Pedro de Hollanda Dionisio (RJ)
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Aos administradores públicos brasileiros é garantido um espaço limitado de tolerância ao cometimento de erros. Nem todas as falhas em que incorrem na compreensão da realidade demandam a aplicação de uma sanção administrativa ou o ressarcimento de eventuais danos causados ao erário.
Segundo o ordenamento nacional, apenas equívocos dotados de algum grau de culpa podem justificar sua responsabilização. É o que decorre da exigência constitucional do elemento subjetivo para a configuração da responsabilidade pessoal de agentes púbicos, inclusive nos casos de erro. É ainda o que expressamente determinam o artigo 28 da LINDB e a recém editada MP nº 966/20: apenas equívocos grosseiros, dotados de culpa grave, podem ser sancionados.
Diante da constatação de um equívoco, portanto, os órgãos de controle devem ser capazes de separar os erros juridicamente escusáveis dos intoleráveis. A partir da análise do comportamento do agente público e, sobretudo, das circunstâncias em que este se encontrava, devem identificar se o erro decorreu ou não de uma grave negligência.
Para tanto, demanda-se do controlador uma cautela metodológica aparentemente simples. O controle de uma decisão administrativa costuma ocorrer de maneira posterior, quando, muitas vezes, o contexto fático e jurídico da época já se alterou. É preciso, por isso, um esforço de retorno ao momento da tomada de decisão para que as circunstâncias então existentes sejam consideradas pelos órgãos de controle, conforme determina o artigo 22, caput e §1º, da LINDB.
A demanda por um esforço retrospectivo se dá na medida em que o administrador realiza ponderações e escolhas com base nas informações disponíveis à época. Além disso, enfrenta dificuldades próprias do momento em que ocorre seu processo decisório, as quais poderão não mais existir quando de sua análise pelos órgãos de controle competentes.
Situações excepcionais, como a da pandemia do novo coronavírus, demonstram a importância desse cuidado. O contexto de urgência e incerteza exige escolhas rápidas e lastreadas em informações escassas e pouco seguras. Muitas delas são fundamentadas em textos normativos recentes, ainda pouco explorados por precedentes judiciais e administrativos. Tais circunstâncias, que elevam o risco de erros, são temporárias e poderão não mais existir quando do exame do processo decisório.
Ao recentemente apreciar ações diretas de inconstitucionalidade que pediam a suspensão da MP nº 966/20, no entanto, o Ministro Luís Roberto Barroso chamou atenção para uma grave dificuldade envolvida nesse necessário esforço retrospectivo. Utilizando-se de metáfora que inspira o título deste artigo, destacou que a demora na apreciação das decisões administrativas torna inviável a reconstrução das circunstâncias enfrentadas pelo gestor e coloca seus julgadores em um papel de comentaristas de videoteipe.
De fato, o controle das decisões administrativas costuma ocorrer tempos depois de a decisão ser tomada. Não raro, passam-se anos entre o momento da escolha administrativa e a sua análise pelos órgãos competentes. Estudos apontam, por exemplo, que, no Brasil, ações de improbidade administrativa demoram, em média, mais de seis anos para serem definitivamente julgadas.
A demora traz problemas de, ao menos, duas naturezas. O primeiro, bem destacado no voto, é de ordem probatória. Com o passar dos anos, documentos que contêm informações relevantes para a reconstituição do cenário decisório são perdidos ou descartados. Servidores que participaram ou testemunharam o processo de decisão não se recordam do que se passou e, por vezes, sequer trabalham mais no respectivo órgão ou entidade.
Há ainda dificuldades de ordem psicológica. Falhas cognitivas inerentes a análises retrospectivas são agravadas com o passar do tempo. O chamado viés retrospectivo (hindsight bias), por exemplo, indica que subestimamos a incerteza envolvida em eventos ocorridos no passado. Diante de acontecimentos negativos e inesperados, construímos narrativas que parecem demonstrar sua previsibilidade (1). A existência do viés impõe cautela no exame de erros de projeção cometidos por agentes públicos.
Ao analisarmos o passado, além disso, costumamos nele projetar percepções e valores da atualidade. Olhamos o passado com as lentes do presente (2). Assim, o controle público pode eventualmente desconsiderar incertezas na interpretação do direito existentes à época da decisão frente a uma posterior pacificação da questão. Corre-se o risco, ainda, de decisões administrativas tomadas em cenários de emergência serem analisadas a partir de um contexto futuro de normalidade institucional, existente quando da apuração da responsabilidade pessoal.
Diante de tais problemas, como é possível viabilizar uma adequada análise retrospectiva? Uma forma de enfrentá-los se dá pelo exercício do controle concomitante, no qual as atividades administrativas são acompanhadas pelos órgãos de controle à medida em que são exercidas, quase que em tempo real. A redução do prazo entre decisão e controle facilita que as circunstâncias da época sejam consideradas de maneira mais fidedigna.
A técnica é útil e amplamente utilizada pelos Tribunais de Contas do país para o acompanhamento de ações administrativas dotadas de especial urgência ou relevância. Sua extensão para todo o controle público, no entanto, esbarra nos seus custos de implementação e no modelo de supervisão a posteriori que parece ter sido prestigiado pela Constituição de 1988.
Os problemas envolvidos na análise retrospectiva podem ser atenuados, ainda, pelo reforço do dever de motivação dos administradores. Agentes públicos, ao justificar suas decisões, devem descrever de maneira detalhada (e, sempre que possível, respaldada) o contexto fático e jurídico em que a decisão foi tomada. Com isso, permitem que os órgãos julgadores tomem conhecimento e considerem as circunstâncias que determinaram sua emissão.
De fato, trata-se também de medida imperfeita, que apenas atenua e não soluciona por completo o problema. Nem sempre se pode confiar no cumprimento do dever de motivação e mesmo na fidelidade dos motivos expostos pelo gestor. A ressalva não justifica, contudo, que se abandone o esforço de reconstrução do contexto de tomada de decisão. A historiografia sofre de problemas semelhantes e nem por isso desistimos de estudar adequadamente nosso passado.
NOTAS
(1) Sobre o tema, ver FISCHHOFF, Baruch. Hindsight is not equal to foresight: The effect of outcome knowledge on judgment under uncertainty. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, 1975, p. 288–299. Agradeço à Carina Castro pelos debates sobre o tema.
(2) Uma perspectiva negativa do fenômeno é encontrada em HUNT, Lynn. Against presentism (2002). Disponível em <https://www.historians.org/publications-and-directories/perspectives-on-history/may-2002/against-presentism>. Acesso em 18.jun.2020.
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