Phillip Gil França (PR)
O Estado não se encaixa no papel de pai dos cidadãos. Não labora como parceiro do cidadão. Não funciona como cúmplice do cidadão. Não representa a figura de mãe do cidadão. Não deveria.
O Estado não pode vestir tais uniformes, pois representa o inconsciente comum que viabiliza as tarefas vitais dos cidadãos, de forma intersubjetiva, tal como nossa mente se encarrega de gerenciar nosso corpo, de maneira subjetiva.
Se contrário fosse, certamente dependeríamos de cálculos errados, escolhas equivocadas e caminhos desastrosos na condução da atividade estatal.
Ora, por que o batimento cardíaco, sistema circulatório, aproveitamento de oxigênio do homem (e outras funções vitais) não estão sob a responsabilidade consciente desse homem?
Obviamente, porque se assim estivessem, o ser humano não teria mais do que poucos dias de vida, por pura incompetência de se autorregular em um ambiente meramente subjetivo consciente.
Logo, em que pese o reconhecimento da impossibilidade de afastamento absoluto de características subjetivas na condução da atividade estatal, o viés objetivo precisa preponderar e guiar as ações da ´boa Administração Pública´.
Isto é, são os traços ´objetivos´ da concretização dos direitos fundamentais, por meio da atividade administrativa do Estado, que definem o agir estatal nos esperados padrões de ´boa Administração Pública´.
A partir dessa perspectiva sobre o ´homem e o Estado´, refletir sobre o que esperamos da Administração Pública não pode ser ato divorciado da necessária reflexão sobre o que esperamos de nós mesmos, como cidadãos e como parte de uma complexa engrenagem social que visa a promoção do desenvolvimento intersubjetivo dos seus partícipes.
Nesse contexto, a preocupação acerca da atuação da ´boa Administração Pública´ (como aquela que bem realiza os direitos fundamentais) torna-se permanente nas nossas vidas, a partir de questionamentos que giram tem torno de uma básica questão:
´O Estado ideal está voltado para mim, para nós ou para todos?´
Automaticamente, a tendência de resposta dessa questão é: ´para todos´.
Por mais simples que possa parecer essa natural resposta, definir quem são ´todos´ é tarefa hercúlea para os pensadores da adequada atuação estatal.
Isso porque, ao estabelecer ´todos´, precisamos pensar ´em cada um´ e, consequentemente, ao pensar ´em cada um´, é necessário se preocupar com o ´conjunto´ que formam, quando voltados ao alcance de um objetivo comum, como já indicado, de promoção de seu desenvolvimento, de forma intersubjetiva.
Como a Administração Pública, então, pode adimplir suas tarefas de modo atender, sustentável e proporcionalmente, os seus criadores?
Talvez, um dos caminhos de resposta dessa questão esteja na compreensão dos traços de objetividade e subjetividade da Administração Pública, conforme trataremos, rapidamente, a seguir.
Conforme indicado, a atuação administrativa estatal está fundada na perspectiva de gestão daquilo pertencente a todos e a cada um. Nessa situação, mister é a consideração da necessária capacidade do Estado agir de maneira isonômica para a realização de seus deveres constitucionais, tratando os iguais de maneiras equivalentes e os desiguais de forma diversa, nos estritos limites de suas desigualdades.
A partir desse entendimento, como é possível para o Estado alcançar tal desiderato sem prejudicar ou beneficiar alguém em detrimento de outrem e, neste trilho, manter a legitimidade de sua atuação perante os demais partícipes de seu sistema normativo?
Inicialmente, imagina-se a melhor resposta dessa questão algo semelhante ao seguinte: ´por meio do cumprimento estatal de suas funções públicas a partir de critérios objetivos, afastando, no limiar de suas possibilidades, o caráter subjetivo dos agentes que executam suas respectivas tarefas públicas´.
Fato que, obviamente, jamais será alcançado em sua plenitude, em razão do inevitável caráter subjetivo – por mais controlado que um agente público possa ser – sempre presente em qualquer atividade humana. Entretanto, não se pode esquecer que, conforme dicção do caput do art. 37 da CF/1988, cabe à Administração atuar, dentre outros, conforme os valores que o princípio da impessoalidade representa.
Assim considerado, faz-se imperioso exarar uma conclusão parcial acerca dos traços objetivos e subjetivos da Administração Pública, qual seja: é necessário considerar, avaliar e sindicar as falhas da Administração Pública, objetivando delimitar o caráter subjetivo remanescente do exercício administrativo estatal, com destaque na formação do respectivo mérito administrativo – sem ignorar ou afastar por completo a sua existência. Desse modo, as Funções do Estado devem empenhar o máximo de seus esforços para promoção da superação de falhas advindas da subjetivação desproporcional da atuação administrativa do Estado – na condição de ilegalidades – e a concretização permanente de elementos que viabilizem o desenvolvimento sinérgico da nação.
Isto é, além de se preocupar propriamente com as falhas da atividade pública, torna-se necessária a preocupação em como o Estado promove o seu adequado controle e como se ´todos´ se desenvolvem a partir da superação de tais falhas. E, dessa forma, a forma como a Administração Pública pode adequadamente atuar a partir do estabelecimento, cumprimento e sindicabilidade de critérios eminentemente objetivos extraídos do exercício da atividade estatal.
Eduardo Gianetti assenta que a verdade subjetiva, fundada nos elementos decorrentes do sujeito, não se confunde com a verdade objetiva, independente não apenas da anuência como da perspectiva, composição e individualidade de qualquer sujeito.
Afirma o autor que, para se alcançar uma real compreensão do mundo, faz-se necessário abrir mão do mundo individual (do sujeito). Tem-se que transcender o ponto de vista pessoal, parcial, irrefletido e limitado para buscar a sua verdadeira compreensão, o mais possível, de maneira externa, de fora, sem nenhum tipo de interferência. Há que considerá-lo como se o sujeito não existisse (Gianetti, Eduardo. Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 71).
Para Gianetti (idem), a ideia primordial da objetividade está fundada na premissa de eliminação da busca do conhecimento de tudo aquilo que não pertença à realidade como ela realmente é.
Então, afirma o autor, “o conhecimento será tanto mais objetivo quanto mais ele for independente do sujeito cognitivo, ou seja, quanto mais ele estiver livre de qualquer traço ou vestígio de subjetividade” (idem). Logo, “O ideal da objetividade é a completa anulação da subjetividade na busca do conhecimento” (idem).
Então, por que o Estado precisa buscar tal ideal de atuação objetiva na consecução dos seus fins?
Conforme estabelecido, nesses trilhos o Estado precisa seguir para realizar os valores constitucionais, inclusive democráticos, para a viabilização do melhor desenvolvimento para o maior número de envolvidos em seu sistema, legitimamente incluídos no pacto constitucional, conforme a amplitude de necessidade de cada um e a manutenção da sustentabilidade sistêmica.
A busca da objetividade, portanto, significa a viabilização da ´boa Administração Pública, sustentável (respeitando a capacidade renovatória do sistema) e proporcionalmente (não agindo nem em demasia, tampouco de modo insuficiente) e conforme a legitimidade do sistema, por meio de um responsável e responsabilizável mecanismo de atuação pública.
Sobre o tema, afirma John Rawls que “o primeiro elemento essencial é que uma concepção da objetividade deva estabelecer uma estrutura pública de pensamento suficiente para que o conceito de juízo se aplique e para alcançar, após discutir e refletir apropriadamente, conclusões baseadas em razões e evidências empíricas”. Para o autor, “dizer que uma convicção política é objetiva significa dizer que há razões, especificadas por uma concepção política razoável e mutuamente reconhecível (que satisfaz os requisitos essenciais), suficiente para convencer todas as pessoas razoáveis de que ela é razoável” (Rawls, John. Political Liberalism. Nova York: Columbia University Press, 1993. p. 110-119 apud Sen, Amartya. A ideia de justiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Cia das Letras, 2011. p. 73).
Na gestão pública, dessa forma, impõem-se a consideração, a interpretação e a aplicação da dimensão objetiva do tecido administrativo com o viés de concretização do bem maior a ser alcançado, conforme ditames constitucionais estampados no art. 3.º da CF/1988, compreendidos na realização permanente do desenvolvimento intersubjetivo e sinérgico do partícipes do Estado.
Todavia, o caminho para o alcance desse bem maior não é livre de barreiras e entraves que desvirtuam sua essência e o afastam de sua finalidade nuclear. Isto porque, determinar “boas escolhas públicas” é tarefa dificil, pois aferir tal assentamento traz à tona a necessidade de estabelecimento de critérios claros, democraticamente legítimos e, principalmente, objetivos.
Logicamente, para se tratar do que é público – ´de todos e de cada um´ – precisa-se primordialmente afastar, de forma sustentável, proporcional e não absoluta, das tarefas estatais o caráter subjetivo do seu conteúdo e, ao máximo possível, incutir a natureza objetiva própria do ônus da atividade pública, pois é assim que o Estado se manifesta: longe de paixões e vontades pessoais e próximo ao padrão comum responsável e responsabilizável estabelecido pelo Direito.
O agir estatal de forma objetiva estabelece maior previsibilidade, segurança, viabilidade de controle, legitimidade democrática, força coativa, padronização do sistema, confiança, dentre tantos outros benefícios que caracterizam a boa administração pública – como aquele que realiza o primado dos direitos fundamentais na plenitude de sua possibilidade, de forma a assegurar a existência digna do ser humano que lhe fornece energia e razão de existência.
Entretanto, obviamente, não se espera encontrar atividades públicas integralmente objetivas, isto é:
i) que concedam plena capacidade de determinação de como atuarão (máxima previsibilidade);
ii) que concedam os limites claros de razões e finalidade de sua existência (máxima segurança);
iii) que viabilizem a integral sindicabilidade de sua formação e reflexos (máximo controle);
iv) que sejam total e livremente aceitas pelo povo (máxima legitimidade democrática);
v) que efetivamente determinem padrões de conduta (máxima força coativa);
vi) que promovam a ampla concatenação lógica do sistema jurídico (máxima padronização do sistema); e, finalmente
vii) que gerem inquestionável aceitação popular (máxima confiança) do agir público – cenário que certamente desenharia a clamada boa administração pública.
A utopia do pleno e adequado agir público se aproxima – ou pode ser determinado – pela atuação objetiva do Estado, conforme padrões democráticos legítimos e que concretamente realizem a promoção e a proteção do cidadão com a estrita finalidade de gerar real desenvolvimento intersubjetivo dos integrantes do seu sistema.
Entretanto, como não é possível usufruir desse ideal de Estado, pois são encontrados elementos subjetivos no agir público e as escolhas estatais não podem ser integralmente objetivadas, busca-se estudar como aproximar o esperado bem agir estatal em prol de todos à realidade equivocada de “liberdade de escolhas administrativas” determinadas, basicamente, pelo atual entendimento majoritário jurisprudencial sobre o “poder discricionário administrativo”, resumido na limitação inconstitucional do seu pleno controle.
Desse modo, para superar a questão envolta da ocorrência da ausência de pleno controle jurisdicional do ato administrativo, urge destacar a imprescindível capacidade estatal de escolher caminhos para melhor atender ao cidadão e, principalmente, sublinhar a necessidade da plena sindicabilidade jurisdicional dessas escolhas (quando o Estado-juiz for questionado para tanto).
Em outras palavras, propõe-se uma reflexão sobre a integral e concreta viabilização do controle judicial da discricionariedade administrativa a partir da análise, interpretação e aplicação de critérios objetivos da atuação administrativa do Estado.
Isto porque, a busca dos traços firmes de objetivação das relações administrativas do Estado precisa ser o norte permanente da Administração Pública. Logo, em que pese a aceitação de algum resíduo subjetivo em qualquer atividade que demande a intervenção do ser humano, como atividade jurídica, via de regra, a impressão objetiva deve preponderar na atividade estatal de realização do seu ônus público e promoção do interesse público (como responsável maior pela proteção dos direitos fundamentais) para, desse modo, viabilizar o pleno controle de tal atividade estatal.
Promover a objetivação do ato administrativo é tarefa diretamente proporcional ao estabelecimento de meios legítimos de controle da atividade administrativa estatal, com o forte destaque aos princípios da moralidade, impessoalidade e proporcionalidade.
Entretanto, vale assentar que a produção do ato administrativo não depende apenas de sua dimensão subjetiva e objetiva, mas também da concretização do respectivo controle, da forma mais ampla possível. Tal fato denota a sua capacidade de ser colocado à prova e, assim, de fortalecimento das boas escolhas administrativas como o melhor caminho escolhido para a realização do interesse público justificador do ato produzido.
O agir estatal administrativo, de forma objetiva, visa estabelecer maior: previsibilidade, segurança, viabilidade de controle, legitimidade democrática, força coativa, padronização do sistema, confiança, dentre tantos outros benefícios que caracterizam a boa administração pública. Assim como aquele que realiza, na plenitude de sua possibilidade, o primado dos direitos fundamentais, de modo a assegurar a existência digna do ser humano, suficiente para lhe fornecer energia e sentido de existência.
Entretanto, logicamente, não se espera encontrar atividades públicas integralmente objetivas. Isto é, como já assentado, tarefas públicas que concedam plena capacidade de determinação de como atuarão (previsibilidade); que concedam os exatos limites de razões e finalidade de sua existência (segurança); que viabilizem a integral sindicabilidade de sua formação e reflexos (controle); que sejam total e livremente aceitas pelo povo (legitimidade democrática); que efetivamente determinem padrões de conduta (força coativa); que promovam a ampla concatenação lógica do sistema jurídico (padronização do sistema); e, finalmente, que gerem inquestionável aceitação popular (confiança) do agir público – cenário que certamente desenharia a clamada ´boa Administração Pública.
O que não significa que devemos deixar a busca da realização da ´boa Administração Pública de lado. Pelo contrário, quanto maior é o desafio de concretização dos direitos fundamentais por meio do agir administrativo do Estado, mais fortes e delimitados precisam ser os traços objetivos e subjetivos da Administração Pública.