Colunistas

Paradoxo da Interpretação Literal

ANO 2016 NUM 102
Ricardo Marcondes Martins (SP)
Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. Líder do grupo de pesquisa "Ponderação no direito administrativo e contrafações administrativas".


07/03/2016 | 11987 pessoas já leram esta coluna. | 11 usuário(s) ON-line nesta página

Na coluna anterior afirmei que a resposta correta, segundo o construtivismo ético, é obtida pelo discurso racional, do qual todos podem participar. Nem o mais brilhante, o mais reconhecido, o mais aclamado jurista pode se proclamar a fonte da verdade na interpretação jurídica. Ele, como todos os demais, é um partícipe do processo de construção. Receio que essa assertiva possa levar a alguma incompreensão. Poder-se-ia indagar: para que estudar Direito? Por que dar atenção a um renomado professor? Se todos participam do processo de construção, o que os professores de direito têm a dizer, pode-se supor, não é mais importante do que o afirmado por qualquer ignaro na Ciência Jurídica. Por um lado, isso é verdade. É perfeitamente possível que uma proposta exegética feita por um leigo ou por um neófito nos estudos jurídicos seja mais correta do que a feita por alguém altamente titulado, com larga experiência profissional. Contudo, é mister enfatizar: como já observei, a argumentação jurídica possui particularidades, que fazem com que o discurso jurídico seja um discurso especial. Possível, sim, mas bem improvável...

Nesta coluna pretendo examinar uma dessas particulares, que justificam essa improbabilidade. Toda interpretação jurídica deve assentar-se — principalmente nos sistemas da civil law, como, dentre eles, o sistema brasileiro — nos textos normativos vigentes. Impende, então, perguntar qual o papel da literalidade desses textos na atividade dos juristas. Houve época em que era rechaçada qualquer interpretação que fosse além da literalidade. Montesquieu chegou a afirmar, no famoso Capítulo VI do Livro XI da conclamada obra “Do Espírito das Leis”, que o poder de julgar deve restringir-se a repetir o texto exato da lei, sendo, por isso, um poder “invisível” e “nulo”. A Revolução Francesa acolheu essa orientação: caso o magistrado tivesse dúvida sobre o sentido da lei, deveria suspender o julgamento e apelar ao Legislador para que este afastasse a dúvida. Os franceses chamaram o apelo de réferé au legislateur. Muito coerente: os magistrados tinham sido nomeados pelos nobres; os revolucionários mandaram os nobres para guilhotina; pouparam os magistrados da morte, mas não viram com bons olhos seu trabalho. O referendo foi abandonado em abril de 1837, mas a desconfiança em relação à magistratura marcou o direito francês para sempre: como se sabe, nem o controle do Legislador nem o controle da Administração, na França, são, regra geral, efetuados pelo Judiciário. O que importa para esta coluna, porém, é o seguinte: nem no Direito Francês manteve-se o referendo legislativo. De fato, esse apego à literalidade está praticamente sepultado!

É uma lição consagrada na Hermenêutica Jurídica: o método literal, filológico ou gramatical tem uma importância secundária. Carlos Maximiliano lembra famosa frase de Giambattista Vico, catedrático de Nápoles: “quem só atende a letra da lei, não merece o nome de jurisconsulto”. Dito isso, há que reconhecer: se houve momentos históricos em que se tentou a todo custo reduzir a interpretação à leitura do literal, houve também momentos de desprezo ao texto.

O processo de desapego à letra da lei intensificou-se com o fim do Estado Nazista. Apesar de já ter me referido a esse tema em colunas anteriores, creio que é oportuno retomá-lo. O Estado nazista era um Estado legalista: leis racistas, contra o povo judeu, foram formalmente aprovadas no Parlamento de Nuremberg; apelidadas, por isso, de “leis de Nuremberg”. François Rigaux, em seu “A Lei dos Juízes”, narra como essas leis foram reverenciadas pelos Professores de Direito. Hoje, todos lembram de Carl Schmitt como um jurista apoiador do regime. De fato, ele apoiou, mas não foi o único. Rigaux narra a defesa da “jurisprudência dos interesses” efetuada por Philipp Heck: para ser aceita pelos seus colegas na Universidade, Heck esforçou-se para demonstrar a compatibilidade da teoria com as teses nazistas. Karl Larenz, teórico que influenciou muitos dos grandes constitucionalistas da atualidade, contribuiu — conforme informa Mario G. Losano no 2º. volume de seu monumental “Sistema e estrutura no direito” — para o regime nazista com farta doutrina. Larenz, aliás, é um exemplo interessante: com o fim do nazismo, afastou-se e reescreveu sua obra. Passou a defender que o sistema normativo se alicerça na justiça e na dignidade. Incrível como os juristas são capazes de defender, com muita proficiência, posições díspares. E o papel, substrato material de signos linguísticos, feliz ou infelizmente, aceita tudo! François Rigaux apresenta dados mais surpreendentes: as leis raciais chegaram a ser aceitas pelo Judiciário. Foram consideradas, em pelo menos duas oportunidades, por mais estarrecedor que possa parecer, constitucionais.

Após a Segunda Guerra, os nazistas foram levados a julgamento. Um caso paradigmático é o retratado por Hannah Arendt na obra “Eichmann em Jerusalém”. Como condenar alguém que se limitou a cumprir a lei, quando ela foi formalmente aprovada, reverenciada pela doutrina e considerada válida pelo Judiciário? Se administrar é, na famosa definição de Seabra Fagundes, “aplicar a lei de ofício”, a defesa dos nazistas é bem fundamentada: eles simplesmente cumpriram a lei. Como reconheceu a filósofa: Eichmann não passou de um burocrata medíocre. Por motivos óbvios, o cumprimento da lei, após o Nazismo, entrou em crise.

A reação teórica mais significativa a essa crise foi a obra “Tópica e jurisprudência”, de Theodor Viehweg. A partir da obra de Gianbattista Vico — sim, o mesmo Vico que é citado por Maximiliano —, Viehweg defende a Tópica como o método mais apropriado para a aplicação do Direito. Considera que a aplicação mediante silogismos, ou seja, pela subsunção dos fatos às hipóteses normativas e subsequente imposição das consequências estabelecidas previamente no plano abstrato sem a consideração da riqueza do caso concreto, não é a forma mais adequada para resolver os problemas jurídicos. Como reconheceram Aristóteles e Cícero os conflitos humanos exigem contraposição de argumentos. A solução é dada a partir do problema, do caso concreto, e não a partir da lei, do estabelecido no plano abstrato com desprezo pelas particularidades do caso. Feito esse resumo, assevero: a comunidade jurídica foi praticamente unânime em rechaçar a Tópica. Todos disseram que nela a lei é reduzida a um mero “topoi”, a um mero ponto de vista, o que é incompatível com a exigência de segurança jurídica, e Direito sem segurança não é Direito.

Na minha leitura, a crítica foi um pouco injusta. Viehweg diferenciou a por ele chamada “tópica de primeiro grau” da “tópica de segundo grau”. A primeira refere-se aos pontos de vista diretamente decorrentes do caso; a segunda, dos pontos de vista já fixados previamente. As leis referem-se, nessa terminologia, à tópica de segundo grau: são catálogos de pontos de vista fixados antes da ocorrência do problema. A tópica de segundo grau, na visão de Viehweg, prepondera sobre a de primeiro grau. Injusta ou não, o fato é que se pacificou o entendimento de que a tópica não concretiza suficientemente a segurança jurídica.

Não era possível recuar: quase ninguém mais aceita a imputação normativa fundamentada apenas e tão somente na competência do agente normativo. Ainda que aqui ou ali se encontre algum jurista que se autoqualifique como kelseniano, é inegável que a teoria da interpretação exposta no Capítulo VIII da Teoria Pura do Direito tornou-se, felizmente, para grande maioria, conceitualmente intolerável. Kelsen nunca foi favorável ao nazismo. Como se sabe, por ter antepassados judeus, foi denunciado e teve que fugir. Asilou-se na Califórnia e lá não conseguiu dar aulas na Faculdade de Direito. Apesar de internacionalmente conhecido, permitiram-no apenas lecionar no Departamento de Ciência Política. Sua obra, contudo, legitimou, sim, a barbárie: se tudo depende da opinião do agente competente, na teoria de Kelsen não há razão para negar a juridicidade das leis raciais. Enfim, se a tópica é insegura, não era possível recuar ao positivismo formalista.

Daí o desenvolvimento dos chamados “métodos concretistas”. Cito alguns: ponderação de Robert Alexy, concretização de Konrad Hesse, abertura constitucional de Peter Häberle, metódica estruturante de Friedrich Müller. O que caracteriza todos os métodos concretistas? A solução jurídica depende, sempre, do exame do caso concreto, daí serem denominados “concretistas”. Além disso, e principalmente, todos acolhem a premissa de que o texto normativo não é apenas um “topoi”. Como diz Konrad Hesse, o texto escrito é um “limite inultrapassável da interpretação”. Ronald Dworkin, a partir de um paralelo com a interpretação de obras literárias, argumenta: criar novos personagens ou novos fatos não é interpretar uma peça ou um romance, é reescrever a obra. Todos os concretistas, na mais prazível das harmonias, encarecem esta ideia: o texto normativo é o ponto de partida e o limite da interpretação jurídica. Bem por isso, Friedrich Müller afirma textualmente: os elementos sintáticos e gramaticais prevalecem na atividade interpretativa.

Cheguei finalmente ao tema que dá nome a esta coluna: por um lado, o método literal tem importância secundária; por outro, o método literal possui um papel primacial. Ambas as assertivas estão certas! Quando duas assertivas contraditórias são, simultaneamente, verdadeiras, surge um paradoxo. Eis o que chamo de paradoxo do texto normativo. Passo a enfrentá-lo.

De fato, o Direito corresponde às normas jurídicas vigentes e estas correspondem ao sentido e ao alcance dos textos normativos. A consagrada lição da escola Genovesa de que a norma é estabelecida pelo intérprete é, para mim, equivocada. Norma jurídica não se confunde com texto normativo. Contudo, não é o intérprete que cria a norma. A atividade do intérprete não é volitiva, mas cognitiva. O intérprete extrai a norma do texto normativo. Há aí uma diferença substancial: a norma é fruto da interpretação, mas não é estabelecida pelo intérprete. Quem edita a norma é o agente normativo, quando da produção do texto. Ao editar o texto, edita as normas. Cabe, porém, ao Cientista do Direito descobrir quais normas estão no texto. Por isso, interpretar é descobrir o sentido de textos normativos. A resposta a qualquer problema jurídico deve, pois, assentar-se nos textos normativos vigentes. Daí a proeminência do método literal, gramatical, filológico. Deveras: a resposta que não encontra amparo em textos jurídicos vigentes é equivocada. Uma observação: claro que a resposta pode contrariar um texto e não contrariar outro. Como há uma hierarquia entre os textos, a resposta deve sempre respeitar o texto constitucional, ainda que contrarie textos legais, administrativos ou privados. O que não se admite é resposta não amparada em texto normativo algum.

Dito isso, há que reconhecer: quem estuda os textos diuturnamente tem mais aptidão para apresentar a resposta jurídica correta. Aliás, quanto mais alguém se debruça sobre os textos normativos e tenta compreendê-los, maior a probabilidade de enunciar a interpretação correta. Direito é um verdadeiro sacerdócio: exige dedicação, estudo constante, aprofundamento teórico diuturno. Como afirmado, pode ser que a exegese proposta pelo leigo, ignaro, ou neófito seja mais correta do que a proposta pelo jurisconsulto reconhecido. Porém, tudo levar a crer que essa possibilidade, em decorrência da particularidade do discurso jurídico ora apresentada, seja bastante incomum. Se a interpretação jurídica consiste na descoberta do correto sentido dos textos, quem dedica à vida a entendê-los, tende a interpretá-los melhor.

Se o método literal é proeminente, como pode ter uma importância secundária? Quem afirma seu caráter secundário não nega a necessidade de que toda interpretação jurídica se assente nos textos normativos vigentes. Também considera que o intérprete não pode, a pretexto de interpretar, produzir novos textos. Nega, sim, que as normas se extraem apenas da literalidade. Tem razão Friedrich Müller quando compara o Direito a um iceberg, em que só a ponta não está embaixo das águas do mar. As normas extraídas da literalidade são apenas a ponta do iceberg, todas as demais estão “implícitas”.

Na teoria da linguagem diferenciam-se a sintaxe, a relação dos signos entre si, a semântica, a relação dos signos com o significado, e a pragmática, a relação dos signos com os partícipes da comunicação. Dentre os temas fundamentais da pragmática destacam-se as implicaturas e as pressuposições. Numa conversação, o significado do que é dito não se limita ao conteúdo convencional ou semântico das respectivas enunciações. Compreende todo conteúdo implícito, metafórico, irônico, vale dizer, um amplo conjunto de inferências geradas no contexto comunicativo. Pois bem, boa parte da comunicação não está na literalidade do comunicado, mas decorre de implicaturas e pressuposições. A comunicação jurídica não é diferente: ela não se restringe, por óbvio, ao que é literalmente enunciado.

Dou um exemplo. É bastante comum na teoria do direito considerar-se a analogia um método de “integração do direito”. Muitos explicam-na como se fosse uma atividade de criação de normas pelo intérprete; este, como um editor normativo, estabeleceria, pela analogia, uma nova norma. Em que pese essa explicação ser bastante corrente, ela é equivocada. Intérprete não cria normas, descobre as normas existentes. A atividade, insisto, é cognitiva e não volitiva. O que ocorre é que o Direito não é formado apenas pelas normas que se extraem da literalidade. Invoco o famoso exemplo do jusfilósofo mexicano Recaséns Siches: suponha-se um texto normativo que estabeleça a proibição de ingressar com cães numa estação ferroviária. Indaga Siches: é possível ingressar com ursos? Não! Perceba-se: não é o intérprete que cria a norma proibitória. Ao interpretar a regra que estabelece a proibição de ingressar com cães, infere-se a proibição de ingressar com ursos. Percebe-se, na regra, a intenção de proteger a incolumidade física dos demais; constata-se que ursos geram maior risco ao bem protegido do que os cães; descobre-se, então, a norma implícita, proibitória da entrada de ursos. Aprofundando-se a análise dos textos normativos, certamente constatar-se-á também a norma implícita autorizadora da entrada de cães-guia, acompanhantes de cegos. Insisto: a maioria esmagadora das normas jurídicas não está na literalidade.

Um dia me perguntaram: um irmão do secretário pode participar de uma licitação realizada na respectiva secretaria? Respondi que não. Mas a proibição não consta da Lei 8.666/93, dirá o leigo, que poderá até me acusar: você, jurista, é que está criando a norma. Ledo engano: a norma consta, sim, da Lei 8.666/93, mas não de sua literalidade. Ela está implícita. Em minhas aulas, sempre menciono o RESP 615432/MG, em que o STJ, com absoluto acerto, considerou que a namorada do Prefeito não pode participar de licitação realizada pela Prefeitura. O raciocínio é o mesmo: a proibição não consta da literalidade da Lei 8.666/93, está implícita.

Em suma: interpretar é descobrir o sentido correto dos textos normativos vigentes. Esse sentido, contudo, não está apenas na literalidade; boa parte do sentido normativo está implícito. Desvenda-se, então, o suposto paradoxo: o método literal é ao mesmo tempo proeminente na interpretação — o texto é sempre o limite — e secundário — a literalidade não é limite. Dito isso, a título de conclusão, observo: a hermenêutica jurídica, creio que ficou claro, é atividade técnica, complexa, que envolve estudo sério. É, pois, um verdadeiro sacerdócio, exige dedicação eterna. Ilude-se o estudante que vê no último dia de aula o epílogo de seus estudos. Quem para de estudar na graduação, acaba só enxergando o que está na literalidade; só vê a ponta do iceberg.



Por Ricardo Marcondes Martins (SP)

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