Paulo Modesto (BA)
Parceria e Parcerias Sociais
Parceria é signo que evoca, em sentido amplo, associação estável e duradoura de interesses comuns, fundada na reciprocidade e no reconhecimento mútuo da complementariedade dos pontos fortes e fracos dos partícipes, disciplinada pelo direito e geradora de obrigações jurídicas, voltada à implementação de serviços ou projetos compartilhados, independentemente da criação de pessoa jurídica.
Parceria é conceito que não designa uma estrutura relacional uniforme, passível de descrição objetiva, mas arranjos variados de colaboração duradoura, voluntária e estável, com manifesto acento no aspecto funcional ou finalístico. Parceria é conceito jurídico funcional: a tônica é a prossecução de um valor comum aos parceiros e não o atendimento de um interesse exclusivo de uma das partes, a contratação de unidades de serviço, a especificação dos meios para obtê-lo ou a qualidade dos sujeitos intervenientes na relação jurídica. Ao envolver a Administração Pública, presume-se que o valor comum ou compartilhado envolvido na parceria é um valor de interesse público. Sem embargo da relevância do aspecto finalístico, no vínculo de parceria há também um aspecto estrutural (a mútua complementariedade da atuação dos envolvidos) e um aspecto jurídico-formal (a criação ou modificação de obrigações jurídicas).
Porém, o fato de não existir, nas parcerias entre o Poder Público e particulares, com ou sem fins lucrativos, uma estrutura relacional uniforme, não pode conduzir a doutrina à anemia conceitual. Parceria não é folia: não é dança com qualquer parceiro, vínculo de qualquer espécie, signo sem qualquer rigor. Não pode ser conceito sem fronteiras precisas, empregado para evasão de situações típicas ou para controle arbitrário de vínculos disciplinados pelo direito.
Embora pouco estudados pela doutrina, existem limites conceituais mínimos para as parcerias entre o Poder Público e particulares. Em direito público, além da necessária complementariedade dos pontos fortes e fracos dos envolvidos, a voz parceria exige que o valor comum ou compartilhado entre o Poder Público e os particulares seja dirigido à satisfação de terceiros ou do interesse público, objeto de atenção convergente dos partícipes do vínculo. O valor compartilhado – referido no conceito genérico de parceria - não pode ser o interesse privativo de qualquer dos signatários do vínculo. Não há autêntica parceria no âmbito do direito público se o vínculo se destina a oferecer serviços, bens ou pessoal tendo como destinatário final apenas um dos sujeitos da parceria. As atividades envolvidas na parceria não podem ter como destinatário o próprio aparelho estatal ou interesses exclusivos do parceiro privado. Haverá simples contratação, não parceria, quando ausente o interesse comum entre os partícipes, quando faltar complementariedade na capacidade de atuação das partes envolvidas ou destinação pública no vínculo estabelecido.
Sobremais, toda parceria para prestação de serviços ou para implementação de projetos comuns deve ser voluntária. Parceria compulsória é uma contradição em termos. Nas parcerias há relação jurídica bilateral ou multilateral, geradora de obrigações jurídicas recíprocas, caracterizada pela paridade, equilíbrio e voluntariedade, pois o vínculo pretende traduzir um esforço comum e autônomo para a prossecução de fins compartilhados.
Há parcerias econômicas, institucionais ou sociais. Econômicas, em sentido estrito, são as parcerias que autorizam o partícipe a apropriar-se do resultado econômico mediato ou imediato da colaboração para utilização livre. Sociais são as parcerias nas quais o resultado econômico do vínculo deve ser integralmente reinvestido na própria atividade social desempenhada, ou incorporado a fundo patrimonial de contingência, diretamente relacionado à sustentabilidade da prossecução da atividade social fomentada e à realização dos valores comuns, não sendo os recursos reservados passíveis de distribuição a partícipe no fim do exercício ou por ocasião da extinção da entidade. Institucionais são as parcerias que não envolvem transferência de recursos entre os parceiros, constituindo colaboração de troca de informações ou de simples atuação conjunta, sejam os partícipes apenas entidades públicas ou envolvam entidades públicas e privadas.
Quanto às parcerias sociais, é dever do Estado reconhecer e apoiar as entidades privadas de solidariedade social ou de fins públicos, como expressamente acentuam os artigos 199, § 1; 204, I; 205, caput; 213; 215; 227, § 1., todos da Constituição Federal, mas com uma importante mudança cultural. O fomento social no Brasil ainda se ressente de uma cultura autoritária, segundo a qual o Poder Público sempre se apresenta como o intérprete preferencial do interesse coletivo, a voz determinante de todos os termos essenciais do vínculo, cabendo aos particulares que com ele se relacionem a simples obediência, mesmo em face de parceria sem fins econômicos. Porém, parceria é conceito que não rima bem com subordinação e arbítrio, indeterminação e insegurança, porquanto pressupõe uma cultura de colaboração e reciprocidade, definição equilibrada de deveres complementares entre os partícipes, raiz profunda para autênticas formas de colaboração.
A Lei 13.019/2014 e as Parcerias Público Sociais (PPS)
Na nova redação da Lei 13.019/2014, modificada pela Lei 13.204/2015, parceria é voz definida para os seus fins como “conjunto de direitos, responsabilidades e obrigações decorrentes de relação jurídica estabelecida formalmente entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividade ou de projeto expressos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação” (Art. 2º, III, grifamos). Trata-se de conceito ao mesmo tempo finalístico e auto referido, pois é inteligível de modo completo apenas a partir da definição que a própria lei confere para o que denomina termo de colaboração, termo de fomento e acordo de cooperação. Por isso, não é vinculante para o emprego doutrinário, sendo legítimo o uso da voz parceria e do conceito de parceria social também fora do âmbito de aplicação da Lei 13.019/2015, nomeadamente nos vínculos jurídicos afastados de sua cobertura, como os mantidos entre o Poder Público e as organizações sociais. Sem embargo disso, a centralidade do conceito de parceria na nova legislação é indiscutível e um avanço legislativo importante que pode colaborar para a superação da cultura autoritária antes referida na compreensão de normas constantes de vínculos de fomento público regidos por outras leis específicas.
Tradicionalmente, a atuação do Estado no fomento à entreajuda e à cooperação social entre particulares limitava-se a funções de reconhecimento e credenciamento (razão última para a criação de diversos títulos administrativos qualificadores de entidades privadas de fins públicos) e funções de subvencionamento e apoio (fomento econômico direto ou indireto). Essas são funções administrativas distintas, mas não inteiramente independentes: a colaboração com alguma expressão econômica oferecida pelo Estado às entidades privadas sem fins lucrativos ordinariamente dependia no passado do exercício prévio da atividade certificadora pelo próprio Poder Público. Cartórios públicos foram constituídos, destinados a gerir títulos e qualificações administrativas, e o Poder Legislativo – abusivamente e violando às escâncaras a separação constitucional de funções – também passou a atribuir por ato legislativo títulos jurídicos de fomento. Foram testemunhas desse tempo o título de utilidade pública (no âmbito federal, Lei 91, de 28/08/35; Lei 6.639, de 08/05/79, ambas hoje revogadas) e o título de entidade de fins filantrópicos, hoje entidade beneficente de assistência social (Lei 8.742, de 08/12/1993; Lei 12.101, de 27/11/2009; Lei 12.868, 15/10/2013).
É necessário constatar que o aumento do número de certificações e de parcerias público-sociais conduziu a uma lenta transformação de elementos característicos desse paradigma de relacionamento. No passado o fomento social era dominado pelas ideias de unilateralidade e liberalidade do Poder Público. As contrapartidas devidas pelas entidades fomentadas eram inespecíficas, consistindo o incentivo público verdadeira doação pública ou favor oficial, quase sempre sem controle posterior detalhado da aplicação efetiva dos recursos concedidos. E os vínculos de parcerias considerados acordos precários, sem consistência para criar autênticas obrigações recíprocas. Porém, nos últimos vinte anos, por toda parte, as relações de fomento e as parcerias sociais passaram a ser cada vez mais parametrizadas, especificar prazos, indicadores de desempenho, metas a cumprir, custos a respeitar, procedimentos decisórios a atender, exigindo-se detalhadas e cada vem mais abrangentes prestações de contas do particular pelo bom uso dos recursos públicos transferidos ou das vantagens tributárias concedidas. O fomento passou a exigir vínculos bilaterais ou multilaterais consistentes (contratos de gestão, termos de parceria, convênios mais específicos) e controle de resultados auditado pela administração ou por terceiros independentes. São testemunhas da segunda etapa deste processo de relacionamento as leis criadoras dos títulos de organização social (no plano federal, Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998) e de organização da sociedade civil de interesse público (Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999).
Aos poucos o fomento e as parcerias público-sociais passaram a colocar em evidência uma nova ordem de complexos desafios: o aperfeiçoamento dos indicadores de qualidade dos serviços oferecidos, a métrica adequada para avaliar soluções exclusivamente locais, o desenvolvimento de indicadores de avaliação do grau de retorno do investimento financeiro em projeto sociais (Social Return on Investment - SROI), a sustentabilidade de parcerias em períodos de escassez de recursos, o planejamento da sucessão em parcerias de longo prazo, as formas de controle e participação das comunidades beneficiadas na definição do modo e da extensão das prestações, a definição das melhores práticas de governança para o funcionamento dos conselhos e diretorias de associações e fundações, a gestão de riscos nos projetos, a atuação de “empresas sociais” no mercado, adoção de metodologias de “balanced scorecard” para organizações não lucrativas, problemas de fusão de entidades e articulação de projetos em rede e, na base de tudo isso, o grau de aplicação do direito público a pessoas privadas sem fins lucrativos exercentes de atividades de relevância pública (conceito que insistentemente emprego há dezenove anos, calçado em expressa disposição constitucional).
A celebração das parcerias sociais cada vez mais abrangentes, além de exigir a observância rigorosa do princípio da igualdade e da impessoalidade no fomento, também alçou ao primeiro plano problemas relacionados ao fim das parcerias, a desmobilização de estruturas envolvidas com serviços vitais para a realização de direitos fundamentais, aspectos relacionados à continuidade dos serviços, a afetação das comunidades envolvidas e eventuais situações de assimetria de informação entre as partes no vínculo.
Não é incomum que a Administração Pública ora figure como agente instabilizador de vínculos de parceria (a promover atrasos no repasses de recursos ao parceiro privado, a exercer controles abusivos, a impor exigências burocráticas não acordadas previamente, entre outras práticas) e ora figure como refém de vínculos de parcerias firmados (porquanto incapacitada para dar continuidade, por si ou por outra entidade privada acreditada, aos serviços essenciais realizados depois de longo tempo por entidade privada parceira).
Por outro lado, a entidade privada subvencionada, gestora de recursos públicos de fomento, move-se em zona marcada por quatro travas essenciais:
a) como entidade privada, rege-se pelo direito que lhe é próprio, salvo norma legal expressa (princípio da congruência entre a forma de organização e a forma jurídica da ação);
b) como entidade privada, é titular de direitos fundamentais, assinalados na Constituição da República, inclusive o direito das associações a não sofrerem interferência do Poder Público em seu funcionamento (Art. 5º, XVIII, da CF);
c) como gestora de recursos públicos, é responsável pela prestação de contas do correto uso dos valores recebidos (Art. 70, §único, da CF);
d) como entidade contratada ou fomentada, assume compromissos vinculantes assinalados no contrato de gestão, termo de parceria ou instrumento equivalente (autovinculação ou heterovinculação por adesão).
É certo que os recursos públicos no fomento social preservam a sua destinação pública. Os recursos de fomento possuem destinação específica, que deve ser prevista expressamente no instrumento de detalhamento do vínculo. Porém, decisões posteriores do gestor público quanto ao modo de prestação de contas podem valer para órgão subordinados, não para entidades parceiras, que não estão sujeitas à hierarquia administrativa. Estas devem se guiar pelo instrumento do vínculo, pelas regras regulamentares vigentes e pela legislação de controle.
Atualmente, no domínio das parcerias e do fomento social, o Estado compromete-se, autovincula-se e edita atos administrativos favoráveis que se destinam a criar situações de confiança legítima (protegida) e garantias mobilizadoras da atuação privada no setor social ou da solidariedade social. No passado este conjunto de medidas estava sujeito, de modo permanente, à precariedade dos atos de benemerência, sendo possível ao Poder Público invocar prerrogativas de autoridade para cancelar, discricionariamente, qualquer benefício concedido ou prometido. Essa instabilidade, com o crescimento exponencial da expressão econômica e do número de vínculos de parceria, não pode ser mais admitida, seja em homenagem à segurança jurídica, seja em razão da consciência paulatinamente construída da necessidade de emprestar estabilidade, consistência e responsabilidade às relações administrativas de fomento público. Hoje convênios, termos de parcerias, contratos de gestão, termos de fomento, termos de colaboração ou acordos de cooperação são vínculos estruturados e bilaterais de fomento, sem caráter comutativo ou sinalagmático (como é próprio dos vínculos de fomento), mas não mais admitem a instabilidade, a discricionariedade e o autoritarismo de outrora.
A Lei 13.019/2014 consolida de modo expressivo essa terceira etapa evolutiva das parcerias público-sociais no Brasil. Não cria qualquer título jurídico novo. Disciplina vínculos de parceria social entre o Poder Público e entidades privadas sem fins lucrativos, mas sem pressupor prévia atividade certificadora pública. As modificações promovidas pela Lei n. 13.204/2015 apenas acentuaram este aspecto. O centro da disciplina normativa deixou de ser a caracterização prévia de estruturas orgânicas do terceiro setor diretamente envolvidas nas parcerias público-sociais para focar na própria relação de fomento e parceria, isto é, na dinâmica das relações de colaboração do Poder Público com as organizações da sociedade civil de fins públicos. Há uma ruptura com o paradigma tradicional da centificação-fomento. Esta talvez seja a grande novidade da lei.
Organizações da sociedade civil é, na Lei 13.019/13.204, apenas uma definição denotativa: uma designação abrangente para as diferentes formas jurídicas de entidades de colaboração referidas no texto legal. A novidade é que agora, expressamente, ao lado das tradicionais entidades privadas sem fins lucrativos, a lei incorpora ao conjunto das entidades cobertas pelas parcerias público-sociais as cooperativas de trabalho; as cooperativas integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as cooperativas alcançadas por programas e ações de combate à pobreza e de geração de trabalho e renda; as cooperativas voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural e, por fim, as cooperativas “capacitadas para execução de atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social” (Art. 2, I, b, Lei 13.019/2014, com redação da Lei 13.204/2015), bem como as “as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos” (Art. 2, I, b, Lei 13.019/2014, com redação da Lei 13.204/2015). Porém, o mais importante: as certificações concedidas pelo Estado deixam de ser exigidas como condição para celebração das parcerias, salvo exigência expressa da política pública específica constante de legislação especial (Art. 9º, Decreto n. 8726, de 27/04/2016), e as organizações da sociedade civil fazem jus, “independentemente de certificação”, a “I - receber doações de empresas, até o limite de 2% (dois por cento) de sua receita bruta; II - receber bens móveis considerados irrecuperáveis, apreendidos, abandonados ou disponíveis, administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil; III - distribuir ou prometer distribuir prêmios, mediante sorteios, vale-brindes, concursos ou operações assemelhadas, com o intuito de arrecadar recursos adicionais destinados à sua manutenção ou custeio” (Art. 84-B da Lei 13.119, introduzido pela Lei nº 13.204, de 2015).
A qualidade dos sujeitos não deixa de ser relevante no estudo das relações de parceria social, inclusive porque a lei e a Constituição conferem a entidades privadas sem fins lucrativos certificadas tratamento favorecido em variadas situações, mas a centralidade assumida pela relação de fomento e parceria social na nova lei pode ser fundamental para superação de uma série de equívocos conceituais que ainda contaminam a doutrina e a legislação. Parece hoje evidente que não se conseguirá melhorar o ambiente regulatório, o controle e a segurança do investimento estatal social ou do investimento privado de fins públicos sem se precisar o objeto a ser regulado, isto é, a relação jurídica de parceria público-social, tema a que tenho dedicado especial atenção desde dezembro do ano passado, a partir da publicação da Lei 13.204/2015, inclusive à luz do direito comparado, mas que não cabe aqui explorar em maior detalhe.
Não é sem caráter simbólico que a Lei 13.204/2015 extinguiu o título da utilidade pública federal e revogou a Lei n. 91/1935 de uma única penada, sem qualquer transição (Art. 9º, I). A insistência da doutrina em abordar quase exclusivamente a estrutura jurídica de cada título ou pessoa jurídica envolvida nas parcerias – ao invés das parcerias mesmas, a própria relação e não os sujeitos da relação – talvez tenha também contribuído para várias das incompreensões acentuadas na década de noventa do século passado, embora com resposta direta na legislação vigente. Em reação a este estado de coisas, a ordem jurídica brasileira parece caminhar na contracorrente desses preconceitos a cada nova produção legislativa, tornando aos poucos obsoletos cartórios públicos concessivos de títulos.
As novas leis parecem indicar uma diretriz precisa: aperfeiçoar a governança das entidades, os seus processos de autocontrole e transparência social, bem como disciplinar com maior precisão todas as etapas do vínculo de parceria, com a redução da discricionariedade e do voluntarismo dos gestores públicos ao longo da relação de fomento, talvez seja o melhor caminho para aprimorar a segurança e emprestar consistência a vínculos de cooperação social. A concessão de títulos não consegue apreender a realidade processual das parcerias. O Poder Público é péssimo controlador e seus cartórios de títulos são pouco mais do que inúteis. Ele precisa da sociedade civil para controlar a si próprio e a suas parcerias sociais, o que se viabiliza apenas com vínculos estruturados, estáveis e detalhadamente planejados e divulgados. Esses vínculos devem parametrizar a avaliação dos resultados do investimento público, o controle mais preciso dos custos envolvidos em cada prestação, eventualmente até melhor até do que o controle de custos das estruturas da própria Administração Pública, quase sempre opacas no tocante ao seu custo de funcionamento. Mas tudo isso não pode originar novos cartórios nem autorizar a imposição de exigências e procedimentos fúteis ou desnecessários. Em parcerias não se deve pensar apenas no que exigir, mas também no que deixar de exigir, valendo aqui o paradigma “menos é mais”. Exigências devem ser relevantes e previsíveis, antecipadamente conhecidas e de fácil apuração, para não sufocar a iniciativa de entidades privadas de colaboração, que devem ser regidas preponderantemente pelo direito privado e responder com presteza a demandas de uma sociedade complexa e carente de respostas ágeis.
Não parece correto dizer que a superação da antiga precariedade dos vínculos de parceria se reduza a “matar os convênios” ou “superar os convênios”, como muitos apregoam. Convênio é categoria jurídica, não se confundindo com um simples instrumento formal. Categoria jurídica prevista na Constituição Federal, como alternativa aos contratos de direito público celebrados entre o Poder Público e particulares, nomeadamente as entidades sem fins lucrativos. É testemunha eloquente disso o Art. 199, § 1º, da Constituição Federal, litterim:
“Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”
A Lei 13.019/2014, alterada pela Lei 13.204/2015, talvez porque não pudesse desconsiderar a expressa previsão dos convênios no Art. 199 da Constituição, preserva o convênio no âmbito do Sistema Único de Saúde, recusando a sua aplicação em todas as demais parcerias sociais sujeitas a sua incidência (Art. 3º, IV). Mas o que são os termos de colaboração, termos de fomento ou acordos de cooperação? São contratos de direito público típicos? São convênios? Entendo que são claramente convênios, nada significando o emprego de outro nomen iuris. Convênios, como categoria jurídica, são vínculos estruturados de parceria, bilaterais ou multilaterais, expressivos da convergência de interesses e da complementariedade de encargos entre os partícipes, destituídos de contraprestação sinalagmática, paritários por natureza e, por isso mesmo, alérgicos à presença de cláusulas exorbitantes e privativas da Administração Pública, essencialmente finalísticos por serem vocacionados a promover projetos e serviços compartilhados de interesse comum dos partícipes. A Lei 13.019/13.204 disciplina formas estáveis e consistentes de convênios, sob a designação de termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação, o que é um avanço, porém isso não retira do vínculo o caráter de negócio jurídico paritário, de natureza administrativa, voltado a incentivar projetos e serviços compartilhados sem contraprestação sinalagmática. Por serem assim, não se confundem com os simples contratos administrativos, ao menos em seu sentido estrito (stricto sensu).
Os convênios público-sociais precisam ser reavaliados, redefinidos como categoria jurídica que são, pois estão previstos em nosso direito positivo em posição paralela aos contratos de direito público, e não podem ser abandonados ou esquecidos no reino da arbitrariedade, unilateralidade e precariedade, como eram percebidos em tempos idos. Não tem sentido que esse modo anacrônico de os conceber sobreviva no âmbito de serviços de saúde, setor onde investimentos vultosos são feitos e relações jurídicas exigem estabilidade, previsibilidade e segurança. Não é crível que a Lei 13.019 reservasse aos serviços de saúde esse destino ingrato ao admitir neste âmbito a celebração de convênios com esse caráter ultrapassado.
Todas essas transformações sumariamente indicadas se refletiram em soluções normativas que tentaram imprimir maior racionalidade e segurança às parcerias sociais, com valorização do controle de resultados e fixação de prazos de controle mais rigorosos, mas ainda muito falta a fazer. ///
PS. Este artigo é fragmento do Prefácio que escrevi para a coletânea “Parcerias com o Terceiro Setor: as inovações da Lei n. 13.019/14”, coordenada pelos eminentes professores Fabrício Motta, Fernando Borges Mânica e Rafael Arruda Oliveira, publicada pela Editora Fórum, Minas Gerais, lançada este mês na cidade de Natal, durante o XXX Congresso Brasileiro de Direito Administrativo. Espero que a divulgação do texto estimule a leitura dessa importante coletânea de estudos, que reúne dezoito trabalhos de notáveis especialistas em direito do terceiro setor.
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