Ricardo Marcondes Martins (SP)
Muitas das divergências na doutrina brasileira no âmbito do Direito Administrativo decorrem das diferentes assunções teóricas sobre o critério para a incidência do regime jurídico denominado “Direito Administrativo”. Esse tema marcou toda a história da disciplina e, por incrível que pareça, ainda é o pivô de muitas controvérsias. Nesta coluna pretendo não apenas apresentar o critério que considero correto, mas evidenciar as consequências de sua rejeição. Apesar de consistir num assunto teórico, ele possui enorme repercussão prática. Aliás, é o ponto de partida de qualquer manifestação sobre Direito Administrativo, ponto esse, infelizmente, nem sempre fixado com a atenção devida.
O problema surgiu na França, berço do Direito Administrativo. Como se sabe, os revolucionários franceses desconfiavam dos magistrados. Natural, pois estes haviam sido nomeados pelos nobres. Os revolucionários guilhotinaram a maioria dos nobres; pouparam os magistrados, mas restringiram seus poderes o mais que puderam. O Direito Francês ficou marcado por essa atitude: nega, regra geral, ao Judiciário o controle sobre o Legislador — a França não adota um controle jurisdicional de constitucionalidade, mas um controle político — e o controle sobre a Administração Pública. O último aspecto é o que nos interessa: estabeleceu-se na França o sistema da jurisdição administrativa, segundo o qual a função jurisdicional é dividida entre dois órgãos, o Judiciário, para as questões que não envolvem a Administração, e o Conselho de Estado, para as questões administrativas. Esse sistema exigiu dos franceses a definição de um “critério” para saber quando a causa deve ser encaminhada ao Judiciário e quando deve ser encaminhada ao Conselho de Estado. A busca desse critério marcou toda a história do Direito Administrativo francês.
Numa absoluta síntese, o critério inicialmente adotado foi o da “puissance publique”, expressão de difícil tradução. Puissance não é poder — no francês há uma palavra própria para designar “poder”, “pouvoir” —, trata-se de um poder exercido com “autoridade”, distinção efetuada pelos romanos entre “potestas” e “auctoritas” e didaticamente elucidada por Hannah Arendt no capítulo quinto de seu On Revolution. Em rigor, o critério inicial foi misto: puissance publique e État débiteur, sempre que o Estado exercesse sua autoridade ou fosse devedor, a questão deveria ser encaminhada à Jurisdição Administrativa. O critério perdurou até 08.02.1873, data do julgamento, pelo Tribunal de Conflitos, do famoso caso Blanco. Tratou-se de uma ação de indenização em decorrência do atropelamento de Agnès Blanco por um vagão da manufatura de tabaco da cidade de Bordeuax. Ao resolver o conflito de competência entre as duas jurisdições, o Tribunal de Conflitos considerou que o caso era próprio da Jurisdição Administrativa. Não se tratava de exercício de autoridade, nem da cobrança de um débito já existente: os dois critérios foram postos de lado. Iniciava-se uma nova fase: o critério do “serviço público”, conclamado pela Escola do Serviço Público chefiada por Leon Duguit. Sempre que estivesse presente um “serviço público” — expressão a qual, nessa fase, os franceses atribuíram um sentido larguíssimo, a questão seria de competência da Jurisdição Administrativa. Não tardou para esse critério também ser posto de lado, sobretudo após a adoção da política de “nacionalização” de empresas privadas, quer dizer, da assunção delas pelo Poder Público, mas sem estatizá-las, ou seja, sem submetê-las ao direito público. É o que bem explica Bernard Chenot em seu clássico “Organisation Économique de l’État”.
O critério seguinte foi o da “gestão pública”, caracterizado por Jean Rivero pela presença de prerrogativas públicas, decorrentes da “puissance publique”, e de limitações, restrições à sua atuação, decorrentes da “servitude publique”. É a incidência de um regime, comparado ao regime privado, composto por prerrogativas e por sujeições. O regime atribui à Administração, por um lado, “poderes” que os particulares não possuem, e, por outro, uma série de “deveres” que eles também não possuem.
A doutrina de Rivero, nesse ponto, é bastante próxima da proposta, no Brasil, por Celso Antônio Bandeira de Mello: o que define o regime jurídico administrativo são, segundo o aclamado professor paulista, dois princípios — a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade do interesse público. Do primeiro extraem-se prerrogativas; do segundo, restrições. Diferentemente de Rivero, porém, Bandeira de Mello, inspirado em Leon Duguit, dá ênfase aos deveres, em detrimento dos poderes: não existem, no Direito Público, poderes autônomos, mas poderes instrumentais, meramente ancilares, dos deveres impostos ao Estado.
O Brasil não adotou o sistema da jurisdição administrativa, adotou o sistema inglês, da jurisdição una. Toda função jurisdicional, no Brasil, foi atribuída ao Poder Judiciário. Não há, insisto, no direito brasileiro, espaço para um órgão da Administração decidir uma questão jurídica definitivamente, fazendo coisa julgada. A decisão administrativa sempre pode ser, havendo provocação, revista pelo Judiciário. O problema do “critério de competência”, que tanto aflige os franceses, simplesmente inexiste para nós, brasileiros.
Como se diz na linguagem prosaica, não se precipite na comemoração, “cara-pálida”! Não temos a divisão de competências, mas temos o problema. Explico: não precisamos, de fato, decidir se encaminharemos a causa para o Judiciário ou para a Jurisdição Administrativa. Todas as causas que envolvem a Administração são encaminhadas ao Judiciário, e quando há Vara Privativa, para a respectiva Vara. Mas o magistrado, ao receber a causa, deve decidir qual regime jurídico incide, o regime do direito público ou o regime do direito privado. Eis o problema que aparece na França e, da mesma forma, aparece no Brasil. Lá eles precisam do critério para saber qual direito incide e, a partir dessa definição, saber qual o juiz competente. Aqui nós precisamos do critério para saber qual direito incide...
E qual o critério para saber qual o regime jurídico aplicável? Hans J. Wolff informa-nos que diversos critérios já foram propostos. A título de exemplo, menciono o critério da “natureza do interesse”: haveria interesses, indisponíveis, que exigem o direito público, e interesses, disponíveis, que exigem o direito privado. É fácil perceber que esse critério falha: muitos interesses privados são indisponíveis, daí o âmbito de incidência das “normas privadas de ordem pública”. Outro critério foi a “horizontalidade ou verticalidade da relação jurídica”: quando horizontal, incide o direito privado; quando vertical, o direito público. O critério não se mostrou satisfatório desde o já referido caso Blanco: muitas vezes a Administração não exerce sua supremacia e, mesmo assim, incide o direito público. Perceba o problema: qual é o critério?
Por incrível que pareça, o critério da “puissance publique” assombra a doutrina, em geral, até os dias de hoje. Boa parte dos autores não conseguiu superá-lo. Hans J. Wolff propôs uma excelente resposta ao problema: a “teoria da imputação”, segundo a qual a diferença entre o direito público e o direito privado não se assenta nem numa diferença de hipóteses normativas, nem numa diferença de consequências normativas ou, noutros termos, nem em fatos jurídicos, nem em efeitos jurídicos. Trata-se de uma diferença dos “sujeitos de imputação” (Zuodnungssubjekte), dos “sujeitos aos quais são imputados direitos e deveres”. Pertencem ao direito público, diz ele, todas as normas cujo sujeito de imputação é o Estado (Direito Administrativo, v. I, p. 268). Contudo, Wolff faz uma ressalva, assombrado pelo fantasma da “puissance publique”: o direito público só incide, diz ele, quando o sujeito de imputação seja um “titular de poder de autoridade”. Noutras palavras: se a Administração Pública não exercer autoridade, reger-se-á pelo Direito Privado.
O grande Otto Mayer incidiu no mesmo equívoco, ao diferenciar a Administração Pública, que exerce autoridade, e é regida pelo Direito Público, da Administração Fiscal, que não a exerce, e é regida pelo Direito Privado (“Derecho administrativo alemán”, tomo I, §11). Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, pináculos do Direito Público espanhol, surpreendentemente, cometeram o mesmo equívoco. Primeiro, sustentaram uma teoria similar à de Wolff: o Direito Administrativo é um “direito estatutário”, é o conjunto normativo que rege a Administração Pública. Contudo, também admitiram, seguindo a tendência da doutrina em geral, que a Administração, quando se despir da atuação autoritária, seja regida pelo Direito Privado. Na doutrina brasileira era praticamente unânime esse equívoco: quase todos, num desastroso coro uníssono, sustentavam a possibilidade de atuação da Administração Pública regida pelo Direito Privado. O próprio Celso Antônio Bandeira de Mello, destacado pelo rigor científico de suas posições, até a 29ª. edição de seu Curso incidiu nesse equívoco: sustentou, até então, que a Administração poderia abdicar de sua posição de supremacia e afastar a incidência da supremacia do interesse público sobre o privado, afastando também o regime de direito administrativo.
Interessante notar que Leon Duguit, cuja doutrina é acolhida com ênfase por Bandeira de Mello, já havia, como antecipei, demonstrado a impropriedade de associar o Direito Administrativo à ideia de autoridade. O poder, dizia ele com toda razão, não é o que justifica a atuação do Estado, mas, sim, o dever de prestar os serviços que lhe são impostos. A lição é, à exaustão, difundida por Celso Antônio no Brasil: não existem poderes da Administração, mas, sim, quando muito, “deveres-poderes”.
Chegado a esse ponto, apresento o critério que me parece correto. Antes de enunciá-lo, porém, faço uma prévia explicação, para justificá-lo. Tudo que diz respeito ao Estado, não é propriamente do Estado, mas do povo. Os bens, o dinheiro, os interesses, tudo enfim, que é do Estado, na verdade, é do povo. O Estado é instituído para tutelar o interesse alheio, o interesse do povo. A ideia, evidente, deve ser enfatizada por sua importância: nada — absolutamente nada — que se refere ao Estado, refere-se a ele de forma autônoma, porque o Estado não existe para tutela de interesses próprios, mas de interesses alheios, o interesse do povo. Na Teoria Geral do Estado é corrente dizer que o povo é um dos elementos fundamentais do Estado, o que significa dizer que ele é, pois, o próprio Estado.
Venho enfatizando a absoluta incompatibilidade entre a situação jurídica da liberdade e a atuação estatal (nesse sentido, meu “Teoria jurídica da liberdade”, Cap. III). Ser livre é poder escolher entre duas alternativas a partir do livre-arbítrio. Ninguém que esteja no exercício da função pública pode escolher tão somente a partir de seu livre-arbítrio. Mesmo na competência discricionária, deve buscar a máxima realização do interesse público, deve ser impessoal, moral etc. Essa ideia, para mim, é fundamental para compreensão do “critério” de incidência do Direito Administrativo.
Com efeito: quem exerce a função pública é sempre uma pessoa física, um ser humano. Sendo humano, é falível: pode desviar-se dos deveres que lhe são impostos. Ao invés de tutelar o interesse do povo, é possível que passe a tutelar interesse próprio ou alheio. Daí a existência de todo um “regime jurídico”. O Direito Público, em última análise, existe para “proteger” os interesses dos verdadeiros titulares do interesse público, a coletividade, o povo. É um regime jurídico protetor da coisa pública, dos bens públicos, do dinheiro público, do interesse público... Ora, como o dinheiro não é do agente, ele não pode gastá-lo como quiser; há um direito que protege os interesses do titular do dinheiro na realização da despesa pública. Como os bens não são do agente, ele não é livre para geri-los como quiser, há um direito protetor dos interesses do titular dos bens na gestão do patrimônio público. E assim por diante...
A noção é de uma obviedade ululante, mas surpreendentemente é posta de lado por quase toda doutrina e, muitas vezes, pelo Legislador, com absoluta tranquilidade. Sempre com o intuito de tutelar o interesse do povo, o Direito Administrativo obriga a realização de licitação para as contratações estatais, ao contrário do que faz com os particulares, livres para contratarem quem seu livre-arbítrio desejar. Sempre com o mesmo intuito, de proteger o interesse do povo, o Direito Administrativo obriga a realização de concurso público, para que as nomeações não se deem tendo em vista os interesses de quem nomeia. Compreendido o mais importante papel do Direito Administrativo — proteger o interesse alheio — fica fácil entender minha teoria sobre o “critério de incidência do Direito Administrativo”.
Defendo — e o faço de modo intransigente — a adoção radical da teoria da imputação, mas sem exigir a presença da “autoridade”. Adoto o critério estatutário, mas de modo radical. A ideia é muito simples: sempre que a Administração Pública — mais precisamente, alguém que esteja no exercício de função administrativa, ou, ainda, um “agente público” — estiver presente numa relação jurídica, incidirá o Direito Administrativo. Dessarte: se estiver presente a Administração, deve-se invocar o regime de direito administrativo, e não o regime de direito privado. O que define o regime jurídico não é a incidência de uma ou algumas regras, mas a incidência das vigas-mestras, dos alicerces, dos “princípios estruturantes”. Consequentemente, jamais a Administração Pública será regida pelo princípio da autonomia da vontade, alicerce do Direito Privado.
Como disse, Celso Antônio Bandeira de Mello, na 29ª. edição de seu Curso de Direito Administrativo, corrigiu o equívoco em que vinha incidindo. Passou a sustentar, além dos dois desdobramentos que sempre sustentou, um terceiro para a “supremacia do interesse público sobre o privado”. Tal princípio tem, segundo ele, três consequências: a) institui uma posição de supremacia, vale dizer, instaura uma relação geral de sujeição, uma relação vertical entre Administração e administrado; b) atribui prerrogativas à Administração, necessárias para a adequada tutela do interesse público; c) submete a Administração a uma série de restrições, necessárias à defesa dos interesses da sociedade, verdadeiras “barreiras defensivas”. A parte final corrige o equívoco: a Administração, mesmo que se insira numa relação horizontal, mesmo que se despoje das prerrogativas próprias da supremacia, ainda assim, estará sujeita às restrições. Estará sempre regida tanto pela “indisponibilidade do interesse público”, como pela “supremacia do interesse público”, quer dizer, pelo “regime de direito administrativo”.
De fato, o critério para a incidência do Direito Administrativo é a presença da Administração Pública. Ocorre que o Legislador, sempre com o apoio de farta doutrina, adora tentar fugir do Direito Administrativo, fenômeno chamado por Fritz Fleiner, em 1933, de “fuga para o direito privado” (Flucht ins Privatrecht). Fico surpreso como boa parte da doutrina brasileira — na verdade, quase toda — costuma aceitar essa fuga com absoluta tranquilidade. Ora, se há um direito “protetor” da coisa pública, um direito que “blinda” os interesses do povo contra o uso desatado do poder, um direito assegurador de que a impessoalidade e a moralidade administrativas sejam respeitadas, é possível, sem razão justificável, afastar essa proteção? Parece-me evidente que não! Sempre que a Administração Pública estiver presente, estarão presentes interesses, dinheiro, bens alheios e, pois, a necessidade da proteção.
Houve uma fase em que o Direito considerou o Legislador como suficiente para a solução de todas as arbitrariedades. No Antigo Regime, tudo era estabelecido pelo Monarca, considerado representante de Deus na Terra e imunizado contra a aplicação do Direito. Dizia Jean Bodin (Os seis livros da República): como o Monarca é o representante de Deus, as leis não podem constrangê-lo, pois não podem limitar a atuação de Deus. É fácil intuir os arbítrios que esses Monarcas praticaram. É bem compreensível que a fase histórica seguinte seja marcada pela crença no Parlamento, pela convicção de que ele seria a chave para todas as mazelas da humanidade. Refiro-me à fase do “Legalismo”, da absoluta reverência ao Legislador.
Muitos ainda se apegam a um critério que só é justificado no Legalismo. A incidência do Direito Administrativo dá-se quando a lei estabelecer. Por esse critério, seria o Legislador o soberano da incidência ou não do regime protetor: se o Legislador quiser obstar a proteção, basta que ele afirme, na lei, que a Administração será regida pelo Direito Privado. O Legalismo foi superado pelo Constitucionalismo. Lentamente, admitiu-se, mais e mais, que o Legislador não tinha o “poder” que a ele se atribuía. Há uma Constituição a respeitar! Pois bem, atualmente estamos na fase do Neoconstitucionalismo. A Constituição não consiste apenas na literalidade do texto expresso, ela compreende um conjunto de valores. Se o critério da “lei” para a incidência do Direito Administrativo já era absurdo no Constitucionalismo — apesar de quase ninguém ter percebido isso — ele é muito mais absurdo no Neoconstitucionalismo. O triste é que, ainda hoje, quase ninguém percebe o absurdo.
Finalizo com uma provocação: tendo em vista a realidade da Administração brasileira — marcada por uma história patrimonialista e clientelista — bem como a realidade da Democracia brasileira — marcada pelo coronelismo, é possível confiar tanto no Parlamento a ponto de deixar nas mãos dele a prerrogativa de decidir se os interesses, os bens, o dinheiro do povo serão ou não protegidos pelo Direito Administrativo? Para mim, não! Por isso, sempre que não houver justificativa plausível — e convincente — para a incidência do Direito Privado sobre a Administração Pública, para mim, ainda que fundamentada em lei e em farta doutrina, essa incidência configurará “fuga para o direito privado” e, pois, um atentado à Constituição.