância da lei apenas na competência do agente normativo, como pretendeu Kelsen, tornou-se inadmissível. A sanção é devida, não apenas porque o agente competente quis impô-la, mas porque é justificada pelos valores jurídicos acolhidos expressa ou implicitamente pela Constituição. O Direito passou a ser considerado não apenas um conjunto de normas, mas também um conjunto de valores. Na feliz expressão do Tribunal Constitucional Alemão, a Constituição configura uma “ordem objetiva de valores”, ordem que vincula a todos, agentes públicos e particulares.
Compreender o Direito como uma “ordem objetiva de valores” é compreendê-lo como um conjunto de “princípios”. A palavra “princípio” é problemática; Genaro Carrió catalogou onze significados a ela atribuídos (Notas sobre derecho y lenguaje). Faço um corte metodológico e identifico três fases do conceito na Ciência do Direito. Na primeira fase, a palavra foi empregada no Direito com o significado que possuía na linguagem comum ou natural: princípio é origem, início; por extensão, é todo assunto importante, geral, que deve ser estudado por quem inicia o estudo de uma disciplina jurídica. Daí o nome de obras célebres: Princípios gerais de direito administrativo, de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello; Princípios de direito administrativo, de Ruy Cirne Lima. A primeira fase está superada: ninguém mais utiliza a palavra “princípio” com esse significado.
Na segunda fase, atribuiu-se à palavra um significado técnico. Princípio passa a ser o elemento estruturante, o alicerce, a viga mestra do sistema jurídico. Este seria composto por um conjunto de normas jurídicas e por um conjunto de princípios jurídicos. As normas, sem os princípios, configurariam uma mera reunião de normas, um amontoado desconexo. São os princípios que fazem com que o conjunto de normas seja um verdadeiro “ordenamento”: eles aglutinam as normas, dando-lhes um sentido coerente, racional; são verdadeiros vetores de interpretação das normas. No Brasil, a segunda fase foi difundida por Geraldo Ataliba e por Celso Antônio Bandeira de Mello. O conceito de princípio, proposto pelo último, foi copiado à exaustão na doutrina brasileira.
A terceira fase configura-se com as obras de Ronald Dworkin (Levando o direito a sério, Cap. 2) e Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais, Cap. 3). Tanto um como o outro dividem as normas jurídicas em dois grupos: regras e princípios. Para Dworkin, os princípios, ao contrário das regras, são razões para uma decisão, razões que possuem diferentes pesos (rectius, importância), a depender do caso concreto. Para Alexy, enquanto as regras são determinações, os princípios são mandados (mandamentos, ordens) de otimização no âmbito das circunstâncias fáticas e jurídicas. Alexy esclarece que só num ponto os princípios diferem dos valores: enquanto os valores estão no plano axiológico, referem-se ao que é bom ou ruim, os princípios estão no plano deôntico, referem-se ao que é devido ou não devido. Em tudo o mais, princípios e valores se equiparam: princípios são, portanto, valores positivados expressa ou implicitamente no sistema normativo vigente.
A segunda e a terceira fase envolvem dois erros muito comuns. O primeiro é considerar que ambas se referem ao mesmo objeto. Há aí uma ambiguidade: a mesma palavra é utilizada em dois significados diferentes, para se referir a dois objetos diferentes. Um exemplo didático de ambiguidade é a palavra “manga”: ela se refere a uma fruta e à parte da vestimenta que recobre o braço. Todos os familiarizados com o português percebem aí uma ambiguidade: ninguém supõe que a fruta e a parte da vestimenta sejam a mesma coisa. Pois bem, muitos incidem no equívoco de considerar o princípio, enquanto elemento estruturante, e o princípio, enquanto mandado de otimização, dois aspectos do mesmo objeto. Não percebem a ambiguidade: princípio-elemento estruturante é um conceito que nada tem a ver com o princípio-mandado de otimização. Por isso, sempre que o contexto não deixe claro, o jurista deve indicar em que sentido emprega a palavra “princípio”.
O segundo erro, tão comum como o primeiro, é supor que a segunda e a terceira fase são excludentes, ou seja, supor que quem assume o primeiro conceito deve necessariamente negar o segundo e vice-versa. Trata-se, a meu ver, de um equívoco grave. Sem o conceito da segunda fase inviabiliza-se o sistema normativo, o conjunto de normas passa a ser um mero amontoado. Se colocarmos todos os Códigos numa mesa e solicitarmos a um leigo em Direito que inicie a leitura, ele não tardará em se perder. O leigo tende a ler os dispositivos legais como uma sucessão caótica de textos normativos. O jurista, ao contrário, os lê como fazendo parte de um todo coerente, de um “ordenamento”. E o que faz do todo um ordenamento? Os alicerces, as vigas mestras, enfim, os “princípios”. Assim, quem nega o conceito da segunda fase reduz o conjunto de normas a uma soma desconexa, afasta o conceito de sistema normativo. E sem “sistema”, já dizia Kant, não há Ciência do Direito. Em geral, quem nega o conceito da segunda fase, nega-o apenas na literalidade, admitindo-o implicitamente.
Quem nega o conceito da terceira fase reduz a aplicação do direito à subsunção. Estou convencido de que o direito se aplica por subsunção e por ponderação. Resolver os problemas jurídicos sem atentar para o peso dos valores jurídicos incidentes leva a resultados desastrosos, a graves injustiças. Assim, negar o conceito da segunda fase é negar a Ciência do Direito, negar o conceito da terceira é inviabilizar a aplicação correta das normas jurídicas. Defendo, portanto, a assunção dos dois conceitos. Como se consagrou o uso da mesma palavra para ambos, cabe ao jurista esclarecer em qual sentido a está utilizando.
Feito esse esclarecimento, registro: nesta coluna vou utilizar a palavra “princípio” no significado da terceira fase — valor positivado expressa ou implicitamente no sistema normativo ou, no difundido conceito de Alexy, mandado de otimização. Alexy divide os princípios em dois grupos: princípios materiais e princípios formais. Os materiais referem-se a um valor específico e se dividem em dois subgrupos: princípios relativos a direitos subjetivos e princípios relativos a bens coletivos. Um exemplo evidencia a diferença: extraem-se da Constituição o princípio da intimidade — proteja-se a intimidade das pessoas na maior medida possível — e o princípio da proteção do meio ambiente — proteja-se o meio ambiente na maior medida possível; o primeiro é um típico princípio relativo a direito subjetivo, o segundo um típico princípio relativo a bem coletivo. Este se refere ao conceito econômico de bem público: bem de consumo não rival ou não disputável e não excludente ou não exclusivo.
Dedico esta coluna ao exame do segundo grupo: os “princípios formais”. Em entrevista realizada em 2012, Alexy afirmou que sua teoria dos princípios demandava maior desenvolvimento justamente no tema dos “princípios formais” (Teoria discursiva do direito, p. 369). Apesar de ser pouco tratado na doutrina, esse tema é, para mim, de suma importância para compreensão do fenômeno normativo. De fato, dou à teoria dos princípios formais uma importância fundamental em boa parte de meus trabalhos. Resumirei, aqui, algumas de minhas posições. Para quem não conhece a teoria, espero que esta coluna torne mais fácil a compreensão do assunto.
Os princípios formais não se referem, ao contrário dos materiais, a um valor específico — proteção da intimidade ou do meio ambiente —, mas a uma decisão. Eles exigem que se respeite uma decisão na maior medida possível, tendo em vista as circunstâncias fáticas ou jurídicas. Alexy e seus discípulos debatem a relação entre os princípios materiais e os princípios formais. No Posfácio de sua obra prima (Teoria dos direitos fundamentais), Alexy defendeu o que ele chamou de “lei da conexão”: um princípio formal só atua na ponderação junto com um princípio material. Para que fique claro, valho-me do símbolo da balança: a ponderação consiste no sopesamento de dois ou mais valores colidentes. Segundo a lei da conexão, um princípio formal nunca atuará sozinho no prato de uma balança, ele sempre estará conectado a um princípio material. Vou chamar dois princípios materiais colidentes de “P1” e “P2”. O princípio formal sempre acrescerá um peso a um princípio material: “P1 + PF” ou “P2 + PF”. Assim, a ponderação nunca será entre “P1” ou “P2” e “PF, mas entre “P1 + PF” e “P2” ou “P1” e “P2 + PF”.
Em 2014, na palestra de encerramento a um Congresso realizado em Belo Horizonte, Alexy propôs uma revisão de sua teoria e passou a rejeitar a lei da conexão. Considero que sua posição atual é equivocada. Uma decisão sempre se refere a um ou mais valores materiais. Por isso, é conceitualmente impossível a atuação isolada, na ponderação, de um princípio formal. Continuo convencido do absoluto acerto da lei da conexão (cf. meu estudo publicado em Temas atuais de direito administrativo neoconstitucional).
Fixado o conceito de princípio formal e explicada sua relação com os princípios materiais, passo a sua classificação. Divido os princípios formais em dois grupos: “princípios formais fundamentais” e “princípios formais especiais” (Abuso de direito, p. 38 et seq.). Os especiais restringem-se a atribuir um sobrepeso (uma importância a mais) a um princípio material. Os fundamentais, como o próprio nome indica, têm uma importância muito maior; eles garantem o respeito às escolhas normativas.
A escolha normativa é fruto não apenas da cognição, mas da volição. Noutras palavras: decorre da “vontade” de quem decide. Há dois campos de escolhas normativas: o campo dos agentes públicos e o campo dos particulares. O primeiro configura a “competência discricionária”, o segundo configura a “liberdade”. Tanto na discricionariedade como na liberdade, há uma escolha alicerçada na “vontade”, mas não há que se confundir: na liberdade a escolha decorre apenas e tão somente do “livre-arbítrio”. Já a discricionariedade não admite a arbitrariedade: deve o agente buscar, sempre, a melhor forma de realizar o interesse público. Tanto a liberdade como a discricionariedade pressupõem a prévia interpretação: se na interpretação, o sistema normativo exige uma certa solução, inexiste escolha volitiva e, pois, discricionariedade ou liberdade.
No sistema normativo existem cinco — e apenas cinco — centros normativos de escolhas. O constituinte “originário”, o “reformador”, o Legislador, a Administração e o Particular. Os primeiros quatro referem-se aos campos da competência discricionária e o último ao âmbito da liberdade. Para cada campo de decisão volitiva existe um princípio formal fundamental.
Assim, o respeito às escolhas do constituinte originário é garantido pelo princípio formal que dá primazia às suas ponderações (“Pfco”); o respeito às escolhas do reformador da Constituição é garantido pelo princípio formal que dá primazia às suas ponderações (“Pfcr”); o respeito às escolhas do Legislador, pelo princípio formal que dá primazia às suas ponderações (“Pfl”); o respeito às escolhas da Administração Pública, pelo princípio formal que dá primazia às suas ponderações (“Pfa”); o respeito às escolhas do particular, pelo princípio formal que dá primazia às suas ponderações (“Pfp”). Há uma ordem decrescente de pesos entre esses cinco princípios: Pfco > Pfcr > Pfl > Pfa > Pfp. Chamo essa ordem de “lei das competências normativas”.
Do exposto até aqui extraem-se vários desdobramentos. Tanto o constituinte originário, como o impropriamente chamado de constituinte reformador — impropriamente, porque ele é constituído pelo originário —, como o Legislador não exercem suas escolhas a partir do livre-arbítrio. Mesmo o editor da Constituição exerce função pública: não age arbitrariamente, atua em prol do “interesse público”. Logo, atua no exercício de competência discricionária. A afirmação não encontra eco na doutrina consolidada. Em geral, há uma incompreensão do tema: é de evidência solar que o constituinte não age no âmbito da liberdade, não adota decisões apenas a partir de seu livre-arbítrio, não atua, enfim, “arbitrariamente”.
O que diferencia essas esferas de atuação são as restrições jurídicas impostas aos respectivos campos de escolha. O constituinte originário é limitado apenas pelos “postulados normativos”, no sentido atribuído pelo saudoso Celso Ribeiro Bastos (Hermenêutica e interpretação constitucional): pressupostos epistemológicos do Direito e da Constituição. O reformador é limitado não apenas pelos postulados, mas por todos os limites expressos e implícitos à competência reformadora. Equivoca-se quem supõe que esses limites se restringem apenas às regras expressas no artigo 60 da CF/88; há muitos limites implícitos (cf. meu Regulação administrativa, p. 71-81). O Legislador é limitado não apenas pelos postulados, mas por todas as regras e princípios constitucionais, expressos e implícitos. O Administrador é limitado não apenas pelos postulados, regras e princípios constitucionais, mas também por todas as leis. O particular é limitado pelos postulados, regras e princípios constitucionais, leis e, também, pelos atos administrativos. Quanto menos restrições, maior é o peso do princípio formal fundamental.
A compreensão do assunto, no plano teórico-abstrato, é facilitada quando vamos ao plano concreto. Por isso, termino esta coluna com um exemplo referente à atuação do Legislador, à atuação da Administração e ao papel do princípio formal que dá primazia às ponderações do Legislador (“Pfl”). No exercício de sua função típica — legislar — o Legislador deve cumprir o programa constitucional, vale dizer, deve concretizar os valores jurídicos expressa ou implicitamente previstos na Constituição. Ele deve identificar esses valores e fixar, no plano abstrato, meios de concretizá-los. Para tanto, deve realizar uma “ponderação legislativa”.
Suponha-se que o Legislador tenha identificado o princípio material de proteção ao meio ambiente, princípio relativo a bem coletivo (“P1”). Seu papel é fixar, no plano abstrato, ou seja, numa prognose do caso concreto em que a decisão será executada, um (ou mais) meio(s) de concretização desse princípio (“M1” ... “Mn”). Mas para fixar um meio de concretização, o Legislador deve verificar quais valores, no plano abstrato, colidem com o valor que pretende concretizar. Identificados os valores colidentes, ele deve ponderá-los.
Suponha-se que o Legislador resolva, na concretização de “P1”, determinar que os proprietários de veículos automotores instalem um filtro em seus veículos. Para criar essa obrigação, o Legislador teve que verificar o peso de outros valores constitucionais: proteção da propriedade privada, direito de locomoção, direito de liberdade etc. Para facilitar, chamarei os princípios colidentes com “P1” de “P2”. A ponderação legislativa resulta, nesse exemplo, numa lei cujo artigo primeiro determina aos proprietários de veículos que instalem um filtro; e o artigo segundo, que a Administração apreenda os veículos que não tiverem, após o prazo da vacatio legis, o filtro instalado.
Admitamos, no exemplo, que essa lei não tenha violado as ponderações constitucionais, originária e reformadora; tenha, assim, respeitado os postulados normativos e os pesos de “Pfco” e “Pfcr”. Aceitemos que a medida legislava (“M1”) de concretização de “P1” seja proporcional, tendo em vista o peso de “P2”. Em síntese: partimos do pressuposto de que a referida lei é constitucional e, assim, válida. Essa ponderação legislativa estabelece, no plano abstrato, um meio de concretização de um valor constitucional: a obrigação dos proprietários de instalar um filtro em seus veículos automotores (“M1”), em prol da proteção do meio ambiente (“P1”). Outrossim, estabelece que quem não cumpre a obrigação, deve sofrer a sanção da apreensão do veículo (“M2”), medida imposta também em concretização da proteção ao meio ambiente (“P1”).
Quando da aplicação da Lei, no caso concreto, outra ponderação deverá ser realizada. Diante de um veículo sem filtro, a regra legislativa determina que a Administração o apreenda. A Administração, contudo, também tem que ponderar, agora à luz do caso concreto. Só que a ponderação administrativa não se dá apenas entre “P1” — princípio da proteção ao meio ambiente” — e “P2” — princípio da proteção da liberdade, propriedade, livre circulação etc. Se a Administração ponderasse apenas os princípios materiais, a competência legislativa perderia o sentido. Daí o papel do princípio formal que dá primazia às ponderações do Legislador (“Pfl”): ele garante o respeito à separação de poderes, à competência legislativa.
A ponderação administrativa deve levar, necessariamente, em consideração o peso de “Pfl”. Assim, ela ponderará “P1 + Pf” e “P2”. Como regra geral, dificilmente “P2” terá um peso suficiente para afastar “P1 + Pfl”, justamente em decorrência do peso de “Pfl”. A Administração, regra geral, terá que cumprir a lei. Logo, diante de um veículo sem filtro, terá que apreender o veículo. Mas, e isso é de suma importância, essa regra admite exceções: sempre que “P2” tiver, no caso concreto, maior peso que “P1 + Pfl”, a medida legislativa deve ser afastada. No exemplo: suponha-se que o veículo sem filtro seja uma ambulância. Ora, o princípio material de proteção à vida das pessoas, nesse caso, tem um peso tão acentuado que afasta “M2”, a sanção de apreensão do veículo. Pode a Administração ingressar com ação judicial para obrigar o proprietário a instalar o filtro, mas não pode apreender a ambulância.
Sempre que dou esse exemplo, faço um acréscimo em homenagem aos juristas ainda apegados ao “legalismo”: para quem ainda tem dúvida, suponha-se que a ambulância sem o filtro esteja levando ao hospital alguém que esteja sofrendo um ataque cardíaco. E aí? Em cumprimento à ponderação legislativa, mata-se o doente? Acredito que nem o mais convicto kelseniano defenderá, nesse caso, a apreensão do veículo.
Alguns são tão apegados ao legalismo que minha suposição pode estar equivocada. Sem embargo, felizmente a maioria esmagadora aceita com tranquilidade, nesse exemplo, o afastamento da apreensão do veículo. Muitos dirão: não há necessidade da teoria dos princípios formais, pois basta atentar para o “espírito da lei”. Do ponto de vista científico, essa explicação não me satisfaz: o “espírito da lei” é a proteção do meio ambiente, e uma ambulância sem filtro polui tanto quanto um automóvel sem filtro. Ocorre que a proteção do meio ambiente não é o único valor incidente e o peso de “Pfl” não é absoluto. A teoria dos princípios formais possibilita uma explicação mais racional para o fenômeno normativo. Dela se extraem muitos outros desdobramentos, assunto para outras colunas.