Ricardo Marcondes Martins (SP)
A produção científica no Direito — produção de trabalhos monográficos como trabalhos de iniciação científica, monografias de final de curso de graduação e de especialização, dissertações de mestrado e teses de doutorado — e toda atividade a ela associada — debates acadêmicos, orientação, sustentação de posições perante bancas examinadoras, publicação de textos — sempre envolveu um grande inconveniente. O que mudou, na atualidade, é que o problema passou a ser explicitado. Antes era absconso, hoje se tornou ostensório. Trata-se do eterno debate sobre a existência ou não de uma verdadeira “Ciência” do Direito.
O próprio conceito de “Ciência” é controverso. Não me interessa aqui o debate filosófico sobre o tema. Fixarei um ponto de partida bastante simplista, a partir da obra de Tércio Sampaio Ferraz Junior (A Ciência do Direito): Ciência é um discurso que pretende transmitir informações verdadeiras sobre algo. Trata-se de um discurso que pressupõe a possibilidade de dissociar afirmações certas de afirmações equivocadas sobre certo objeto. A Ciência, enfim, relaciona-se com a busca da verdade.
Fixado o ponto de partida, examino as duas posições fundamentais sobre a Ciência do Direito. Há quem acredite que o Direito não é uma Ciência, mas uma mera Técnica. Esta é um conhecimento que visa a um resultado, sem pretensão de enunciar afirmações verdadeiras, mas apenas úteis. Valendo-me da famosa resposta de Chesterton, suponha-se que um náufrago numa ilha deserta deseje ler um manual de construção de barcos. O náufrago, certamente, não se interessará em aprender a forma “mais correta” de construção, mas apenas em aprender o suficiente para sair dali. Buscará um conhecimento técnico e não científico. O conhecimento técnico, em suma, predispõe-se a obter certo resultado. A segunda posição considera que o Direito é uma verdadeira Ciência e não uma Técnica. Há, segundo esse entendimento, um discurso verdadeiro sobre quais normas incidem sobre dada situação e sobre o sentido e o alcance delas.
Aceitar que o Direito configura uma Ciência pressupõe acreditar que existe uma interpretação que seja “correta”. Quem considera que o Direito consiste apenas numa Técnica não aceita essa premissa, existem interpretações plausíveis e não plausíveis, sustentáveis e não sustentáveis, mas não “verdadeiras” e “falsas”. Chamarei a posição que não acredita na existência de interpretações corretas de cética, e a que acredita de crente. Kelsen, no Capítulo VIII de sua Teoria Pura do Direito, foi um enfático defensor da posição cética. A norma seria sempre uma moldura, abarcante de várias possibilidades interpretativas igualmente plausíveis. A escolha de uma dentre as admitidas não seria um ato científico, mas político.
Há, pois, céticos e crentes. O interessante desse debate é que não são apenas os crentes que se predispõem a fazer Ciência do Direito. Paradoxalmente, céticos também exercem a atividade científica — e talvez até de forma predominante. Interessa-me aqui ressaltar as radicais diferenças de posturas. Quando o crente se manifesta, numa aula, sobre a interpretação, ele acredita que haja uma posição correta e outra incorreta. Perceba-se que essa premissa marca toda sua atividade acadêmica: não aceitará que seus alunos e orientandos assumam “qualquer” posição. Haverá caminhos exegéticos corretos e caminhos exegéticos errados. Para o cético, porém, tudo é possível. Viva a liberdade de pensar!
Acreditar numa interpretação jurídica como correta exige, de certa forma, uma postura idealista. O Jurista, ainda que lhe seja oferecido dinheiro para defender a posição contrária, continuará sustentando a posição que julga correta. Não por ambição, mas por “ideal”, pela convicção de que se trata da posição “verdadeira”. No passado, a postura idealista era mais comum. Nos dias de hoje, na “era do vazio” (Gilles Lipovetsky) ou na “modernidade líquida” (Zygmunt Bauman) ter ideal virou motivo de ofensa. O crente passou a ser chamado de conservador, inflexível, reacionário, não respeitador da divergência, antidemocrático...
A postura cética na Ciência do Direito tem desdobramentos bastante problemáticos. Como enfatizou Theodor Viehweg, a Ciência do Direito é operativa. Quem propõe uma interpretação sabe que está fazendo uma proposta sobre como, no fim das contas, as pessoas devem se comportar. A proposta de interpretação jurídica dá-se no jogo do poder das relações sociais. É o que Tércio Sampaio Ferraz Jr. chamou de caráter criptonormativo da Ciência do Direito. Ela, muitas vezes, é proposta para atender certos interesses e não em prol da verdade.
Perceba-se a nítida diferença de perspectiva. Quem assume o Direito como Técnica consegue defender, com o mesmo brilhantismo, tanto a posição do autor como a posição do réu. O Direito Administrativo não é, em si, coerente, dirão muitos, possui múltiplas ferramentas apropriadas para defesa de múltiplos interesses. A defesa simultânea de posições contraditórias é impossível a quem assume o Direito como Ciência. Daí a diferença entre a advocacia litigiosa e a consultiva. Quem defende em litígio geralmente assume uma posição técnica, quem emite um parecer assume, por crença ou por fingimento, uma posição científica. Quanto mais o parecerista se mantém filiado a suas posições, maior a credibilidade do parecer. Perceba-se: quem profere um parecer não diz ostensivamente que assume a posição cética: “tanto faz, senhor juiz, escolher a posição “a” ou “b”, pois ambas são plausíveis”. Ainda que seja cético, finge ser crente: “a posição correta é a minha”.
É fácil perceber o problema que a posição cética revela. Se não existe interpretação correta, existem interpretações igualmente possíveis, igualmente defensáveis, o que leva a um livre jogo de interesses. Quais serão defendidos? Pode ser que algum professor cético, em sua paradoxal atividade científica, resolva defender certo interesse porque considera mais ético, mais correto, tendo em vista algum ideal. A correção aí não se dará em relação à verdade, pois esta, para o cético, não existe. Não é esse o “ideal” a ser perseguido. Pode, então, ser outro: a opção que gere mais empregos, por exemplo; ou que traga mais investimentos para o país; ou que concretize mais os direitos das minorias. Será um mal menor se o cético se fundamentar em algum “ideal”.
De minha parte, continuo sendo crente! Acredito na Ciência do Direito e vivencio na Acadêmica o dilema. Quando um aluno me procura e me apresenta uma posição, de duas, uma: ou a posição é minimamente sustentável de acordo com minhas convicções científicas, ou não é. Às vezes, deparo-me com posições que, para mim, se prestam a legitimar a corrupção; posições cientificamente equivocadas de graves consequências práticas: importam na legitimação do desvio de recursos públicos, na má-prestação de serviços, na utilização da coisa pública em benefício de alguns e em detrimento de muitos. Diante disso, como me posicionar? Permito que o aluno sustente a posição, divulgue-a, publique-a e contribua para consolidá-la, gerando mais corrupção e ineficiência? Ou me nego a legitimar e a propagar o erro?
Dirão os céticos: o professor não pode pretender que o aluno concorde com ele sempre. Se o aluno discorda, tem o direito de sustentar suas convicções. Cabe ao professor apoiar o aluno, e encaminhar o trabalho à banca examinadora, não negar o título de especialista, mestre, doutor, não negar a publicação, mas até contribuir para que ela ocorra. Afinal, tudo é uma questão de opinião. Sim, para o cético, são só opiniões. Para o crente, são erros científicos, muitas vezes de funestas consequências.
Celso Antônio Bandeira de Mello, no apêndice de seu Curso de Direito Administrativo, cita, diante da problemática aqui apresentada, a música de Jorge Veiga, “Poder ser que não seja”. Quem sustenta certas posições na Ciência do Direito Administrativo, legitimadoras da corrupção, o faz por ingenuidade ou por desonestidade? Diz a música: “a moça que a gente conhece todo dia rezando na igreja, pode ser que seja uma santa, mas também pode ser que não seja”. Concordo com o ilustre professor: a dúvida é insolúvel. Eu, particularmente, faço uma ressalva. Direito não é apresentado como Curso Técnico. Há programas de iniciação científica, mestrado, doutorado. Nada impede que um Professor assuma a posição cética e não acredite na existência de uma Ciência do Direito. O problema está em não dizer, de forma clara, que o que está ensinando a seus alunos não passa de exercício de advocacia do interesse de seus clientes; advocacia travestida, apenas quando for conveniente, de Ciência. Ou, para me valer da expressão de meu grupo pesquisa: Ciência que é contrafação de Advocacia!