Ricardo Marcondes Martins (SP)
Quem leu minhas colunas anteriores deve ter percebido que tenho relutado em tratar de temas atuais. Nelas examinei aspectos teóricos da Teoria Geral do Direito, sob o argumento de que elas explicam as divergências sobre temas do dia a dia. Recentemente, amigos e alunos indagaram-me sobre minha opinião sobre a posse de Lula. Alguns me pediram para escrever sobre o tema. Relutei, confesso, bastante. Por um motivo simples: como já afirmei aqui, não me considero político e sim jurista. Não que o tema não tenha interesse jurídico, tem muito. Mas, como disse Fabio Konder Comparato, em entrevista à Rede Brasil Atual, em 17.03.16, “tudo agora virou política”.
Como acredito no Direito — como disse em coluna anterior, “tenho fé” — o momento atual me deixa profundamente triste. Recusar o desafio, porém, seria reconhecer a perda da fé. Não a perdi! Continuo acreditando no Direito! Mesmo acreditando que tudo que eu diga aqui será, por muitos, reduzido a mera política, enfrentarei o desafio. Passo a apresentar minha análise jurídica sobre a nomeação do Ex-Presidente para o cargo de Ministro da Casa Civil.
O tema envolve aspectos jurídicos intrincados. O primeiro: a natureza do ato. Para boa parte da doutrina, trata-se de um “ato político” e não de um “ato administrativo”. Pois bem, eu rejeito a teoria dos atos políticos. Para mim, ela é uma teoria, como revela Paul Duez, que foi pioneiramente elaborada para imunizar do controle jurisdicional certos atos. No sistema jurídico brasileiro, sustento, inexiste essa imunidade. Por isso, sustentei em obra publicada em 2008: todos os atos estatais ou são legislativos, ou administrativos ou jurisdicionais (Efeitos dos vícios do ato administrativo, p. 42). Logo, a nomeação, para mim, é um ato administrativo e não um suposto ato político. O surpreendente é que minha posição, inegavelmente minoritária, passou a ser afirmada por muitos juristas. Por que eles não se manifestaram antes contra a teoria dos atos políticos? Por que, então, não se voltaram contra o tema das “políticas públicas”, expressão que sempre rejeitei? Muito simples: porque tudo, nas palavras de Comparato, tornou-se política!
Fixada a premissa de que o ato é administrativo, passo a outro tema: a nomeação para cargos em comissão e funções de confiança. Em trabalho publicado originariamente em 2011 passei a sustentar uma posição que, até então, pela minha pesquisa, era inédita na doutrina brasileira. Sustentei que havia um equívoco generalizado sobre o tema dos cargos em comissão. Todos pressupunham que a confiança exigida para a nomeação seria uma “confiança subjetiva”. Afirmei o contrário: trata-se de uma “confiança objetiva”. Explico: não é a confiança de que a pessoa é amiga do nomeante e, por isso, de que será fiel a ele, fechará os olhos para tudo que ele fizer de errado, que justifica a nomeação. Não! Trata-se da confiança de que o nomeado está apto a bem exercer a função. E, sendo uma “confiança objetiva”, de modo geral, todos acreditam nessa aptidão.
Feita essa diferenciação, expliquei: os cargos em comissão decorrem de uma falta de pressuposto fático para o concurso público. São funções que demandam um profissional reconhecido em sua área de atuação, de tal modo que esse tipo de profissional não tem interesse em prestar concursos. Um exemplo didático: o cargo de Ministro da Fazenda ou de Presidente do Banco Central deve ser preenchido por alguém que seja respeitado no mercado; esse tipo de profissional, regra geral, não tem interesse em prestar concurso. Coerentemente, a Constituição, no art. 37, II, afasta o concurso para esses cargos, mas exige a presença da “confiança objetiva”. Deve ser nomeado alguém que, de modo objetivo, seja considerado apto a bem exercer a função. Na existência de vários interessados que despertem essa “confiança objetiva”, surge uma competência discricionária: cabe ao nomeante, a partir de seus valores, escolher. Resumi aqui a teoria que hoje se encontra no capítulo seis de meu livro “Estudos de Direito Administrativo Neoconstitucional”.
Minha posição não é tratada, segundo minha pesquisa, nos termos que apresentei, por nenhum autor que li até o presente. O fato é que, na prática, toda nomeação para cargo em comissão e função de confiança no Brasil, e são milhares e milhares de nomeações, segue o critério da “confiança subjetiva”. Aliás, a exoneração segue o critério da “perda da confiança subjetiva”. A comunidade jurídica havia se voltado contra essa prática até o presente momento histórico? Não, não havia. Os milhares e milhares de nomeações Brasil afora jamais foram questionados. Parece que minha teoria ganhou força. Qual será o motivo? Será que a comunidade jurídica mudou de opinião sobre o tema? Custo a acreditar. A explicação parece ser outra: como diz Comparato, tudo virou política!
Feita essa observação, retomo o caso concreto: a nomeação do Ex-Presidente Lula. Será que alguém — e me refiro aos opositores — nega que o Ex-Presidente Lula é dotado de uma grande habilidade política? Ele, de operário, tornou-se Presidente. Foi eleito duas vezes Presidente da República. Elegeu seu sucessor por duas vezes. E terminou seu mandato com ampla aprovação da população. Sem o aprisionamento da ideologia política, é possível negar que Lula possui, do ponto de vista objetivo, “aptidão para exercer articulação política”?
Acredito, sinceramente, ser impossível negar nesse caso a presença da “confiança objetiva” a que me referi. O nomeado é, do ponto de vista objetivo, apto a exercer articulação política. Se ele tivesse sido nomeado para o cargo de Ministro da Justiça ou da Fazenda, eu poderia até questionar esse pressuposto. Mas a função de Chefe de Casa Civil consiste, primordialmente, na articulação política do governo. A confiança objetiva, enfim, está presente!
O caso, porém, envolve outros aspectos, que precisam ser examinados. Como eu disse, havendo várias pessoas que despertem confiança objetiva sobre a aptidão para o exercício da função e aceitem a nomeação, a escolha do nomeante é discricionária. Como já antecipei em colunas anteriores, planejo tratar da discricionariedade futuramente. Retomarei o tema nas próximas colunas. Nesta, limito-me ao necessário para enfrentar o problema. Para mim, existe discricionariedade quando o sistema jurídico admite duas ou mais soluções e imputa a escolha ao agente competente. Se tanto é válido nomear “X” como nomear “Y”, a nomeação configura exercício de competência discricionária, e a escolha entre “X” e “Y” é imputada ao agente competente para efetuar a nomeação. Dito isso, pontuo: a nomeação de um Ministro configura, regra geral, exercício de competência discricionária.
Adoto nesse tema a posição do Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello. Resumirei a questão, um tanto quanto complexa. No exercício de competência vinculada, o Direito aceita apenas uma solução. Assim, de duas, uma: ou o agente adotou essa solução e a decisão é válida; ou não a adotou, e a decisão é inválida. Nesse caso, sua intenção — tecnicamente denominada “móvel” — é irrelevante para a validade do ato. Se ele adotou a decisão correta, mas com móvel espúrio, vale dizer, com a intenção de perseguição, compadrio etc., o ato é válido. Um exemplo didático: se alguém passa, com veículo automotor, no sinal semafórico vermelho, deve, regra geral, ser multado. Se o agente de trânsito multa porque odeia o proprietário do veículo, seu móvel é irrelevante para a validade da multa. Isso, no exercício de competência vinculada; na discricionariedade, tudo é diferente.
Nos termos antecipados, quando o Direito admite duas ou mais soluções, ele, Direito, imputa a escolha ao agente competente. Nesse caso, valendo-se da figura de linguagem chamada “personificação”, e supondo-se que o Direito possua uma “vontade” própria, a “vontade do Direito” é a vontade do agente competente. A resposta correta é a opinião do agente sobre a melhor forma de realizar o interesse público. Perceba-se que a discricionariedade não é equivalente à liberdade: o agente não é livre para escolher, não pode escolher apenas com base em seu livre-arbítrio. Deve optar pela solução que, no seu íntimo, seja a melhor forma de realizar o interesse público.
O que ocorre se a vontade do agente, no exercício de competência discricionária, é viciada? Se ele escolhe porque recebeu propina, porque quis beneficiar um amigo ou prejudicar um inimigo? Perceba-se: há um vício de vontade, mas a “vontade do agente”, no Direito Público é irrelevante. O que importa é a vontade do Direito. Contudo, na competência discricionária — insisto — a vontade do Direito é a vontade do agente. A resposta correta é a opinião do agente sobre a melhor forma de realizar o interesse público.
O problema é que não é possível descobrir a opinião do agente, caso ele não a revele. É o que eu chamo de “intangibilidade da psique do agente” (Efeitos dos vícios do ato administrativo, p. 200). Coerentemente, argumenta o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello: nesses casos, de móvel espúrio em competência discricionária, não dá para saber se a vontade do Direito foi ou não realizada. Perceba-se: não dá para saber se, caso o agente estivesse com móvel imaculado, ele também não escolheria a alternativa que escolheu com móvel espúrio. Em decorrência da intangibilidade referida, simplesmente não dá para saber. O que fazer? Afirma o Prof. Celso Antônio: nesses casos, em decorrência da má-fé do agente, deve-se presumir de forma absoluta o vício de finalidade. Entenda-se: como ele atuou com móvel espúrio, deve-se presumir que tenha escolhido alternativa diversa daquela que, segundo seu íntimo, seria a melhor forma de realizar o interesse público. Daí a conclusão, que eu acolho integralmente: no exercício de competência discricionária, o vício de vontade faz presumir, de modo absoluto, o vício de finalidade. Consequentemente, vício de vontade, na discricionariedade, leva à invalidade do ato.
Resumida a teoria, examino o caso concreto. Dizem muitos: a Presidente da República (tenho dificuldade em escrever Presidenta, discussão que aqui não vem ao caso) nomeou o Ex-Presidente Lula apenas e tão somente para beneficiá-lo. Se essa assertiva estiver certa, a conclusão é, segundo a teoria que expus, inexorável: a nomeação é inválida por presunção absoluta de vício de finalidade. Mas, como é possível afirmar, com absoluta convicção, que o móvel da Presidente foi esse? Perceba-se: só por ideologia, só por política. Explico: é inegável que o Governo passa por uma séria crise política; como eu disse, é inegável que Lula possui inestimável capacidade para articulação política. Ora, por que a Sra. Presidente não o teria nomeado em decorrência dessa capacidade? Perceba-se: qual a base para se afirmar o móvel espúrio?
Um administrativista, por quem nutro especial admiração e respeito, disse-me ter se surpreendido quando eu, logo eu, recusei a “presunção de móvel espúrio”. Eu lhe retorqui: como ele, logo ele, pode aceitar tão facilmente a “presunção de móvel espúrio”. Vendo que ele ficara bravo, logo supliquei: “não se irrite, assim como seu posicionamento está contaminado por sua ideologia, é bem provável que o meu também esteja”. É o que se chama de “pré-compreensão do intérprete”.
Como diz Foucault, ao contrário do que pensam os marxistas, a ideologia não é um obstáculo ao conhecimento, é um pressuposto dele. Só é possível conhecer a partir de nossa visão de mundo, de nossas experiências, de nosso conhecimento pretérito. Assim, por mais que o intérprete se esforce, ele jamais conseguirá interpretar com total desprendimento de sua visão de mundo. Sem embargo, como diz Gadamer, quem só consegue ver suas convicções no objeto a ser interpretado, não consegue interpretar. Nas palavras dele: “quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa”. Interpretar é compreender o que diz o objeto interpretado e não lhe impor sua fala. O intérprete – digo eu – deve travar uma luta consigo, deve esforçar-se para identificar sua própria ideologia e, a partir dessa identificação, reconhecer eventual ideologia contrária no objeto interpretado (cf. meu Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, p. 53). Assim, apesar de ser impossível ao jurista livrar-se totalmente de sua pré-compreensão, é possível minimizá-la, lutar contra ela, buscar, enfim, a interpretação jurídica correta.
Retomo: há base para presumir o móvel espúrio? Como lembra o Prof. Celso Antônio, dificilmente o desvio de poder, qualificação doutrinária para o vício de finalidade, é afirmado textualmente pelo agente. Por isso, ele se prova, na expressão de Jean Rivero, por um “feixe de indícios convergentes”. Daí a pergunta: há um feixe de indícios suficientes para provar o desvio de poder?
Tentou-se a todo custo configurar esse feixe de indícios. Chegou-se ao clímax de quebrar o sigilo telefônico e de divulgar as conversas, inclusive da própria Presidente da República, em busca desse feixe de indícios. Quais são os fatos: a nomeação deu-se após a condução coercitiva do nomeado para um depoimento, condução considerada manifestamente ilegal por significativa parte da doutrina. A condução deu-se após uma estrondosa campanha midiática contra o nomeado. Mas, de concreto, o que existe é o fato de que ele usava propriedades que não estão em seu nome. Crime? Por ora, nenhum crime foi provado. Usar propriedades alheias não é crime. Realizar obras em propriedade alheias não é crime. O uso e as obras, do ponto de vista jurídica, não transferem a propriedade. Enfim, do ponto de vista jurídico, é tudo política. Construiu-se, então, a tese de que a nomeação foi efetuada para livrar o Ex-Presidente Lula da cadeia.
O fundamento dessa tese é que, uma vez nomeado Ministro, o nomeado passa a ter foro privilegiado. Ao invés de ser julgado por um juiz de primeira instância, passa a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Particularmente, sou bastante crítico à atuação do STF. Como jurista, do ponto de vista dogmático, devo reconhecer: para o Direito, o STF é mais habilitado a dar a última palavra sobre as questões jurídicas do que o magistrado de primeira instância. Só pessoas com “notável saber jurídico” são nomeadas para a Corte. Ela tem a magna missão de ser a “guardiã da Constituição”. De suas decisões, regra geral, não cabe recurso; quando cabe, é interposto para a própria Corte. Ora, supor que a mudança de foro é um benefício para o nomeado é colocar em dúvida a integridade da Corte. Inacreditável como, por política, a comunidade jurídica admite essa tese.
Se alguém deve ser preso, supõe-se que o juiz de primeira instância determinará a prisão, mas a Corte Suprema não a determinará. Com todo respeito, do ponto de vista dogmático, a presunção deve ser em favor da Corte. Deve-se supor, sob pena de decretar a falência institucional do sistema, que a Corte tenha mais condições de acertar na interpretação correta do que o magistrado de primeira instância. Quem leu minhas colunas anteriores sabe que, para mim, nenhum magistrado é isento de erro, nem mesmo um Ministro do STF. Porém, do ponto de vista jurídico, considero inegável: para o sistema jurídico, o STF dá a última palavra sobre a interpretação jurídica. Se ele errou, só ele pode retificar o erro. Ora, se uma prisão é juridicamente devida, a comunidade jurídica deveria acreditar que o STF está mais habilitado a decretá-la do que o magistrado de primeira instância.
Para o nomeado — e isso é o mais surpreendente —, a mudança de foro restringe e não estende seus direitos individuais. Por evidente, da decretação de prisão pelo juiz de primeira instância cabe recurso para a segunda instância e desta para a terceira instância. Da decretação de prisão pelo STF só cabe recurso para o próprio STF e, dependendo do caso, nem recurso é cabível. Ora, que móvel espúrio é esse que prejudica ao invés de beneficiar? Nesse triste momento histórico que o Brasil atravessa, foi um filósofo — Vladimir Safatle — quem reconheceu, em sua coluna de 18.03.16: do ponto de vista jurídico, a tese não se sustenta! Por que os juristas não reconhecem essa insustentabilidade manifesta? Fácil: como diz Comparato, tudo se reduziu à política!
É até possível que a perseguição empreendida pelo Juiz de primeira instância tenha motivado Lula a aceitar o cargo. Mas, do ponto de vista jurídico, o móvel do nomeado é absolutamente irrelevante. A nomeação não é inválida caso o nomeado não tenha aceitado o cargo em prol da máxima realização do interesse público. O nomeado pode ter aceitado o cargo porque precisa do dinheiro da remuneração, porque estava em depressão e resolveu voltar ao trabalho, porque quis fugir da pena de um juiz de primeira instância. Pouco importa, o móvel do nomeado é irrelevante para validade da nomeação. Apesar disso, mesmo em relação ao Lula, o que há são presunções e ilações feitas por política: como se pode afirmar que ele não aceitou o cargo porque quis salvar o governo de uma grave crise política? A mudança de foro, como eu disse, não o imuniza; ao revés, priva-o de um arsenal de recursos.
Em suma: a nomeação para o cargo de Ministro da Casa Civil é um ato administrativo próprio de competência discricionária. Ele pressupõe a confiança objetiva de que o nomeado é apto a bem exercer a função. Esse pressuposto está presente na nomeação de Lula: é inegável sua habilidade para fazer articulação política. A nomeação é inválida se o nomeante age com móvel espúrio, pois este faz presumir, de modo absoluto, vício de finalidade. Sem desprestigiar — nem ofender, longe de mim — os que pensam o contrário — só motivação político-ideológica alicerça as presunções e ilações em prol da configuração do móvel espúrio da Sra. Presidente da República. Para mim, tudo leva a crer que ela nomeou Lula pelo simples fato de que é difícil encontrar alguém mais hábil do que ele para fazer política. Seu governo, feliz ou infelizmente, a depender da ideologia de cada um, está submerso em uma grave crise política e necessita de um notável articulador. Tudo o mais é política!