Ricardo Marcondes Martins (SP)
O ilustre Professor Paulo Modesto convidou-me para escrever uma coluna sobre atualidades do direito em seu prestigiado site. Aceitei de pronto o convite, que, para mim, é um grande desafio. Todos os textos jurídicos que escrevi até hoje, no exercício da docência, com raríssimas exceções, foram textos de pesquisa, com muitas notas explicativas e farta referência bibliográfica. A proposta envolve um outro gênero textual: o ensaio jurídico. Textos diretos, sem notas explicativas e sem pesquisa bibliográfica, com objetivo de, rapidamente, ir direto ao ponto: apresentar a posição do autor sobre dado assunto. Lembrei-me do saudoso Prof. Antônio Carlos Cintra do Amaral, que dominava esse gênero como ninguém. Tentarei me inspirar nele. Farei meu melhor.
O Prof. Paulo Modesto, ao fazer o convite, afirmou-me inexistir, no projeto, restrição ideológica. A afirmação, na área do Direito Público, em especial do Direito Administrativo, é mais do que pertinente. O estudante da disciplina percebe, logo que inicia o aprofundamento dos estudos, uma abissal discordância entre muitos juristas. As posições são tão diferentes que, a depender da sala de aula em que o curso de graduação é cursado — vale dizer, a depender do Professor —, o aluno terá um curso totalmente diferente. Tão diferente que é difícil, para um leigo, aceitar que se trata da mesma disciplina. Uma explicação para isso é a diferença ideológica: professores de diferentes convicções ideológicas defendem posições jurídicas diferentes, afinadas à respectiva posição.
Estou cada vez mais convencido de que a causa da divergência não é apenas ideológica. Ela decorre de diferentes premissas teóricas. Sim, os professores divergem porque têm diferentes posições sobre o próprio Direito! Noutras palavras, as divergências em Direito Administrativo decorrem de divergências em Teoria Geral do Direito. As primeiras, porém, são explicitadas; as segundas, não. Como não se debatem os diferentes posicionamentos relativos à teoria geral, tudo é debitado na conta da diferença ideológica. Resultado: os Professores são reduzidos a políticos.
Identificado esse problema, antes de apresentar meus posicionamentos sobre temas do Direito Público e, pois, enfrentar as polêmicas que a seara envolve, utilizarei este espaço para apresentar minhas premissas teóricas. Não me considero partícipe do campo político; e não considero que as minhas divergências com Professores que tanto admiro decorram de apenas convicções políticas. Sem meias palavras: não se trata de ser de esquerda ou de direita, do partido “A” ou “B”, progressista ou reacionário, neoliberal ou socializante. Não nego: o debate pode ser apresentado no terreno político; no mais das vezes, ele é apresentado nesse campo. Abdico do discurso político, em prol do discurso jurídico. Enfim: é possível que eu esteja enganado, mais estou convencido de que as posições que assumi no Direito Administrativo não foram assumidas por inclinações políticas; foram-no em decorrência de minhas premissas teóricas. E acredito: muitos dos professores que divergem de mim, divergem porque assumem, consciente ou inconscientemente, outras premissas.
Dentre elas, escolhi como ponto de partida o tema do neoconstitucionalismo. Venho utilizando a palavra em larga medida. Muitos criticam, rejeitam a expressão. Daí a pergunta: por que insisto em utilizá-la?
É interessante observar que a palavra foi pioneiramente utilizada por juristas que recusam o movimento a que ela se refere. Dentre outros, menciono o nome da ilustre Professora italiana Susanna Pozzolo, uma das que primeiro se utilizou do rótulo, mas o fez em ferrenha crítica ao suposto movimento por ele identificado. Apesar dessa origem, o fato é que o uso da palavra se difundiu, em grande parte graças ao trabalho do mexicano Miguel Carbonell, organizador de várias obras sobre o tema. Já se percebe meu apego à pesquisa bibliográfica e como para mim é difícil o gênero ensaístico. Sem mais delongas, o fato é, e isso é inegável, que há um consagrado uso na seara da Teoria do Direito: utiliza-se a palavra “neoconstitucionalismo” para identificar um movimento teórico de relativa recentidade.
Muitos juristas, porém, voltam-se contra esse uso — e não propriamente contra o movimento. E o fazem por dois motivos. Primeiro: a palavra “neoconstitucional” refere-se a algo novo em relação ao constitucionalismo. Porém, a história não cessa, o desenvolvimento científico continuará, virão certamente novas propostas e elas não poderão ser chamadas de “(neo)neoconstitucionalistas”, o que, segundo eles, evidencia o descabimento do rótulo. O que há, defendem, é um constitucionalismo do século XXI, ou uma “fase” do constitucionalismo.
Discordo. Um dos mais consagrados movimentos literários é o movimento do “modernismo”. Ora, ninguém ousaria dizer que depois do modernismo a história da literatura cessou. Por óbvio, ninguém supõe que o rótulo impede novos movimentos. Trata-se apenas de uma denominação, de um rótulo que se consagrou pelo uso. Seria até ridículo que um professor de literatura se negasse a se referir ao “modernismo” porque moderno é o que é atual e, após o respectivo movimento, outros vieram e outros virão. Desculpem-me os que discordam, mas do mesmo modo que é descabido a um professor de literatura negar-se falar do “modernismo”, é descabido a um professor de direito negar-se, hoje, falar do neoconstitucionalismo.
Segundo: para os críticos da palavra, inexiste uma identidade entre os autores, a ponto de todos poderem ser reunidos num grupo. Também discordo. Que os autores divergem em certos pontos, isso é inegável; que há diferenças substanciais entre as propostas teóricas dos chamados neoconstitucionalistas, chega a ser óbvio. Mas qual movimento é integrado por autores que concordam em tudo? Absolutamente nenhum. O que caracteriza um movimento não é uma necessária identidade entre todos os envolvidos, pois isso é sempre impossível. O que caracteriza um movimento é a presença de certas afinidades, tendo em vista, principalmente, o movimento anterior.
Pois bem, quais são as linhas mestras que caracterizam o que se chama neoconstitucionalismo. Antes disso, é necessário caracterizar, ainda que brevemente, o que foi o constitucionalismo? Foi um movimento jurídico, político e ideológico segundo o qual as normas relativas ao poder político devem constar de um texto escrito, único (Constituição codificada), produzido num determinado momento histórico (Constituição dogmática), por um órgão designado para tanto — chamado Poder constituinte. As normas extraídas desse texto apresentam, basicamente, duas características: são rígidas — sua alteração, quando possível, demanda um processo mais rigoroso do que o processo previsto para alteração das leis — e supremas — sobrepõem-se a todas as normas do ordenamento jurídico. A supremacia importa na revogação das normas anteriores que forem materialmente incompatíveis com as constitucionais, e na invalidade das normas posteriores que forem formal e materialmente com elas incompatíveis. Toda norma que pertença ao Texto Constitucional é considerada constitucional e, pois, dotada dessas duas características (Constituição Formal). Em relação ao conteúdo, exige-se apenas, nos termos do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que o texto estabeleça a separação de poderes e preveja direitos fundamentais. Eis, numa grande síntese, os traços fundamentais do constitucionalismo.
O modelo, porém, fruto da Revolução Norte-americana e da Revolução Francesa, muito influenciado pela filosofia política de Montesquieu e de Rousseau, era muito reverente ao Legislador. Segundo os constitucionalistas, se uma norma constitucional estabelece um fim a ser atingido, mas não estabelece um meio, para o fim ser concretizado faz-se necessária a atuação legislativa. Esse tipo de norma, segundo o modelo constitucionalista, condiciona a interpretação das normas infraconstitucionais, impede a edição de normas infraconstitucionais contrárias ao seu desiderato, mas, perceba-se, não assegura, por si próprio, direitos subjetivos.
O modelo entrou em crise, em virtude, principalmente, da derrocada do Estado Nazista. As leis raciais na Alemanha Nazista foram aprovadas pelo parlamento, reverenciados pelos constitucionalistas da época e consideradas válidas pela Judiciário. Com o fim do Nazismo era natural que o cumprimento da lei entrasse em crise. Podem-se mencionar outros fatores: a questão racial nos EUA é um fator pouco lembrado, mas de inequívoca pertinência. Boa parte dos argumentos de Ronald Dworkin se apoia em leis e decisões judiciais referentes à segregação racial.
A aprovação parlamentar de leis raciais fez crescer a desconfiança nos Parlamentos. Avançou-se: o texto constitucional não corresponde apenas a um conjunto de regras, mas a um “conjunto objetivo de valores”. Constando expressa ou implicitamente do texto, os valores são considerados normas constitucionais. Geram direitos subjetivos, independentemente da prévia atuação do legislador. Praticamente todos os neoconstitucionalistas reconhecem: os valores constitucionais geram direitos, mesmo sem lei que os dê arrimo.
Apenas para dar um exemplo: adquirir uma casa por doação estatal depende de lei, da vontade da maioria parlamentar, mas ter direito a um teto não depende de lei. Quando não se assegura uma vaga num albergue, viola-se o direito constitucional à habitação, mesmo que a maioria parlamentar tenha se omitido. Lembro-me do filme “À procura da felicidade”, de Gabriele Muccino. Nele é magistralmente retratada a ofensa ao direito ao teto. No direito brasileiro, trata-se de uma ofensa à Constituição vigente. Reconheço, porém, que se a premissa teórica — valores asseguram direitos mesmo na falta de lei — é acolhida por todos os neoconstitucionalistas, meu exemplo pode não o ser.
Outro ponto de afinidade: todos os neoconstitucionalistas consideram haver uma vinculação conceitual entre o Direito e a Moral. A Constituição, em outras palavras, pressupõe uma pretensão de Justiça. O constituinte originário, perceba-se, está longe de ser “ilimitado”, ao contrário do que se supunha no constitucionalismo. Ele é limitado por pressupostos necessários à edição de uma Constituição, dentre eles a pretensão de realização da justiça (Robert Alexy), ou o dever de coerência com a justiça e com a equidade (Ronald Dworkin). As palavras mudam a depender do autor examinado, mas a premissa é sempre a mesma: há uma vinculação conceitual entre o Direito e a Moral. Compreender a Constituição — e o Direito — demanda, por isso, muito mais do que uma análise linguística ou lógica. O Direito não se restringe aos textos normativos, nem à razão. Vai além. Exige sensibilidade.
Limito-me a destacar uma terceira afinidade entre os partidários do movimento. Praticamente todos recusam a aplicação exclusiva do Direito pelo silogismo efetuado a partir de regras abstratas expressa e previamente enunciadas. Para saber o que o Direito impõe, faz-se necessária a análise do caso concreto. As normas, no plano abstrato, não são suficientes para identificar os efeitos jurídicos; a identificação pressupõe o exame do caso concreto. Direito não se cumpre, apenas, pela subsunção de normas abstratas, previamente enunciadas.
A palavra “neoconstitucionalismo”, em suma, consagrou-se na Ciência do Direito para identificar um movimento jurídico de revisão do constitucionalismo. Fixei três pontos: a) o texto compreende um conjunto de valores que, por si próprios, geram efeitos jurídicos, independente da atuação dos poderes constituídos; b) há uma íntima ligação entre Direito e Moral; c) a aplicação do Direito exige atentar para a importância, no caso concreto, dos valores constitucionais. No direito administrativo, é evidente que haverá divergências entre os constitucionalistas e os neoconstitucionalistas; divergências não alicerçadas na política, mas decorrentes das premissas teóricas assumidas.