Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)
A discussão tradicional quanto à regulação estatal encontrava-se centrada em ideologias opostas a respeito da intensidade dessa intervenção na ordem econômica.
De um lado, os defensores do liberalismo econômico, especialmente os adeptos da Escola de Chicago, propugnam pela ausência ou diminuição de intervenção do Estado na economia, uma vez que a eficiência econômica seria alcançada pelo próprio mercado (“mão invisível do mercado”). Argumenta-se, por exemplo, que o dirigismo estatal acarretaria ineficiências, em virtude da assimetria de informações entre Estado e mercado, bem como pela possibilidade de captura da regulação pelos regulados (“teoria da captura”).
Ademais, de acordo com os adeptos de uma visão crítica da Teoria da Escola da Escolha Pública (Public Choice), a presença do Estado na economia e na vida dos cidadãos amplia as desigualdades ao invés de reduzi-las, em razão das denominadas “falhas de governo” (government failures).
De outro lado, a tese que propugna pela intervenção do Estado na regulação da economia e da sociedade parte do pressuposto que a abstenção acarreta desigualdades materiais, ao não levar em consideração a distribuição da riqueza, inviabilizando o desenvolvimento sustentável e igualitário. Com o fim do abstencionismo estatal, após a Primeira Guerra Mundial, como destacado por J. M. Keynes (KEYNES, John M. The End of Laissez-Faire. Londres: Hogarth, 1926), o Estado passou a intervir na economia para garantir o seu funcionamento adequado, suprindo as falhas do mercado (market failures), bem como para satisfazer objetivos sociais. O discurso em prol do maior intervencionismo ganha força a partir da crise econômica americana de 1929, que evidenciou a insuficiência da autorregulação do mercado.
Em razão das imperfeições do mercado, afirma-se que é dever do Estado corrigir as falhas de mercado, tais como: o monopólio e poder de mercado; as externalidades negativas para as pessoas não envolvidas em determinadas relações jurídicas; os “bens coletivos”, ou seja, bens consumidos por pessoas que não pagaram por eles (free riders ou caroneiros); e as assimetrias de informações (desequilíbrio de informações entre as partes em determinada transação).
Ocorre que o excesso de intervenção estatal na economia acarretou a ineficiência das atividades administrativas e a infantilização da sociedade, tendo em vista o “paternalismo estatal”, típico do Nanny State ou “Estado Babá” (HARSANYI, David. O Estado babá. Rio de Janeiro: Litteris, 2011), por meio de uma redução significativa da autonomia dos indivíduos. O diagnóstico abriu caminho para a desregulação da economia.
O movimento de ajuste fiscal e de privatizações, iniciado a partir da década de 1980 na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Nova Zelândia, e, no Brasil, na década de 1990, acarretou a reformulação do papel do Estado, com a diminuição da sua intervenção direta nas relações econômicas e na prestação de serviços públicos (Estado prestador), e incremento das modalidades de intervenção indireta, por meio da regulação (Estado regulador).
O aparelho estatal foi reduzido e a “Administração Pública burocrática” foi substituída pela “Administração Pública gerencial” a partir da Reforma Administrativa instituída pela EC n. 19/1998. Enquanto a Administração Pública burocrática se preocupa com os processos, a Administração Pública gerencial é orientada para a obtenção de resultados (eficiência), sendo marcada pela descentralização de atividades e pela avaliação de desempenho a partir de indicadores definidos em contratos (contrato de gestão).
É possível perceber que o debate tradicional focava a intensidade, maior ou menor, da regulação estatal a partir de ideologias opostas que confrontavam a regulação e a abstenção, como o Bem e o Mal.
Constata-se, no entanto, uma virada importante nesse debate, com a substituição da intensidade pela qualidade da regulação (better regulation). Em vez de menos regulação, o ponto central da discussão atual é a efetivação da melhor regulação. Nesse sentido, Susan Rose-Ackerman propõe uma nova agenda pública para reformar e não para desmantelar o Estado regulador, buscando melhorar a responsabilidade dos agentes políticos e os desenhos dos programas públicos (ROSE-ACKERMAN, Susan. Rethinking The Progressive Agenda: the Reform of Regulatory State. Nova York: The Free Press, 1992, p. 187).
Por isso, a partir da década de 1980, em razão da crise fiscal e da busca por novas formas eficientes de gestão pública, ganhou força a utilização do termo “governança” para se referir ao novo perfil da Administração Pública, preocupada com a eficiência, participação, transparência, consenso e controle. Registre-se, contudo, a ausência de uniformidade na conceituação e na utilização da referida expressão.
De acordo com André-Jean Arnaud, governança possui, em síntese, dois sentidos básicos: a) sentido amplo: significa o modo de gestão (privada, administrativa e política) eficaz; e b) sentido restrito: refere-se ao modo de participação da sociedade civil na produção de políticas públicas nos níveis local, regional ou global (ARNAUD, André-Jean. Governança. In: ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Dicionário da globalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 233).
A governança pode ser compreendida como o conjunto de mecanismos e de procedimentos que garantem maior participação da sociedade civil na formulação das decisões estatais, que devem ser pautadas pela eficiência e submetidas ao controle institucional e social.
A concepção de “boa governança”, influenciada pelo movimento do New Public Management, engloba os ideais de especialização, despolitização, eficiência, legitimidade, transparência e accountability da ação estatal.
No âmbito da regulação, é possível afirmar que a “governança regulatória” significa a busca por instrumentos de maior legitimidade (ex.: participação na formulação da decisão administrativa), eficiência (ex.: planejamento e controle de resultados) e accountability (ex.: controle social e institucional) por parte dos reguladores.
De fato, as visões extremadas revelaram-se insuficientes na tarefa de garantia e proteção dos direitos fundamentais. A regulação não pode ser considerada, a priori, boa ou má. É preciso verificar concretamente cada forma de regulação e avaliar os resultados obtidos. Trata-se, em suma, de uma visão despida de preconceitos metafísicos, em que a qualidade se sobrepõe à quantidade de regulação.
Nesse cenário, conforme destacamos em obra sobre o tema, diversos mecanismos podem ser utilizados para efetivação da governança regulatória, tais como: incremento da avaliação por índices de qualidade regulatória; regulação por incentivos ou por “empurrões” (nudge); juridicidade dos acordos decisórios ou substitutivos na regulação; reforço da participação e do planejamento, conferindo maior legitimidade à decisão regulatória; institucionalização e ampliação da Análise de Impacto Regulatório (AIR), dentre outros (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Novo perfil da regulação estatal: Administração Pública de resultados e análise de impacto regulatório, Rio de Janeiro: Forense, 2015).
Todavia, para os fins do presente ensaio, pretende-se demonstrar a importância da análise do perfil institucional das agências reguladoras brasileiras para o diagnóstico da qualidade e apresentação das propostas de melhoria da regulação, evitando que a atuação estatal seja capturada pelos grupos econômicas regulados em detrimento dos interesses dos cidadãos.
O modelo regulatório brasileiro, especialmente a partir da década de 1990, tem como protagonistas as agências reguladoras, instituídas com a roupagem jurídica de autarquias, com regime especial, dotadas de forte independência administrativa e financeira. A partir de reformas constitucionais liberalizantes da economia e da instituição do Programa Nacional de Desestatização (PND), o legislador infraconstitucional optou pelo modelo de agências reguladoras para implementação da regulação das atividades econômicas e dos serviços públicos que seriam prestados pela iniciativa privada.
As agências reguladoras brasileiras, por opção do legislador infraconstitucional, possuem natureza jurídica de autarquias, com poderes para edição de normas nos setores regulados, o exercício de atividades administrativas clássicas, inclusive poder de polícia, a resolução de conflitos regulatórios e os poderes sancionatórios. A autonomia reforçada das agências reguladoras brasileiras, que pode variar de intensidade de acordo com o perfil institucional desenhado por leis instituidoras, é justificada pela despolitização (ou “desgovernamentalização”), compreendida como a diminuição de influências político-partidárias, conferindo tratamento técnico e maior segurança jurídica ao setor regulado, bem como pela necessidade de celeridade na regulação de determinadas atividades técnicas.
Evidentemente, a natureza autárquica, por si só, confere certa autonomia administrativa para as agências reguladoras, uma vez que elas seriam instituídas por lei como pessoas jurídicas de Direito público, com personalidade jurídica própria, atributo inexistente nos ministérios, secretarias e demais órgãos estatais.
A natureza autárquica, todavia, não é suficiente para garantir autonomia administrativa real, especialmente nas hipóteses em que os dirigentes das referidas entidades são nomeados e exonerados livremente pelo Chefe do Executivo, o que acarretaria a politização dessas pessoas jurídicas.
Por essa razão, o legislador estipulou critérios diferenciados de nomeação e exoneração dos dirigentes das agências reguladoras, conferindo maior estabilidade e independência perante o Chefe do Executivo.
Registre-se, contudo, que a estabilidade dos dirigentes não garante, por si só, a independência das agências, revelando-se necessária a análise de outros fatores institucionais, tais como a forma de nomeação dos dirigentes, o prazo de exercício da função, a não coincidência dos mandatos com o mandado do Chefe do Executivo e a quarentena dos ex-dirigentes. A nomeação dos dirigentes (presidente, diretor-geral, diretor-presidente ou conselheiros) das agências reguladoras deve observar os requisitos previstos no art. 5º da Lei n. 9.986/2000. Os indicados devem ser brasileiros, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados.
A nomeação, na hipótese, é ato complexo, pois depende da escolha do nome pelo Presidente da República e aprovação pelo Senado Federal, na forma permitida pelo art. 52, III, f, da CRFB.
Os dirigentes exercem suas funções durante determinado mandato, cujo prazo será definido na lei de cada agência reguladora. Na Aneel, por exemplo, os diretores possuem mandatos de quatro anos (art. 5º da Lei n. 9.427/1996); na Anatel, os membros do Conselho Diretor têm mandatos de cinco anos (art. 24 da Lei n. 9.472/1997); na ANP, os mandatos dos membros da Diretoria são de três anos (art. 11, § 3º, da Lei n. 9.478/1997).
Durante os mandatos, os dirigentes, na forma da legislação em vigor, só perdem os seus cargos por meio de renúncia, sentença transitada em julgado ou por meio de processo administrativo, sempre com observância da ampla defesa e do contraditório, admitindo-se que a legislação especial estabeleça outras formas de perda do cargo, na forma do art. 9º, caput e parágrafo único, da Lei n. 9.986/2000.
A impossibilidade de exoneração ad nutum dos dirigentes garante maior estabilidade à frente da agência reguladora, diminuindo as interferências político-partidárias, comuns em outras entidades administrativas.
Além da estabilidade, os mandatos dos dirigentes das agências não são coincidentes com o mandato do Chefe do Executivo responsável pela nomeação, conforme previsão contida no art. 7º da Lei n. 9.986/2000, o que reforça a independência administrativa diante dos atores políticos.
Com o objetivo de evitar confusão entre os interesses públicos e os interesses dos mercados regulados, o ex-dirigente da agência reguladora deve cumprir o período de quarentena, sendo impedido de prestar atividades no setor regulado pela respectiva agência pelo período de seis meses, na forma do art. 6º, II, da Lei n. 12.813/2013. Registre-se que, anteriormente, o art. 8º da Lei n. 9.986/2000 estabelecia o prazo de quatro meses para a quarentena. Em nossa opinião, deve prevalecer o prazo maior, que efetiva, com mais intensidade, a moralidade administrativa.
Ao lado da estabilidade e das demais peculiaridades relacionadas aos dirigentes, as decisões das agências reguladoras brasileiras seriam definitivas na esfera administrativa, sendo inadmissível, em princípio, o recurso hierárquico impróprio, conforme será destacado adiante.
A autonomia financeira, por sua vez, seria garantida pela previsão de “taxas regulatórias” que seriam cobradas pelas agências dos atores regulados e que serviriam para custeio de suas atividades regulatórias.
É oportuno esclarecer, contudo, que a autonomia das agências reguladoras não significa independência absoluta em relação aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo possível o diálogo institucional e a interferência recíproca, o que funciona, até mesmo, como instrumento de contenção do arbítrio (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Novo perfil da regulação estatal: Administração Pública de resultados e análise de impacto regulatório, Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 209/256.).
Evidentemente, o diálogo entre as agências reguladoras e os Poderes republicanos não significa a substituição das decisões técnicas dessas entidades pela decisão política, mas seria juridicamente impossível imaginar uma entidade administrativa insulada e completamente descolada dos Poderes políticos.
No tocante às atividades conferidas às agências reguladoras, é possível destacar, por exemplo, o poder para editar normas, resolver conflitos regulatórios e fiscalizar e sancionar os atores regulados.
As agências reguladoras possuem a prerrogativa para edição de normas técnicas nos setores regulados. A legislação confere autonomia às agências reguladora para editar atos administrativos normativos, dotados de conteúdo técnico e respeitados os parâmetros (standards) legais, no âmbito de setor regulado. A intenção é despolitizar, em alguma medida, o respectivo setor, retirando do âmbito político-partidário e transferindo ao corpo técnico da agência a atribuição para normatizar a atividade regulada.
Não obstante o intenso debate doutrinário sobre a constitucionalidade dos poderes normativos das agências, é possível afirmar que o fundamento dessas prerrogativas seria a técnica da deslegalização (ou delegificação), que significa a retirada, por decisão do próprio legislador, de determinadas matérias do domínio da lei (domaine de la loi), transferindo-as ao campo do regulamento (domaine de l’ordonnance).
A agência reguladora tem, ainda, como importante missão resolver conflitos regulatórios entre empresas, concessionárias, consumidores e usuários de serviços públicos. A prerrogativa julgadora das agências reguladoras encontra previsão na legislação setorial (exs.: art. 21, § 2º, da Lei n. 9.472/1997; art. 18 da Lei n. 9.478/1997).
Existem, sinteticamente, três instrumentos de solução dos conflitos regulatórios na via administrativa (mediação, conciliação e arbitragem).
Por derradeiro, as agências devem fiscalizar os setores regulados e, em caso de verificação de infração à ordem jurídica, aos atos das próprias agências ou aos contratos de concessão, aplicar as sanções aos infratores (exs.: arts. 3º, IV, X, XVII, XIX, e 21 da Lei n. 9.427/1996; arts. 1º, parágrafo único, 19, VI, IX, XI, 22, parágrafo único, 55, II, 82, 93, X, XIV, 96, V, 104, § 2º, 120, VI, VIII, 127, X, 137, 162 e 211, parágrafo único, da Lei n. 9.472/1997).
Atualmente, o poder sancionatório das agências reguladoras tem sido objeto de consensualização, especialmente por meio da celebração dos acordos decisórios ou substitutivos, com o objetivo de garantir maior eficiência aos comandos das agências e à própria satisfação do interesse público.
O insulamento técnico das agências reguladoras, contudo, não afasta o risco de que os assuntos regulados sejam apropriados (capturados) indevidamente pelos grupos economicamente mais fortes e politicamente mais influentes.
De acordo com a “teoria da captura”, com o passar do tempo, até mesmo em razão da ausência de interesse dos cidadãos ou pela impossibilidade de uma participação popular efetiva em todas as decisões das agências, as empresas reguladas influenciariam, de forma preponderante, a tomada da decisão regulatória.
Diversos fatores podem contribuir para o agravamento do risco de captura do setor regulado, tais como a intensa influência política; a assimetria de informações entre a agência reguladora e as empresas reguladas; a possibilidade de ex-dirigentes de agências reguladoras assumirem, em curto espaço de tempo, posições estratégicas no setor regulado; o excesso de cargos comissionados nas agências reguladoras etc.
Em relação ao último fator de risco, estudo elaborado pelo PRO-REG demonstrou o elevado número de cargos comissionados nas agências reguladoras federais, ocupados por pessoas sem vínculo prévio com a União. Ao analisar as dez agências reguladoras federais (Aneel, Anatel, ANP, Anvisa, ANS, ANA, ANTT, ANTAQ, ANCINE e ANAC), o estudo apontou a existência de 588 servidores comissionados, sem vínculo anterior com a União, do total de 1.351 cargos não efetivos (Fonte: Presidência da República, Casa Civil. Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais. Comitê Gestor do Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para a Gestão em Regulação – PRO-REG. Recursos humanos das agências reguladoras: situação atual, diagnóstico e recomendações. Relatório. Consultor James Giacomoni, Brasília, mar. 2013, p. 200-201).
Por essa razão, medida salutar para garantir a blindagem institucional das agências e diluir o risco da captura seria a nomeação, preferencial, de servidores de carreira das próprias agências para os cargos comissionados estratégicos, especialmente aqueles com poder decisório.
Da mesma forma, o risco da captura pode ser diluído pela qualificação dos dirigentes das agências e mediante a utilização dos mecanismos de controle à disposição do Executivo.
Outro instrumento inibidor da captura é a participação popular na tomada de decisões e no controle dos atos das agências. Para que isso ocorra faz-se necessário impor transparência ao processo regulatório, com a divulgação das informações necessárias à participação popular efetiva, bem como fomentar a mobilização social.
Nesse contexto, o grande desafio enfrentado pelas agências reguladoras está na superação do seu aparente déficit democrático. A possibilidade de que agentes públicos tecnocratas e sem responsabilidade política possam, de forma autônoma em relação aos representantes do povo, decidir questões de enorme relevância social, coloca no centro da discussão a legitimidade desse modelo institucional.
O debate sobre a eficiência e a legitimidade das agências reguladoras brasileiras justifica a institucionalização de mecanismos capazes de garantir a efetivação e o monitoramento dos atos regulatórios; novas formas de implementação da regulação; maior participação social na formulação e no controle de políticas regulatórias; diálogos institucionais entre as agências reguladoras e os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além da sociedade civil; e, por fim, a utilização da Análise de Impacto Regulatório (AIR) como forma de garantir maior qualidade à regulação.
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