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Espaço Alice Gonzalez Borges: um jardim de memórias

ANO 2022 NUM 487
Paulo Modesto (BA)
Professor de Direito Administrativo da UFBA. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Ministério Público da Bahia. Diretor-Geral da Revista Brasileira de Direito Público. Editor do site direitodoestado.com.br


06/12/2022 23:53:04 | 1085 pessoas já leram esta coluna. | 8 usuário(s) ON-line nesta página

Fui convidado a proferir breves palavras sobre Alice Gonzalez Borges, minha amiga, parceira e inspiração por tantos anos nesta inauguração festiva.[1] O problema é a palavra breve.

Todos somos testemunhas da longa trajetória de Alice na Procuradoria Geral do Estado, pois foi a primeira procuradora mulher concursada a ingressar nesta Instituição e, mesmo aposentada, sabemos que da Instituição nunca se desligou. Alice alimentava uma verdadeira paixão pela advocacia pública.

Essa paixão deixou frutos: um exemplo imperecível de retidão na condução da coisa pública, centenas de procuradoras e procuradores dedicados ao aprimoramento cultural e à pesquisa profissional e acadêmica. A reputação de notável saber e seriedade que acompanha a atuação dos profissionais desta casa é também tributária de Alice e seu exemplo. Hoje Alice é nome de prêmio anual destinado aos melhores trabalhos jurídicos produzidos pelos procuradores do Estado da Bahia.

Padre Antonio Vieira, no Sermão da Sexagésima, ensinava:

“O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Por que não terá também o seu outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras, leva-as o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as discretas, só essas são as que duram, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo”. (Pregado na Capela Real, 1655, p. 8).

Como as flores, somos todos transitórios. Porém, há valor na transitoriedade se a memória dos que ficam consegue reter a inspiração e a moldura do momento e dos frutos produzidos.

O próprio Freud, geralmente seco e direto, no texto “Sobre a Transitoriedade”, enuncia:

“O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela.” (In: Obras Psicológicas Completas: edição standard brasileira. Volume XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2013, pág. 313-319).

Alice, por toda a vida, amou a arte (era talentosa pianista), amou as flores, amou a família, os amigos e as instituições em que atuou. Mantinha vida sóbria, simples, mas rica em afeto e atenção.

Alice marcou igualmente com o seu exemplo, disciplina, dedicação e correção a Academia de Letras Jurídicas da Bahia, órgão de cultura a que também pertenço, e aqui represento. Foi igualmente a primeira presidente mulher, a primeira presidente a ser reconduzida, tendo sido a minha sucessora na condução daquele sodalício.

Foi também a primeira presidente do Instituto de Direito Administrativo da Bahia, entidade que fundamos juntos, e que contou com sua dedicada disciplina nos primeiros anos de vida.

Alice sofreu com limitações físicas nos últimos anos de sua existência terrena, mas ainda assim comparecia aos eventos, participava de conclaves e comissões. Tive a alegria de realizar um evento jurídico nacional em sua homenagem, ainda com ela em vida, e de poder convidá-la a participar de comissões técnicas e legislativas do governo federal de que eu também fazia parte. Alice sonhava e do sonho tirava forças para manter uma disciplina ativa, produtiva, operosa. 

Esse jardim de flores, que a partir de hoje leva o seu nome, não é uma homenagem qualquer. É um santuário de memória. É o espaço privilegiado na Procuradoria Geral para recordar as lições e o exemplo de Alice, cuja transitoriedade pode ser do corpo, mas nunca do espírito e do exemplo.

Esta Instituição é um centro de convivência. Tem charme e tem história. Mas para que sobreviva como algo mais do que uma simples repartição pública precisa armar pontes entre gerações e fundir no horizonte temporal passado, presente e futuro.

Em 2018, no texto Tributo a Alice Gonzalez Borges, que publiquei no site direitodoestado.com.br e no livro Café com Prosa: crônicas de direito e reforma do estado (GZ, 2021), abordei brevemente deste ponto:

“A consciência do tempo não é o tempo, mas a experiência subjetiva possível do tempo, que é fluxo e, como tal, inapreensível.

Santo Agostinho bem o dizia: o correto não é enunciar-se passado, presente e futuro, porém o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. Na sua forma poética, ensinava o filósofo, que “o presente do passado é memória; o presente do presente é intuição direta; o presente do futuro é a espera”. Por isso, digo eu, o tempo subjetivo ou existencial é a conjugação simultânea em nós das múltiplas dimensões do tempo objetivo ou cronológico. Sem consciência do passado, ou do presente passado, permanecemos ingênuos; sem a consciência do presente futuro, sucumbimos ao imediatismo e à melancolia. O mesmo ocorre com as Academias: amadurecem a sua consciência do tempo quando reconhecem a coexistência temporal, que é fusão e síntese, e não se abandonam à simples sucessão e mudança de integrantes.”
 (Cf. http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/tributo-a-Alice-gonzalez-borges)

Hoje, como as Academias, as Procuradorias e os demais órgãos públicos são repositórios de memórias, lições do tempo, e possuem a consciência do tempo, que é sempre consciência da mudança e da finitude.

Vivemos mais do que uma época de mudanças; vivemos uma mudança de época, com radicais transformações, em que velhas inquietações, inclusive democráticas, renascem sobre outras formas.

Alice era uma democrata e, como todo democrata, considerava com Rui Barbosa que a base da democracia é a religião do direito. Somente pelo direito, nunca pela força ou pela audácia anárquica, é possível edificar um estado de segurança, confiança e desenvolvimento.  Por isso empregava o melhor de sua energia na advocacia e na educação, fundamento da cidadania consciente. 

A saudade de Alice Gonzalez Borges nos recorda a sua vitória sobre o paradigma de mulher intelectual de sua época, razão pela qual ela foi pioneira em tantas instituições, mas também nos lembra que reviver a sua presença enriquece o nosso presente e o prepara para os desafios do futuro, que já se projetam.  A sua presença espiritual neste espaço inspira e contagia, pois Alice era uma mulher marcada pela simplicidade e pela sabedoria.

Como já escrevi certa vez, a palavra de Alice para mim sempre foi doce e de uma só cor. Ela me incentivava intensamente, assumindo muitas vezes um papel maternal: fez-se amiga de toda a minha família, acompanhou o desenvolvimento de minhas duas filhas, que a chamavam de vovó Alice, conspirava com minha mulher para que eu dormisse um pouco mais, ou fizesse regime, ou não assumisse tantos compromissos fora da Bahia para palestras ou aulas. Cobrava que eu escrevesse mais e não protelasse projetos antigos. Sempre foi para mim um exemplo de mulher corajosa e determinada, disciplinada e interessada pelo outro e aberta ao novo, com quem eu podia dialogar sem reservas. Alice era generosa afetivamente e ao mesmo tempo contida. Não se exibia, deixava-se exibir, assumindo os riscos de opinar de forma franca. E era livre, como todo intelectual digno, pois não corrompia o seu pensamento para atender a modas e aos gostos da ocasião.

Sei que serei devedor de Alice por toda a vida, eternamente insolvente, pois ela me tratava como filho intelectual e sempre foi comigo generosa e muito paciente. Sou devedor assim também de Calmon de Passos, que me ensinou muitíssimo e me acolheu como pai intelectual. Temos muitos pais e mães afetivos, além dos nossos pais biológicos, cujo amor filial nunca podemos negar.

Alice hoje toma posse desse espaço de memória e saudade a partir desta sessão de inauguração. Tenho certeza de que se Manuel Bandeira estivesse aqui, parodiaria a si próprio, no poema em que São Pedro recebe a preta Irene, e diria: entre, Alice, assuma o seu espaço, aqui você não precisa pedir licença!

Muito obrigado pela atenção de todos.

Nota:

[1] Discurso proferido pelo autor, a convite da Procuradoria Geral do Estado da Bahia, por ocasião da inauguração do Espaço Alice Gonzalez Borges, amplo jardim dedicado à ex-professora e procuradora Alice Gonzalez Borges. Sede da PGE-BA, Centro Administrativo da Bahia, 6 de dezembro de 2022.



Por Paulo Modesto (BA)

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