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"Diretas Já!": Solução para a crise política?

ANO 2017 NUM 366
Rafael Hamze Issa (SP)
Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP. Associado Fundador do IBDEE (www.ibdee.org.br). Advogado.


21/06/2017 | 3476 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

A crise política que se instalou desde o impeachment da ex-presidente Dilma Roussef trouxe à tona o debate a respeito da sucessão presidencial em caso de afastamento do atual Chefe do Executivo federal, Michel Temer, que assumiu o cargo por ser o vice-presidente da mandatária afastada, eleito nos termos do artigo 77, §1º, da Constituição Federal. O tema tem recebido a atenção da mídia e fomentado inúmeros debates na imprensa e nas redes sociais, apesar da existência de regra constitucional expressa (art. 81, §§1º e 2º), que determina a realização de eleições indiretas para o presidente e o vice-presidente completarem o período restante até o pleito de 2018, uma vez que a dupla vacância ocorreria na segunda metade do mandato iniciado em 2015.

Tal regra constitucional, que também esteve prevista nas Constituições de 1934 e 1946, foi regulamentada pela Lei n. 4.321/64. Apesar de este texto legal não trazer toda a regulamentação da matéria (por exemplo: se as condições de elegibilidade são as mesmas da eleição presidencial ordinária; possibilidade ou não de propaganda e campanha eleitoral; necessidade de desincompatibilização de candidatos ocupantes de cargos públicos e respectivo prazo; aplicabilidade do Código Eleitoral e da Lei 9.504/97 a tal pleito, uma vez que estas leis são posterior àquela etc.), o fato é que, atualmente, há regra constitucional expressa sobre a matéria de sucessão no caso de dupla vacância, bem como lei que dispõe a respeito dos aspectos procedimentais a serem observados para a realização da eleição indireta. Mesmo se não houvesse a mencionada lei, a doutrina já afirmava a necessidade de aplicação, à espécie, das “regras regimentais (ainda que por analogia), pois o texto constitucional é bastante para a prática do ato” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2005, p. 480). Assim, em suma, cabe aos políticos do Congresso Nacional elegerem o futuro mandatário da República e seu respectivo vice.  

No entanto, em virtude dos recentes escândalos de corrupção envolvendo diversos parlamentares, uma parte da população começou a questionar a legitimidade de tais agentes para conduzirem o processo de escolha do novo chefe do Executivo federal e seu respectivo vice. De acordo com os defensores desta posição, a eleição indireta não seria apta a solucionar a crise política instalada no Brasil, uma vez que os próprios congressistas seriam “ilegítimos” para realizarem tal escolha.

Some-se a isto, o clima atual de total desconfiança da população na política nacional, com os constantes questionamentos a respeito do aparato político brasileiro e do sistema jurídico que o embasou até os dias atuais. Neste âmbito, entraram na pauta do dia as análises dos aspectos republicanos do foro por prerrogativa de função (vulgarmente conhecido como foro especial), do sistema eleitoral e partidário, do financiamento de campanhas eleitorais entre outros temas de relevo para a vida política. Passaram a ser questionadas as bases sobre as quais o sistema político-eleitoral nacional foi fundado, como se fosse possível, e desejável, desconsiderar a grande maioria dessas regras, substituindo-as por novas proposições surgidas no calor do momento atual, sem maiores reflexões a respeito das razões pelas quais as regras hoje vigentes foram estipuladas.

Surge, assim, o movimento que entende necessária a convocação de eleições diretas para a hipótese de dupla vacância na atual situação do Brasil. Rapidamente, foi ressuscitado o grito adormecido desde meados dos nos 1980: “Diretas Já”, ainda que para isto seja necessário alterar a regra constitucional acima mencionada durante o exercício dos mandatos dos eleitos em 2014. Em tal quadro, tramita no Senado Federal a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 67/2016, que possui por finalidade alterar o §1º do artigo 81 da CF para determinar a realização de eleições diretas para presidente e vice-presidente, caso a dupla vacância ocorra nos três primeiros anos do período presidencial. A redação proposta ao mencionado dispositivo é: “Ocorrendo a vacância no último ano do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”.

No entanto, para que se possa estabelecer o mérito ou demérito da regra constitucional em apreço, parece necessário que o debate seja estabelecido com base em algumas premissas que levem em consideração a razoabilidade e a razão de ser de tal regra, com a finalidade de que sejam analisados os motivos que teriam levado o constituinte que elaborou a Carta de 1988 a estabelecer que, em caso de dupla vacância no segundo biênio do mandato presidencial, a eleição seja realizada pelos membros do Congresso Nacional e não diretamente pelo povo. Analisadas estas questões, será possível verificar se a solução do constituinte originário parece melhor ou não para a solução da crise política que aquela proposta pela PEC 67/2016.

A hipótese prevista na regra constitucional em apreço possui aplicação excepcionalíssima, pois trata da dupla vacância presidencial. Tal situação pode acontecer tanto no caso de falecimento do presidente da República e do seu respectivo vice, quanto nas hipóteses de perda do cargo em caráter definitivo, tais como: (i) no julgamento definitivo do impeachment (art. 52, inciso I, c/c art. 85 da CF); (ii) na ausência de tais mandatários do país por mais de quinze dias, sem licença do Congresso Nacional (art. 83 da CF); (iii) no não comparecimento para a posse, em até dez dias do prazo marcado para tal ato, salvo motivo de força maior(art. 78, parágrafo único, da CF); (iv) na renúncia etc.

De qualquer forma, a previsão constitucional se aplica apenas àquelas situações nas quais os diretamente eleitos pela população para os cargos de presidente e vice-presidente estejam impedidos de permanecer, de modo definitivo, à frente do Poder Executivo federal. Em tal situação, os presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federado e do Supremo Tribunal Federal, nesta ordem, serão chamados a ocupar, provisoriamente, a Presidência da República (art. 80 da CF), devendo convocar a eleição, direta ou indireta, a depender do período da dupla vacância, para a sucessão presidencial.

Nota-se, então, ter presumido o constituinte que a situação em apreço seria de crise política e instabilidade institucional, com a necessidade de uma solução que, aplicando as instituições democráticas, permitisse a superação de tal momento complexo e excepcional, com a finalidade de retomar a normalidade institucional no país. Em outros termos, valendo-se de seu papel constitutivo de nova ordem jurídica, com o intuito de constituir “alguma coisa relevante no cerne sistémico de sobreposição do direito e do político” (J.J. Gomes Canotilho. Constituição do Brasil de 1988 – instrumento de proteção das diferenças entre o direito e a política, in Gilmar Ferreira Mendes e Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch (coords). Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988: análise crítica, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 19) o constituinte previu mecanismos para a continuidade política e estabilidade institucional, não para a constituição de uma nova ordem político-institucional como saída para a instabilidade reinante na hipótese em apreço.

Para tanto, estipulou o constituinte a seguinte regra, que também estava presente nas Constituições de 1934 (art. 52, §§3º e 4º) e 1946 (art. 79, §2º): se a dupla vacância ocorrer no primeiro biênio do mandato presidencial, haverá eleições diretas no prazo de 90 (noventa) dias, contados da última vacância. Se a vacância se der no segundo biênio, eleições indiretas no prazo de 30 (trinta) dias, contados a partir da última vacância. Em qualquer dos casos, os novos eleitos exercerão “mandato-tampão”, ou seja, apenas permanecerão nos cargos pelo tempo necessário para o término do período iniciado com seus antecessores, o que ganha sentido com a regra que determina a coincidência dos mandatos federais e estaduais (José Afonso da Silva. Ob. cit., loc. cit.).

O critério utilizado pelo constituinte para a determinação do tipo de sufrágio, portanto, foi o temporal, em relação à última vacância ocorrida, o que parece adequado e legítimo para a situação que pretende solucionar (crise e necessidade de retorno à estabilidade institucional).

Em primeiro lugar, a regra parece adequada, em virtude do próprio aspecto temporal envolvido. Por dizer respeito a eleição para mandato-tampão, a convocação de eleições diretas deve ser ponderada em virtude do tempo restante para o término do período dos antecessores que não continuaram nos respectivos cargos. Assim, no caso de dupla vacância no primeiro biênio parece válida e desejável a mobilização de todo o aparato de eleições diretas, inclusive com a realização de campanhas eleitorais para o pleito a se realizar. Não se pode perder de vista que a realização de eleições diretas gera a necessidade de mobilização do aparato da Justiça Eleitoral por todo o território nacional, com o respectivo custo envolvido na convocação de juízes eleitorais, mesários, presidentes de seções eleitorais, manejo e logística de urnas eletrônicas, apuração dos resultados, fiscalização da regularidade do pleito etc. Enfim, uma série de providência de administração e judicatura das eleições que demandam tempo para o planejamento e sua execução, de modo que o prazo de 90 (noventa) dias para a realização do pleito parece suficiente para atender a tais demandas.

No caso de vacância no segundo biênio, a situação se altera, uma vez que, caso fosse prevista a realização de eleições diretas, o tempo e a mobilização necessários para a realização do pleito parecem incompatíveis com o curto mandato a ser exercido pelo futuro presidente e seu respectivo vice. Assim, “a contração do prazo para trinta dias demonstra que a intenção é apenas permitir que o mandato se cumpra sem campanhas eleitorais prolongadas, visto que objetiva completar um curto mandato” (Ives Gandra Martins, in _________. e Celso Ribeiro Bastos. Comentários à Constituição do Brasil, 4º vol., tomo II, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 244). Logo, parece haver harmonização entre a regra do mandato-tampão e a ponderação realizada pelo constituinte originário, no que tange às vantagens e desvantagens da realização de eleições diretas no segundo biênio, optando, de forma legítima, pela eleição indireta.

Em segundo plano, parece também haver um argumento de ordem finalística, ligado à necessidade de estabilização política para a superação da crise da dupla vacância. Independentemente da hipótese excepcional de dupla vacância se aplicar no primeiro ou no segundo biênio do mandato presidencial, o fato é que o artigo 81 da CF possui uma aplicação pontual e específica: vigorará com a finalidade de permitir que, após a eleição do novo mandatário e seu respectivo vice, haja condições políticas para que a crise se transforme em estabilidade institucional.

Aqui, parece que também andou bem o constituinte ao estabelecer o corte entre o primeiro e o segundo biênio, uma vez que preserva a democracia de passar por duas disputas presidenciais em um curto período. Com efeito, as eleições para a Presidência da República costumam levar a cisões políticas, que se refletem na população e nos debates realizados pelos eleitores, uma vez que o que está em jogo é o futuro político e econômico do país inteiro. Assim, polarizações políticas são comuns, devendo os políticos e a população buscarem um equilíbrio e um rearranjo de forças ao longo dos anos vindouros, até que haja nova eleição presidencial. Diante de tal clima de tensão latente, parece que o constituinte entendeu por bem preservar a população e as instituições democráticas de se verem, em um curto espaço de tempo, submetidas a duas eleições presidenciais diretas, o que ocorreria caso à dupla vacância no segundo biênio ocorressem eleições diretas. Parece, portanto, que a finalidade do constituinte, aqui, foi a de estipular um mecanismo que leve à estabilização e à pacificação política do país, competindo aos parlamentares eleitos em eleições diretas a tarefa de escolher os novos presidente e vice-presidente da República.

A tendência, então, é a escolha de cidadãos-candidatos que possuam diálogo com os membros do Parlamento, com a finalidade de realizar as reformas, composições e ajustes políticos necessários para a superação da crise e estabilização institucional do país. Afinal, a solução constitucional para a dupla vacância no segundo biênio parece ser a de estabilização política e pavimentação do caminho para as eleições diretas que se seguirão no prazo constitucionalmente previsto (outubro do ano de término do “mandato-tampão”).  

Cabe, aqui, um esclarecimento a respeito das composições e dos ajustes acima mencionados. Para o bom andamento do político-institucional de uma democracia é necessário que haja consenso entre os poderes para a condução dos assuntos de interesse coletivo. No caso dos Poderes Executivo e Legislativo, cujos ápices são compostos por membros eleitos – o que lhes confere um grau de ação política muito superior ao do Poder Judiciário –, é necessário que haja constantes diálogos e negociações entre os seus membros, com a finalidade de que as matérias de interesse político sejam conduzidas da forma mais conveniente possível para a coletividade, sob pena de o dissenso levar á paralisia institucional. Assim, afora os casos de corrupção e de distribuição de benesses indevidas a parlamentares (como se viu no caso da Ação Penal n. 470, do STF – caso do Mensalão), as negociações e os ajustes entre o chefe do Executivo e os membros do Legislativo são normais e funcionam como mecanismos para fazer a engrenagem político-institucional funcionar normalmente. Exemplo de regra constitucional que trata desta realidade podem ser verificadas na possibilidade de haver veto presidencial por razão de interesse público (art. 66, §1º, CF), que confere ao Presidente o exercício de conveniência política da elaboração legislativa.

Vale notar que a regra de eleição indireta no caso de vacância no segundo biênio do mandato presidencial encaixa-se com o regime democrático acolhido pela Constituição Federal (artigo 1º, caput). Com efeito, ao lado da regra geral de que a “soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto” (art. 14, caput, CF), é possível o estabelecimento de eleições indiretas, por meio de representantes eleitos pelo povo, com respeito ao comando constitucional de que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (art. 1º, parágrafo único).

Assim, a democracia representativa é também um mecanismo de participação popular nos rumos da política, como já teve a oportunidade de analisar o Supremo Tribunal Federal, em julgamento no qual tratou da eleição indireta para vice-governador do Estado da Guanabara (atual Estado do Rio de Janeiro), quando vigente a Constituição de 1946, cuja regra, como visto acima, é idêntica à prevista na atual Carta de 1988 (Representação n. 600, Rel. Min. Luís Galotti, julgado em 19.04.1965, Revista de Direito Administrativo – RDA, v. 83, jan. 1966, p. 141-158). Na ementa de tal aresto consta que “O sufrágio universal não é princípio absoluto no direito constitucional positivo”, colhendo-se do corpo do Acórdão ser válida e democrática a escolha do governante por eleição indireta, desde que observado o princípio da representação.

Logo, a regra exprime uma solução que se mostra razoável para o caso: opera-se uma saída democrática e institucional para a crise instalada, por meio de um mecanismo que leve em consideração a representatividade popular, ao mesmo tempo que permite que a escolha dos novos presidente e vice conduza à normalidade institucional para a realização de eleições diretas para o próximo período presidencial que se avizinha. Assim, não apenas a regra constitucional possui sua validade do ponto de vista formal – como obra do constituinte originário, como parece fornecer uma solução adequada à excepcional hipótese de dupla vacância, com as consequências de tal situação para as instituições democráticas.

Vistas as considerações acima a respeito do §1º do art. 81 da Constituição, cabe a análise da reforma que se pretende implementar pela PEC n. 67/2016. A ideia adota a lógica do constituinte originário, diferindo apenas na questão do corte temporal para a realização de eleições diretas: ao invés de eleições diretas no primeiro biênio e indiretas no segundo, ter-se-ia eleições diretas no caso de dupla vacância definitiva até o final do terceiro ano do mandato.

A nosso ver, a proposta de alteração possui dois inconvenientes. Em primeiro lugar, permite a realização de eleições diretas para que os eleitos supram a dupla vacância por um curto período, tendo em vista que tal pleito deve ser realizado no prazo de 90 (noventa) dias, a contar da última vacância, com base na redação do caput do artigo 81, cuja redação não é alterada pela PEC em comento. Assim, tem-se o inconveniente prático acima mencionado, de haver a mobilização da Justiça Eleitoral e de seu aparato necessário para eleições diretas, com a finalidade de eleger detentores de mandatos-tampão que serão exercidos por pouco mais de um ano.

Em segundo lugar, a eventual aprovação da PEC para vigência imediata, ou seja, no curso do período do mandato iniciado em 2015, pode, ao invés de levar à estabilização política e institucional (objetivo buscado pelo constituinte originário), conduzir ao acirramento da crise político-institucional. Com efeito, o clima de instabilidade institucional derivado de uma mudança de regra constitucional desta envergadura (para a qual exige-se quórum específico de 3/5 dos membros de cada Casa do Congresso, com dois turnos de votação em cada uma delas – art. 60, §2º, CF) no curso do período do exercício do mandato pode, ao invés de estabilizar o país, acirrar os ânimos e demonstrar, tanto aos cidadãos nacionais, quantos aos estrangeiros, grande fragilidade das instituições estatais na observância das regras existentes e uma tendência à sua alteração ao sabor das situações e emoções.

Assim, parece não haver espaço para a reforma proposta pela PEC n. 67/2016, tendo em vista que a regra estipulada pelo constituinte originário parece, ao menos em tese, apta a apontar para uma solução para o cenário de crise política, em eventual dupla vacância do cargo presidencial. É certo que a ausência de aplicação prática de tal regra impede uma análise mais aprofundada de seus efeitos práticos. No entanto, a alteração de tal dispositivo, motivado apenas pelo calor da emoção e com a justificativa de “valorizar a vontade popular” pode se mostrar, na realidade, mecanismo que acirre ainda mais uma crise política cujo desiderato do constituinte originário foi a de apaziguar.  

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PS: Agradeço ao colega e professor André Rosilho pelas conversas a respeito das ideias veiculadas neste texto. Assumo, no entanto, a responsabilidade por todas as opiniões aqui exprimidas.

 



Por Rafael Hamze Issa (SP)

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