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Concorrência, tomada de preços e convite: os novos valores do Decreto 9.412/2018 e seus reflexos sistêmicos

ANO 2018 NUM 407
Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)
Pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York). Doutor em Direito pela UVA/RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (IDAERJ). Professor Adjunto de Direito Administrativo do IBMEC. Professor de Direito Administrativo da EMERJ e do CURSO FORUM. Professor dos cursos de Pós-Graduação da FGV e Cândido Mendes. Advogado, árbitro e consultor jurídico. Sócio fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. www.professorrafaeloliveira.com.br


08/08/2018 | 7879 pessoas já leram esta coluna. | 5 usuário(s) ON-line nesta página

1. Introdução

Atualmente, as modalidades de licitação são: a) concorrência, b) tomada de preços, c) convite, d) concurso, e) leilão, f) pregão e g) consulta. Enquanto as cinco primeiras modalidades encontram-se previstas na Lei 8.666/1993, o pregão é tratado na Lei 10.520/2002 e a consulta na legislação das agências reguladoras.

No presente estudo, o foco será a análise da concorrência, da tomada de preços e do convite, cuja escolha pela Administração Pública depende, normalmente, do valor estimado da contratação, com a ressalva de que a concorrência, em determinadas hipóteses, será a modalidade indicada pela legislação em razão dos respectivos objetos a serem contratados, independentemente dos valores (ex: art. 23, §3º, da Lei 8.666/1993).

A regra de ouro é a utilização da concorrência para contratos com valores elevados; a tomada de preços para contratos com valores médios; e o convite para contratos com valores reduzidos. A definição exata dos valores encontrava-se prevista no art. 23, I e II da Lei 8.666/1993, com a redação dada pela Lei 9.648/1998, a saber:

1) Obras e serviços de engenharia:

1.1) convite: até R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais);

1.2) tomada de preços: até R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais); e

1.3) concorrência: acima de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais).

2) Compras e demais serviços:

2.1) convite: até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);

2.2) tomada de preços: até R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais); e

2.3) concorrência: acima de R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais).

Após, aproximadamente, 20 anos de espera, os valores indicados na legislação para a concorrência, tomada de preços e convite foram, finalmente, atualizados.

Com a edição do Decreto 9.412, de 18 de junho de 2018, os valores foram atualizados nos seguintes termos:

1) Obras e serviços de engenharia:

1.1) convite: até R$ 330.000,00 (trezentos e trinta mil reais);

1.2) tomada de preços: até R$ 3.300.000,00 (três milhões e trezentos mil reais); e

1.3) concorrência: acima de R$ 3.300.000,00 (três milhões e trezentos mil reais).

2) Compras e demais serviços:

2.1) convite: até R$ 176.000,00 (cento e setenta e seis mil reais);

2.2) tomada de preços: até R$ 1.430.000,00 (um milhão, quatrocentos e trinta mil reais); e

2.3) concorrência: acima de R$ 1.430.000,00 (um milhão, quatrocentos e trinta mil reais).

Como será demonstrado ao longo do presente ensaio, a sobredita alteração dos patamares de valores para escolha entre as modalidades de licitação acarreta reflexos importantes em outros dispositivos da própria Lei de Licitações.

2. Deslegalização da atualização dos valores e a juridicidade do Decreto 9.412/2018

O primeiro ponto que merece ser destacado refere-se à juridicidade da utilização da via regulamentar para atualização dos valores indicados no art. 23, I e II, da Lei 8.666/1993.

Evidentemente, o decreto, considerado ato administrativo privativo do Chefe do Executivo, não pode exorbitar do texto legal, tendo em vista o princípio da legalidade na Administração Pública (arts. 37, 49, V, e 84, IV da CRFB).

Contudo, o próprio art. 120 da Lei 8.666/1993, com a redação conferida pela Lei 9.648/1998, deslegalizou a tarefa de atualização dos valores previstos no seu texto, com a possibilidade de revisão anual dos valores pelo Poder Executivo Federal.

Outra questão que pode gerar controvérsias refere-se à aplicação dos valores indicados no Decreto 9.412/2018 aos Estados, DF e Municípios.

3. Aplicação dos valores aos Estados, DF e Municípios

O ponto central do debate reside na qualificação dos incisos I e II do art. 23 da Lei de Licitações como normas gerais (ou nacionais), aplicáveis a todos os entes da Federação, ou normas específicas (federais), cujo âmbito de incidência restringe-se à esfera federal.

De um lado, seria possível sustentar que os valores indicados para as modalidades concorrência, tomada de preços e convite poderiam ser definidos por cada ente federado, com o objetivo de garantir a autonomia federativa e a adequação dos patamares à realidade socioeconômica regional e local dos Estados e dos Municípios, respectivamente.

A consequência na caracterização do art. 23, I e II, da Lei de Licitações como norma específica seria a inaplicabilidade do Decreto 9.412/2018 aos Estados, DF e Municípios, que poderiam estabelecer valores distintos para concorrência, tomada de preços e convite.

Todavia, tem prevalecido o entendimento de que o art. 23, I e II da Lei de Licitações configura norma geral que deve ser observada pelos demais entes da Federação (PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública, 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 275).

Conforme dispõe o art. 22, XXVII, da CRFB, compete à União dispor sobre normas gerais de licitações “em todas as modalidades”, o que não autorizaria a modificação dos valores da concorrência, da tomada de preços e do convite por normas estaduais, distritais e municipais.

Outro argumento favorável à caracterização do art. 23, I e II da Lei 8.666/1993 como norma geral refere-se à previsão literal do art. 120 da referida Lei, que remeteu ao Executivo federal a tarefa de atualizar os valores previstos na Lei de Licitações.

Em consequência, a configuração do caráter geral da norma acarreta a aplicação obrigatória dos valores fixados no art. 23, I e II, da Lei de Licitações, agora atualizados pelo Decreto 9.412/2018, aos demais entes federados.

Nesse sentido, Marçal Justen Filho sustenta que os valores fixados na Lei 8.666/1993, inclusive o Decreto 9.412/2018, devem ser obrigatoriamente observados por todas as esferas federativas, inexistindo competência legislativa para o ente federativo ampliar o valor limite para dispensa ou para as modalidades licitatórias, mas apenas para reduzir os referidos valores (Fonte: ˂ https://www.sollicita.com.br/Noticia/?p_idNoticia=13691&n=mar%C3%A7al-justen-filho-fala-sobre-o-decreto-9.412 ˃. Acesso em: 23/06/2018).

De forma semelhante, sustentamos que as modalidades de licitação devem ser consideradas normas gerais que devem ser observadas por todos os Entes da Federação, o que não impede, contudo, a fixação de valores inferiores que levem em consideração as peculiaridades socioeconômicas regionais, distritais e locais dos Estados, DF e dos Municípios, respectivamente.

Trata-se de debate semelhante àquele travado na configuração de norma geral ou específica do art. 2º, §4º, I, da Lei 11.079/2004, alterada pela Lei 13.529/2017, que dispõe sobre o valor mínimo (atualmente, R$ 10.000.000,00) dos contratos de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Apesar do enquadramento do dispositivo legal no rol de normas gerais, sustentamos o seu caráter específico, com a permissão de fixação de valores distintos e razoáveis pelos Estados, DF e Municípios (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 7. ed., São Paulo: Método, 2018, p. 340-341).

Mencione-se, ainda, a preservação da autonomia federativa na tarefa de definir as obrigações de pequeno valor que não se submetem ao precatório, mas à Requisição de Pequeno Valor (RPV), na forma do art. 100, § 3º, da CRFB. De acordo com o art. 87 do ADCT, incluído pela EC 37/2002, os entes da Federação possuem autonomia para fixarem, por meio das respectivas leis, as obrigações de pequeno valor e, enquanto não houver a definição por lei específica, os valores serão de até quarenta salários-mínimos para os Estados e DF e trinta salários-mínimos para os Municípios. Sobre o tema, o STF consolidou o entendimento de que os entes federados poderiam estabelecer valores inferiores aos patamares provisoriamente fixados no art. 87 do ADCT (STF, ADI 2.868/PI, Rel. p/ Acórdão Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJ 12.11.2004, p. 5).

Ainda que as modalidades de licitação sejam consideradas normas gerais, a definição dos valores e do procedimento poderiam ser adaptadas por cada Ente federado, em razão de suas respectivas peculiaridades, sem que sejam instituídas novas modalidades de licitação por norma estadual, distrital ou municipal. É preciso, portanto, levar a autonomia federativa a sério na interpretação das normas gerais em matéria de licitações e contratos.

Partindo da premissa de que os valores das modalidades de licitação, atualizados pelo Decreto 9.412/2018, devem ser observados pelos demais Entes, caso não prefiram definir valores inferires em suas respectivas normas, é preciso analisar os impactos que esses novos valores acarretam em diversos dispositivos da própria Lei 8.666/1993.

4. Dispensa de licitação em razão do valor estimado do contrato

No campo da dispensa de licitação, a atualização do valor do convite também gera impactos significativos.

Em primeiro lugar, os incisos I e II do art. 24 da Lei 8.666/1993 autorizam a dispensa de licitação para os contratos que tenham como valor estimado de até 10% do valor indicado para modalidade convite. Com a atualização dos valores, considera-se, atualmente, dispensável a licitação: a) para obras e serviços de engenharia: até R$ 33.000,00 (trinta e três mil reais); e b) compras e demais serviços: até R$ 17.600,00 (dezessete mil e seiscentos reais).

Em segundo lugar, o art. 24, § 1º, da Lei de Licitações dispõe que nas contratações realizadas por consórcios públicos, sociedade de economia mista, empresa pública e autarquia ou fundação qualificadas como agências executivas, com valores de até 20% do patamar indicado para o convite, a licitação poderá ser dispensada. Nesse caso, algumas considerações devem ser apresentadas.

Conforme destacamos em outra oportunidade (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 7. ed., São Paulo: Método, 2018, p. 68-69, nota 93), em relação às empresas públicas e sociedades de economia mista, o art. 24, § 1º, da Lei de Licitações deve ser considerado derrogado, uma vez que o art. 29, I e II, da Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais), considerada norma especial em relação à Lei 8.666/1993, estabeleceu valores específicos para dispensa de licitação nas contratações realizadas pelas empresas estatais, a saber: a) obras e serviços de engenharia: até R$ 100.000,00 (cem mil reais); e b) compras e demais serviços: até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

Quanto às autarquias ou fundações, qualificadas como agências executivas, a licitação é dispensável para os contratos com valores estimados de até 20% dos valores indicados para o convite. Em consequência, admite-se a dispensa de licitação nos contratos celebrados por agências executivas com valor de até R$ 66.000,00 (sessenta e seis mil reais) para obras e serviços de engenharia e de até R$ 35.200,00 (trinta e cinco mil e duzentos reais) para compras e demais serviços.

No tocante às contratações realizadas por consórcios públicos, a compreensão adequada do art. 24, § 1º, da Lei de Licitações depende da interpretação sistemática do referido dispositivo legal com o art. 23, I, a, II, a, e § 8º, da mesma Lei, com as atualizações do Decreto 9.412/2018.

 

Consórcios

Modalidades

Dispensa de licitação para obras e serviços de engenharia

Dispensa de licitação para compras e demais serviços

Até 3 entes (valores dobrados)

até R$ 132.000,00

 

até R$ 70.400,00

Mais de 3 entes (valores triplicados)

até R$ 198.000,00

até R$ 105.600,00

 

Em terceiro lugar, a atualização promovida pelo Decreto 9.412/2018 reflete na dispensa de licitação prevista no art. 24, XVIII, da Lei de Licitações. É dispensável a licitação nas compras ou contratações de serviços no montante de até R$ 176.000,00 (valor do convite) para o abastecimento de navios, embarcações, unidades aéreas ou tropas e seus meios de deslocamento quando em estada eventual de curta duração em portos, aeroportos ou localidades diferentes de suas sedes, por motivo de movimentação operacional ou de adestramento, quando a exiguidade dos prazos legais puder comprometer a normalidade e os propósitos das operações.

Por fim, os novos valores previstos no Decreto 9.412/2018 impactam no art. 24, XXI, da Lei de Licitações. Admite-se a dispensa de licitação para aquisição ou contratação de produto para pesquisa e desenvolvimento, limitada, no caso de obras e serviços de engenharia, a R$ 660.000,00, ou seja, 20% (vinte por cento) do valor previsto para tomada de preços (art. 23, I, b, da Lei, atualizado pelo Decreto 9.412/2018).

5. Outros reflexos sistêmicos dos novos valores da concorrência, tomada de preços e convite

Os novos valores da concorrência, tomada de preços e convite, previstos no Decreto 9.412/2018, acarretam impactos sistêmicos em outros dispositivos da Lei 8.666/1993, a saber:

a) prazo para pagamento de despesas de menor vulto econômico (art. 5º, § 3º);

b) obras, serviços e compras de grande vulto (art. 6º, V);

c) recebimento de material nas compras (art. 15, § 8º);

d) alienação de bens (art. 17, § 3º, I, e § 6º);

e) valores utilizados para contratação por consórcios públicos (art. 23, § 8º);

f) dispensa de documentos de habilitação (art. 32, § 1º e § 7º);

g) contratações de valor elevado e audiência pública (art. 39);

h) contratos verbais de pequenas compras de pronto pagamento e formalização de contratos (art. 60, parágrafo único);

h) dispensa do recebimento provisório (art. 74, III);

6. Os novos valores das modalidades de licitação e as leis específicas

Os novos valores não alteram, automaticamente, as normas legais que utilizaram os mesmos valores previstos, tradicionalmente, para concorrência, tomada de preços e convite. Nesses casos, ainda que evidenciada a inspiração nos referidos valores, a alteração dos valores indicados expressamente na legislação específica dependeria de sua alteração formal e expressa, uma vez que a legislação especial fez referência aos valores expressos em termos reais e não ao art. 23, I e II, da Lei 8.666/1993.

É o que ocorre, por exemplo, no art. 48, I, da LC 123/2006 que exige a realização de processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).

Mencione-se, ainda, o art. 15, § 2º, da Lei 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC) que dispensa a publicação de extrato do edital no Diário Oficial no caso de licitações com valores de até R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) para obras ou até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) para bens e serviços, inclusive de engenharia.

Em síntese, inexistindo menção ao art. 23 da Lei 8.666/1993, os valores indicados nas leis especiais não são modificados com a publicação do Decreto 9.412/2018, ainda que seja conveniente a sua atualização para maior coerência sistêmica do ordenamento jurídico.

7. Conclusões

Conforme demonstrado ao longo do artigo, os valores das modalidades de licitação concorrência, tomada de preços e convite, encontravam-se “congelados” e defasados por, aproximadamente, vinte anos, o que demonstra a necessidade de edição do Decreto 9.412/2018.

Contudo, o referido ato regulamentar nasce com discussões quanto à sua abrangência federativa, com o infindável debate sobre a caracterização das normas gerais de licitações e contratações públicas.

Em nossa opinião, os valores fixados para as modalidades de licitação, com a atualização do Decreto 9.412/2018, devem ser observados pelos demais Entes da federação que podem, contudo, editar as suas próprias normas jurídicas para estipulação de valores inferiores, adequados às suas realidades federativas.

Independentemente da polêmica em torno do alcance federativo, o Decreto 9.412/2018 é de extrema relevância para compreensão e aplicação de inúmeros dispositivos da Lei 8.666/1993, impactados com os novos valores das referidas modalidades de licitação.



Por Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)

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