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O Controle Público e o Fetiche da Culpa

ANO 2016 NUM 114
Paulo Modesto (BA)
Professor de Direito Administrativo da UFBA. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Ministério Público da Bahia. Diretor-Geral da Revista Brasileira de Direito Público. Editor do site direitodoestado.com.br


21/03/2016 | 7956 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

É um dado de nossa cultura a individualização e dramatização da culpa como a causa dos nossos infortúnios. Se há um dano, inquire-se sobre culpados e responsáveis. Sem a interferência de culpados, não haveria dano e a ordem das coisas seguiria o seu curso regular e virtuoso.

Há muita ingenuidade nestes pressupostos. Primeiro, há danos que decorrem de atividade lícita e regular, onde é impróprio demandar a expiação da culpa ou a punição de culpados. Segundo, há danos cuja origem não pode ser individualizada, pois decorrem do próprio funcionamento das organizações. Por fim, há danos produzidos por terceiros, às vezes licita às vezes ilicitamente, cuja responsabilidade pode ser transferida sem que se possa atribuir culpa ao final responsável, a exemplo dos decorrentes de atos multitudinários.

O paradigma da ação ou omissão culposa como causa geral de danos apresenta ainda outras imprecisões e inconvenientes. A atividade de controle é percebida como atividade de restauração. Busca-se restaurar o status quo ante, a ordem virtuosa anterior à perturbada interferência da ação culposa ou deliberada dos agentes responsáveis. O controle assume feições expiatórias e repressivas, dirige a sua atenção ao passado e à sanção dos culpados, sem perceber que muitas vezes a volta ao passado é impossível ou de elevado custo. Essa indiferença ao custo é também outra marca do paradigma quase religioso da expiação da culpa: não se avalia quanto custa o controle e seu impacto na cadeia social. O importante é o caráter exemplar da sanção ao erro, o seu efeito educativo, independentemente dos custos encartados nas soluções de controle.

O paradigma do controle fundado na culpa, simplificado aqui até o caricato, embora ainda muito forte entre nós, tem perdido vigência. É atacado por diversas frentes. Destaco aqui três delas.

A primeira frente enfatiza a dimensão temporal do futuro e deixa de perceber o controle como restauração: o controle deve ser antes prevenção ou precaução, pois os danos podem ser irreparáveis, inclusive para as futuras gerações. Há uma responsabilidade intergeracional coletiva que não se funda na culpa, pois os danos sequer precisam existir concretamente e o que se deseja é que sejam evitados para sujeitos que também ainda não existem. O aumento da influência do homem sobre os ecossistemas e sua capacidade para produzir resíduos deletérios para as futuras gerações em escala temporal sem paralelo é um fato há décadas denunciado por Hans Jonas, que propugnou a superação da “ética do próximo”, limitada aos contemporâneos (Hans JONAS, El Principio de Resposabilidad: ensayo de una ética para la civilización tecnológica, Barcelona, Herder, 1995, cuja primeira edição alemã é de 1979). O problema do controle deixa de ser exclusivamente voltado aos danos próximos e certos e seu foco muda para a prevenção de danos futuros, muitas vezes incertos, porém prováveis.

Normas constitucionais que tutelam a democracia, promovem a dignidade da pessoa humana, a cidadania ou o desenvolvimento nacional não são dirigidas apenas aos contemporâneos e devem ser compreendidas à luz da justiça intergeracional. Em uma perspectiva diacrônica, como comunidade intergeracional, não pode ser qualificada de democrática uma decisão tomada hoje que não seja reversível democraticamente pelas futuras gerações. A política ultrapassa (ou deve ultrapassar) a dimensão de mero diálogo entre representantes e representados imediatos, para internalizar a dimensão de participação das futuras gerações. Não se trata de leitura moral de textos constitucionais, mas de compreensão alargada de direitos e deveres constitucionais.

As decisões fundamentais devem salvaguardar as condições de existência digna das futuras gerações, não por altruísmo, mas porque a Constituição é um documento intergeracional por excelência. É feita para proteger direitos e interesses das atuais e futuras gerações. E suas cláusulas, por isso mesmo, devem ser interpretadas sob o prisma da sustentabilidade da própria comunidade intergeracional (v. Raffaele BIFULCO, Diritto e generazioni future: problemi giuridici della responsabilità intergenerazionale, Milano, Franco Angeli Edizioni, 2008, p. 69-70).

Por vezes, a Constituição estabelece limites e deveres dirigidos a gerações futuras. São exemplo as normas constitucionais que limitam as reformas constitucionais, denominadas no Brasil de “cláusulas pétreas” ou “cláusulas de eternidade” (“eternity clauses”), a exemplo do Art. 60 da Constituição Federal. Essas normas são problemáticas à luz da justiça intergeracional e devem ser interpretadas estritamente, assegurando a abertura ao futuro da Constituição e as possibilidades de escolha das gerações vindouras (Joerg Chet TREMMEL, A Theory of Intergenerational Justice, London, Routledge, 2014, pp. 57-63; J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7 ed., 9 reimp., Coimbra, Almedina, 2003, p. 1436).

Na política e no direito, com clareza nova, não decidimos apenas para os que estão vivos. Decidimos para uma comunidade intergeracional, o que deve ser considerado também no controle de constitucionalidade das normas legais. Leis que promovam endividamento excessivo das próximas gerações, autorizem o esgotamento de recursos escassos ou adotem decisões irreversíveis devem ser submetidas a parâmetros rigorosos de proporcionalidade.

Em nossa Constituição essa exigência tem apoio em norma expressa, o Art. 225, que prescreve: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Nos diversos parágrafos e incisos deste artigo, resguarda-se o patrimônio genético, os processos ecológicos essenciais, exige-se estudo prévio de impacto ambiental para obras e atividades potencialmente causadoras de dano, o controle de substâncias degradantes, entre outras normas.

Essas normas repercutem, quase literalmente, princípios enunciados no Relatório Brundtland, da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1987. Esse documento internacional define o desenvolvimento sustentável como aquele que assume a responsabilidade perante as futuras gerações.

Para usar uma metáfora proposta por Eduardo Giannetti, pode-se afirmar que o direito e as instituições públicas devem superar a miopia temporal (atribuição de valor demasiado ao que se encontra perto de nós no tempo) sem recair na hipermetropia temporal (atribuição de um valor excessivo ao amanhã, em prejuízo das demandas e interesses correntes) (V. Eduardo GIANNETTI, O Valor do Amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros, São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p 12-13). Essa moderação dialética deve ser realizada por normas e instituições públicas, inclusive pela justiça constitucional, e são um tema fundamental do controle administrativo ou jurisdicional da contemporaneidade.

Em uma segunda frente o paradigma do controle fundado na culpa e sua repressão externa enfrenta dificuldades. Trata-se do debate sobre a governance, governação ou governança das entidades ou organizações. Parte-se aqui da análise dos custos do controle externo, de sua ineficácia para evitar danos, concretos ou reputacionais, e da necessidade de incorporar, interna e estruturalmente, nas diversas organizações controladas, diretrizes de transparência, processualidade, eficiência, informação, moralidade e impessoalidade suficientes para evitar conflitos de interesse e corrigir falhas de funcionamento e direção. O controle deixa de ser expiação e repressão, para ser autoprogramação e autocontrole, com exigências cada vez maiores de adequação organizacional. A governação democrática, que incorpora os agentes da base das organizações em processos decisórios das entidades, parece evitar mais amplamente condutas danosas e seus efeitos do que o controle posterior, sucessivo e repressivo, de organizações externas. Essa exigência, inicialmente imposta a entidades privadas de capital aberto, atualmente tem sido aplicada para o domínio das organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e o domínio de diversas organizações públicas, cada vez mais sujeitas ao controle social e a institucionalização consistente de processos decisórios.

Por fim, em uma terceira frente, o controle tradicional é questionado. Deixa de ser julgamento e punição e passa a ser concebido como acordo e monitoramento. Contratos de gestão, acordos de gestão, compromissos de gestão se difundem em todo o planeta, em ordenamentos jurídicos completamente distintos, respondendo a exigências cada vez maiores de pactuação de resultados, programação de indicadores de desempenho, comprometimento direto dos agentes envolvidos na prossecução de resultados em regime de autovinculação. Muitas vezes o que se pode conseguir com ordens diretas é objeto de negociação para estimular o envolvimento dos agentes e reduzir a insegurança jurídica na atividade de controle. Pactuado o resultado esperado e a forma de controle a organização atua com maior desembaraço e eficácia, com menores custos de transação e maior previsibilidade, por estar menos sujeita ao casuísmo na decisão de controle. Felizmente hoje ninguém mais discute a pertinência e a importância da adoção de instrumentos de avaliação de desempenho também no setor público. Pode-se criticar a eficácia das formas atualmente concebidas de avaliação, a sua precisão ou amplitude, mas são raras as vozes contrárias a existência de mecanismos de monitoramento, planejamento e verificação de resultados no setor público. A concepção de que a atuação administrativa do Estado se resume ao cumprimento regular da lei perdeu vigência. Exige-se do administrador público, a par do comportamento legal, atuação tempestiva e eficiente às demandas crescentes da sociedade e de diversos órgãos do próprio Estado. O mesmo deve ser exigido dos órgãos de controle, em especial os que realizam função administrativa, pois estão submetidos aos mesmos princípios constitucionais (Paulo MODESTO, Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa, In: MODESTO, Paulo (org.). A Nova Organização Administrativa, Minas Gerais, Ed. Fórum, 2010, 2ª ed., pp. 173-174).

É preciso evitar o descontrole do controle, a superposição de controles, o retardamento inútil de medidas saneadores, a falta de motivação de medidas restritivas, a ausência de indicação de alternativas válidas de gestão. Numa palavra, é importante parametrizar o controle e oferecer segurança jurídica ao Estado e aos particulares tanto na atividade de controle quanto na atividade de gestão. O controle não é uma atividade com fim em si mesma; é meio para a realização de fins materiais prezados pela comunidade e meio para garantir a dignidade humana. Deve prevenir e precaver o dano, exigir autocontrole e governança nas organizações, monitorar e contribuir para parametrizar a atuação estatal e de seus parceiros, a inibir o arbítrio, a improvisação, a corrupção e o conflito de interesses. Pode e deve sancionar culpados, quando existirem, mas não é esta a sua tarefa principal. ///

Nota: Este texto é fragmento do prefácio que escrevi para o livro de PHILLIP GIL FRANÇA, Controle Público da Administração Pública, 4ª. Ed, Editora Revista dos Tribunais, 2016. Agradeço a Phillip a autorização para compartilhar neste espaço ao menos a primeira parte do Prefácio como texto autônomo em primeira mão. 



Por Paulo Modesto (BA)

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