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A Hora e a Vez das Relações Interorgânicas

ANO 2016 NUM 296
Paulo Modesto (BA)
Professor de Direito Administrativo da UFBA. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Ministério Público da Bahia. Diretor-Geral da Revista Brasileira de Direito Público. Editor do site direitodoestado.com.br


09/11/2016 | 6545 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

Órgãos são unidades de atuação jurídica despersonalizadas. Na Lei nº 9.784/1999, define-se corretamente órgão como “unidade de atuação integrante da Administração direta e da estrutura da Administração indireta” (art. 1º, §2º, I) e entidade como “unidade de atuação dotada de personalidade jurídica” (art. 1º, §2º, II). São exemplos de órgãos: os Ministérios, a Câmara dos Deputados, o Senado, a Presidência da República, as Secretarias de Estado, as Prefeituras, as Delegacias Regionais, o Ministério Público, o Tribunal de Contas, os Tribunais de Justiça, isto é, todas as unidades de atuação, administrativas ou não, expressivas da vontade do Estado, destituídas de personalidade jurídica própria.

Os órgãos são compostos por dois elementos: (a) um elemento objetivo e estático - um conjunto de atribuições (círculo de competência ou conjunto institucionalizado de deveres e poderes funcionais) e (b) um elemento subjetivo e dinamizador -  a vontade e capacidade das pessoas físicas que titularizam o órgão. (Ver, com discurso análogo, CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho administrativo. 7. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2002. t. I, p. 251-252). A vontade do titular do órgão, se expedida no campo das atribuições do órgão, é imputada diretamente ao órgão, que assim atua, formando a vontade do Estado. Órgão como simples complexo de atribuições, sem composição volitiva ou subjetiva, confunde-se com a própria previsão abstrata de competências legais, sem qualquer aptidão para exprimir a dinâmica da pessoa jurídica estatal, razão de ser dos órgãos. O titular do órgão não atua para o Estado, atua como Estado: é a voz do Estado em determinado conjunto específico e delimitado de competências, sendo o ato de manifestação do agente o suporte de fato necessário para concretizar dado feixe abstrato de competências. Aliás, a teoria orgânica surgiu exatamente para explicar a posição das pessoas que manifestam a vontade do Estado e, em particular, da Administração Pública. Uma investigação mais aprofundada, no entanto, facilmente revela que o próprio conceito jurídico de órgão não foi pacificado na doutrina jurídica. Para Santamaría Pastor, por exemplo, a teoria dos órgãos teve uma “evolução realmente atormentada”: 

“(...) cabe señalar que, mientras para la doctrina clásica la noción de órgano se refería a la persona física del servidor del Estado, otros autores defendieron que el concepto debía aplicarse no tanto a la persona, cuanto al complejo de funciones unificadas en una figura abstracta, del que la persona física seria mero titular; para otros, en cambio, el complejo de funciones debería designarse , siendo el órgano la unidad formada por las funciones y su titular; otros, finalmente, entienden que el concepto de órgano debería reservarse para aquellas unidades administrativas cuyos titulares están capacitados para emitir declaraciones ad extra, que se imputan como propias a la Administración” (PASTOR, Santamaría. Principios de derecho administrativo general. Madrid: Iustel, 2004. t. I, p. 404).

Se são unidades despersonalizadas, que exteriorizam a pessoa jurídica em que estão encartados, como os órgãos podem expressar vontade individualizada face a órgãos superiores ou de mesma hierarquia, firmando acordos de gestão ou acordos procedimentais? Como são possíveis relações jurídicas interorgânicas de acordo ou convenção, previstas em diversos ordenamentos jurídicos, inclusive no Brasil, se ambos os envolvidos no acordo exprimem e formam a vontade da mesma pessoa jurídica?

dois modos diretos de resolver essa complexa questão.

A primeira abordagem é entender que as relações interorgânicas não existem, são ilusórias ou impossíveis, existindo apenas relações entre agentes, enquanto titulares das respectivas competências. É a posição, coerente com as suas premissas, de mestre Celso Antonio Bandeira De Mello:

“Os órgãos não passam de simples partições internas da pessoa cuja intimidade estrutural integram, isto é, não têm personalidade jurídica. Por isto, as chamadas relações interorgânicas, isto é, entre os órgãos, são, na verdade, relações entre os agentes, enquanto titulares das respectivas competências, os quais, de resto — diga-se de passagem —, têm direito subjetivo ao exercício delas e dever jurídico de expressarem-nas e fazê-las valer, inclusive contra intromissões indevidas de outros órgãos. Em síntese, juridicamente falando, não há, em sentido próprio, relações entre os órgãos, e muito menos entre eles e outras pessoas, visto que, não tendo personalidade, os órgãos não podem ser sujeitos de direitos e obrigações. Na intimidade do Estado, os que se relacionam entre si são os agentes manifestando as respectivas competências (inclusas no campo de atribuições dos respectivos órgãos). Nos vínculos entre Estado e outras pessoas, os que se relacionam são, de um lado, o próprio Estado (atuando por via dos agentes integrados nestas unidades de plexos de competência denominados órgãos) e, de outro, a pessoa que é a contraparte no liame jurídico travado” (Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 140-141; na atual edição, 33ª, de 2016, a mesma redação é mantida, a fls. 144-145).

A segunda orientação distingue a condição do órgão como “centro parcial de imputação” e o Estado como “centro total de imputação”, admitindo a individualidade subjetiva dos órgãos como sujeito-de-direito para alguns efeitos, especialmente internos ou processuais, pois são “pontos de referência de um complexo de normas (e seus respectivos suportes fáticos)”. É o entendimento de Lourival Vilanova (Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 273). Em termos expressivos, sintetiza o mestre pernambucano:

“A divisão de poderes importa numa repartição de funções a órgãos diferentes. Os órgãos se tornam, em centros parciais de imputação, pontos de referência de um complexo de normas (e seus respectivos suportes fácticos). Os órgãos carecem de personalidade própria, a personalidade total do Estado sobrepõe-se-lhes. Mas a cada órgão é distribuído um feixe de atribuições, de faculdades, de deveres e de meios disponíveis, para a execução de suas funções. Esse plexo de direitos/deveres (para dizer numa fórmula abreviada) é competência repartida. Há uma individualidade em cada órgão, uma diferenciação formal e material, indispensável para demarcar as relações jurídicas interorgânicas.

Para Celso Antonio Bandeira de Mello, como referido, relações interorgânicas são relações entre agentes públicos, não entre órgãos.  Por consequência, coerente com esta linha teórica, para o mestre Bandeira de Mello é um autêntico disparate a referência do art. 37, §8º da Constituição Federal brasileira a “contratos” para “ampliação de autonomia” de “órgãos da Administração direta”. Em primeiro lugar, por não reconhecer aos órgãos a possibilidade de gozarem de “autonomia” e, portanto, a possibilidade de ampliá-la; em segundo, por considerar que os limites das competências expressas pelos órgãos não são passíveis de transação, por serem indisponíveis; em terceiro, por faltar personalidade jurídica aos órgãos, razão pela qual não podem ser “sujeitos de direitos e obrigações, vale dizer: pessoa”. (Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 233; na atual edição, 33ª, de 2016, p. 234-235).

Na segunda orientação, expressa aqui por Lourival Vilanova, as relações interorgânicas não apenas são possíveis, elas são rotineiras:

“Cada órgão é sujeito-de-direito, é um centro unitário de imputação, de atribuição de direitos e deveres. É um dado do direito positivo brasileiro que Senado e Câmara são órgãos dotados de subjetividade, que entram compondo outro sujeito-de-direito, que é o Congresso. Há direitos, poderes, deveres de cada um deles. A personificação é um processo técnico, uma construção dogmático-positiva de unificação: sem a unificação personificadora, há dispersão de direitos e deveres e não se demarcam as competências, que pressupõem subjetividade (o ser sujeito-de-direito, ativo e passivo, termo de relações jurídicas).

Recusa-se ao órgão a personalidade. Tem-se a personalidade como exclusiva do Estado. A personificação total, sim. E soberana: o que não impede a repartição da subjetividade entre os órgãos. O que é a unidade da personalidade total do Estado, sob o ponto de vista normativo, é a soberania exclusiva, a supremacia do Estado em face de todos os grupos e em face dos seus órgãos (sobretudo o monarca). Carré de Malberg mostra, em penetrante análise crítica, o significado jurídico e político da soberania do Estado em face da teoria da soberania do rei ou da nação. E, ainda, a despersonalização dos órgãos. Mas seria ir contra os dados do direito positivo não advertir que cada órgão é um centro de imputação, é um sujeito-de-direito, como cada indivíduo-membro da comunidade o é, e cada universalidade de pessoas o é. A referência unitária de direito/deveres é um processo homogêneo, como sempre sustentou Kelsen, no direito privado e no direito público. (...)

A unidade, que requer o ser sujeito-de-direito, não se compromete pelo fato de em seu interior haver relações jurídicas. Relações jurídicas verificam-se entre termos. Os termos da relação são sujeitos, não objetos, coisas, situações objetivas. A relação entre um juiz e outro juiz, entre juiz singular e órgão colegial julgador é relação jurídica, ainda que entre subórgãos de um órgão total — o Poder Judiciário.” (Causalidade e relação no direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 194).

A questão não é rigorosamente nova, pois desde o direito romano se debate sobre a subjetividade ou individualização dos órgãos, afirmando-se a personalidade do Senado e de algumas corporações (ver, por todos, BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1969. t. II, p. 108-115). Nem o debate deve ser resumido, simplesmente, em teses afirmativas e negativas de “personalidade” aos órgãos. O eminente professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, em estudo aprofundado, refere a diversas concepções intermediárias, esgrimidas por autores da maior suposição, que reconhecem aos órgãos ausência de personalidade externa e, ao mesmo tempo, a “quase personalidade” (Gierke), “personalidade imperfeita, limitada a relações internas ou interorgânicas” (Renato Alessi; Salvatore Foderaro), “subjetividade sem personalidade” (De Vallés) ou, ainda, “subjetividade reflexa”(Santi Romano). (idem, ibidem, p. 110-115).

Em termos contemporâneos, destaco a orientação de Vital Moreira. Segundo este autor, “a personalidade jurídica pública sofre muitas gradações. Enquanto que a personalidade colectiva privada é modelada pelo paradigma da personalidade integral da pessoa física, no direito público a personalidade é “por medida”, havendo inúmeros casos de “capacidade parcial” (Teilrechtsfähigkeit). É seu dizer:a organização administrativa oferece numerosos exemplos de organismos administrativos desprovidos de personalidade jurídica mas detentores de certa individualidade e autonomia organizatória. Aliás, a separação entre serviços públicos personalizados e serviços não personalizados não é tão talhante como no direito privado. A doutrina admite a existência de “personalidade jurídica limitada” (AUBY & AUBY, 1991, p. 19). Há serviços sem personalidade que detêm autonomia financeira, ou “individualidade financeira”, na terminologia francesa (conta própria, orçamento próprio, capacidade para realizar despesas). (Cf. MOREIRA, Vital. Administração autónoma e associações públicas. Coimbra: Coimbra Ed. 1997. p. 273)

Para Vital Moreira, os sistemas jurídicos contemporâneos, sem negar a tradição, embora recusando personalidade jurídica aos órgãos, estabeleceram “soluções que constituem sucedâneos da personalidade jurídica”:

“Assim, em matéria patrimonial, podem ter um património afectado, que administram; em matéria financeira, podem ter competência para autorizar despesas e pagamentos, dispor de receitas próprias (preços, taxas, impostos, tributos parafiscais) e orçamento privativo. Desde há muito que entre nós pode haver organismos não personalizados dotados de “autonomia administrativa” ou de “autonomia financeira”, em tudo semelhante ao que ocorre com os serviços públicos personalizados. De igual modo, no contexto de soluções de desconcentração podem tais organismos ser dotados de “autonomia administrativa” stricto sensu, isto é, de capacidade para praticar actos administrativos definitivos e executórios. Não está excluído sequer que tais organismos gozem de autogestão ou de autogoverno, através de eleição dos seus dirigentes pelo seu próprio pessoal ou pelo círculo dos administrados directamente interessados. Está-se então perante um serviço ou organismo autónomo, mas não personalizado. Nesta sede entram, ainda, em alguns países, as chamadas “autoridades administrativas independentes”, lá onde elas não dispõem de personalidade jurídica, como sucede em França. Não assim entre nós, visto que algumas são dotadas de personalidade (como a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários). Pode, pois, suceder que certos organismos ou serviços públicos não personalizados sejam mais autónomos do que outros organismos ou serviços públicos personalizados, que, apesar da personalização, não passem de instrumentos ao serviço da administração matriz de que dependem. Na Itália, Rossi (1990, p. 39) refere que “figuras sem personalidade jurídica podem dispor de ‘capacidade’ de que são desprovidas outras que têm personalidade”, citando a propósito o caso dos “institutos de instrução com personalidade jurídica e cujo pessoal pertence aos quadros do Estado, enquanto que várias administrações desprovidas de personalidade jurídica dispõem de pessoal próprio”.Daqui resulta, pois, uma certa relativização da importância da personalização dos estabelecimentos e serviços públicos. Certos objectivos de individualização, autonomia, autogoverno e mesmo independência não carecem em termos absolutos de personalidade jurídica. (Idem, ibidem, p. 274-275).

Atualmente, os próprios civilistas debatem sobre a identificação tradicional entre os conceitos de pessoa e sujeito de direito. Afinal, o nascituro é sujeito de direito e não é pessoa; a massa falida, o espólio e a herança jacente são sujeitos de direito e não são pessoas. Não é preciso ser pessoa para ser sujeito de direitos e deveres. Em verdade, ser sujeito de direito é ser destinatário de um feixe de normas, atributivas de direitos e deveres, faculdades e obrigações. Os conceitos não se equivalem. Como bem assentou Claudio Henrique Ribeiro da Silva, “enquanto as pessoas possuem aptidão genérica para direitos, deveres e obrigações, os entes despersonalizados possuem tal aptidão limitada tanto pela legislação quanto por sua própria natureza. Estes, portanto, só podem titularizar direitos ou participar de relações jurídicas que o ordenamento expressamente lhes autorize ou que se refiram diretamente à sua natureza e suas finalidades”. (Apontamentos para uma teoria dos entes despersonalizados. Disponível na Internet: cadireito.com.br/artigos/art69.htm. Acesso em: 10.09.2009).  Em síntese, em suas palavras: “pessoa é o sujeito de direitos com aptidão genérica para contrair direitos, deveres e obrigações”.

No mesmo sentido, Marcos Bernardes de Mello, em monografia notável, averbou:

“Sujeito de direito é todo ente, seja grupo de pessoas, sejam universalidades patrimoniais, a que o ordenamento jurídico atribui capacidade jurídica (= capacidade de direito) e que, por isso, detém titularidade de posição como termo, ativo ou passivo, em relação jurídica de direito material (= ser titular de direito ou de dever, de pretensão ou de obrigação, de ação ou de situação de acionado, de exceção ou de situação de excetuado) ou de direito formal (= ser autor, réu, embargante, opoente, assistente ou, apenas, recorrente), ou, mais amplamente, de alguma situação jurídica. Ser sujeito de direito, portanto, é ser titular de uma situação jurídica (lato sensu), seja como termo de relação jurídica, seja como detentor de uma simples posição no mundo jurídico.

Segundo essa concepção:

(a) ser pessoa, física ou jurídica, não constitui condição essencial para ser sujeito de direito; por isso, é de se ter como de todo correta a afirmativa de que há mais sujeitos de direito do que pessoas;

(b) sujeito de direito não é, apenas, quem seja titular de direito, mas, também, quem o seja de dever ou de qualquer situação jurídica.” (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia: 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 125-126).

Órgão não é pessoa, por ser unidade de atribuição despersonalizada, integrante da Administração Pública direta ou indireta (art. 1º, §2º, I, da Lei nº 9.784/99). Mas órgão pode ser sujeito de direito, termo de relação jurídica, parte em relações interorgânicas e parte em relações processuais. Essas relações internas não quebram a unidade de ser do Estado, que se mostra uno nas relações com terceiros, conquanto complexo nas suas relações orgânicas. Não importa o nome que se dê a esse dado do direito positivo: “personalidade formal”, “personalidade judiciária”, “personalidade imperfeita”, “quase personalidade”, “personalidade reflexa”, “subjetividade sem personalidade” são apenas rótulos utilizados para salientar a participação de órgãos em relações jurídicas disciplinadas pelo direito positivo brasileiro e reconhecidas também no direito comparado, seja pelo direito posto, seja pela jurisprudência dos Tribunais.

Há muitos anos, mestre Lafayette Pondé averbava:

“É certo que, entre nós, várias vezes a jurisprudência tem admitido que um órgão tenha capacidade própria, específica, para litigar contra outro órgão, isto é, para manter com este outro órgão uma relação externa, de direito processual. Assim, por exemplo, os Tribunais aceitam possa o Prefeito ir a juízo contra a respectiva Câmara, para obstar a promulgação de lei cujo projeto tenha sido por ele vetado. E o próprio STF, embora em um passo declare que “o Tribunal de Contas não tem personalidade jurídica autônoma e é peça da estrutura orgânica da Administração Federal,” de outro decide que “o mandado de segurança é meio hábil para garantia do direito político em que ocorre uma relação jurídica subjetiva, concretizada no exercício individual de função coletiva”. (PONDÉ, Lafayette. Estudos de direito administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 250.)

Na jurisprudência nacional, de fato, a questão está pacificada:

As edilidades, embora disponham de capacidade processual, ativa e passiva, para defesa de suas prerrogativas institucionais, como órgãos autônomos da administração, não possuem personalidade jurídica, mas, apenas, a judiciária. (STJ, REsp 23.926/SP, DJ, p. 08475, 18.04.1994; Relator Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Segunda Turma)

Ao impetrar o “mandamus” em face da decisão da 15ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo — que, na realidade, é o próprio Poder Legislativo — agiu em nome próprio, nos termos do art. 9º da Constituição Estadual, posto que o ato judicial combatido não afeta tão-somente os direitos dos Srs. Deputados Estaduais, individualmente considerados, mas uma prerrogativa institucional assegurada constitucionalmente ao Poder Legislativo e de fundamental importância para o efetivo exercício de sua atividade-fim. Ressalte-se que o ato impugnado configura, em última análise, inconstitucional ingerência do Poder Judiciário no Poder Legislativo, pois afronta o princípio da independência dos três Poderes.

Na situação examinada não se trata de se enquadrar o fenômeno processual em debate no círculo da substituição processual ou da legitimidade extraordinária. O que há de se investigar é se a Assembléia Legislativa está a defender interesses institucionais próprios e vinculados ao exercício de sua independência e funcionamento, como de fato, “in casu”, está. A ciência processual, em face dos fenômenos contemporâneos que a cercam, tem evoluído a fim de considerar como legitimados para estar em juízo, portanto, com capacidade de ser parte, entes sem personalidade jurídica, quer dizer, possuidores, apenas, de personalidade judiciária. No rol de tais entidades estão, além do condomínio de apartamentos, da massa falida, do espólio, da herança jacente ou vacante e das sociedades sem personalidade própria e legal, todos por disposição de lei, hão de ser incluídos a massa insolvente, o grupo, classe ou categoria de pessoas titulares de direitos coletivos, o PROCON ou órgão oficial do consumidor, o consórcio de automóveis, as Câmaras Municipais, as Assembléias Legislativas, a Câmara dos Deputados, o Poder Judiciário, quando defenderem, exclusivamente, os direitos relativos ao seu funcionamento e prerrogativas. (STJ, ROMS 8967 / SP; DJ, p.00054, 22.03.1999; Relator Ministro Humberto Gomes de Barros; primeira turma)

É verdade que, em tempos relativamente recentes, no leading case “Roboredo” (STF, MS nº 21.239, Relator Min. Sepúlveda Pertence), o Supremo Tribunal Federal reconheceu ao Procurador-Geral da República, enquanto titular de órgão, a legitimação ativa para impetrar mandado de segurança conta ato do Presidente da República ofensivo a autonomia do Ministério Público. Nesta assentada, reconheceu o Tribunal tanto o denominado “direito-função” do titular do órgão, o Procurador-Geral da República, quanto a “capacidade ou personalidade judiciária” do Ministério Público como órgão despersonalizado. Nesta decisão, portanto, as duas teorias referidas se encontraram, em termos que merecem transcrição:

Ementa: Mandado de segurança: legitimação ativa do Procurador-Geral da República para impugnar atos do Presidente da Republica que entende praticados com usurpação de sua própria competência constitucional e ofensivos da autonomia do Ministério Público: análise doutrinária e reafirmação da jurisprudência. 1.A legitimidade ad causam no mandado de segurança pressupõe que o impetrante se afirme titular de um direito subjetivo próprio, violado ou ameaçado por ato de autoridade; no entanto, segundo assentado pela doutrina mais autorizada (cf. Jellinek, Malberg, Duguit, Dabin, Santi Romano), entre os direitos públicos subjetivos, incluem-se os chamados direitos-função, que têm por objeto a posse e o exercício da função pública pelo titular que a detenha, em toda a extensão das competências e prerrogativas que a substantivem: incensurável, pois, a jurisprudência brasileira, quando reconhece a legitimação do titular de uma função pública para requerer segurança contra ato do detentor de outra, tendente a obstar ou usurpar o exercício da integralidade de seus poderes ou competências: a solução negativa importaria em ‘subtrair da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito’. 2. A jurisprudência — com amplo respaldo doutrinário (v.g., Victor Nunes, Meirelles, Buzaid) — tem reconhecido a capacidade ou ‘personalidade judiciária’ de órgãos coletivos não personalizados e a propriedade do mandado de segurança para a defesa do exercício de suas competências e do gozo de suas prerrogativas. 3. Não obstante despido de personalidade jurídica, porque é órgão ou complexo de órgãos estatais, a capacidade ou personalidade judiciária do Ministério lhe é inerente — porque instrumento essencial de sua atuação — e não se pode dissolver na personalidade jurídica do estado, tanto que a ele freqüentemente se contrapõe em juízo; se, para a defesa de suas atribuições finalísticas, os tribunais têm assentado o cabimento do mandado de segurança, este igualmente deve ser posto a serviço da salvaguarda dos predicados da autonomia e da independência do Ministério Público, que constituem, na Constituição, meios necessários ao bom desempenho de suas funções institucionais. 4. Legitimação do Procurador-Geral da República e admissibilidade do mandado de segurança reconhecidas, no caso, por unanimidade de votos. (STF, MS nº 21.239, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 5.6.91, Plenário, DJ, 23.04.93). No mesmo sentido: MS º 26.264, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 21.5.07, Plenário, DJ de 5.10.07.

No entanto, parece inconsistente reconhecer, sem maior disputa ou alarde, a “personalidade judiciária” aos órgãos públicos perante o Poder Judiciário, para a defesa de prerrogativas e interesses específicos (relação externa) e, ao mesmo tempo, recusar o reconhecimento aos órgãos de “personalidade formal” nas relações administrativas interorgânicas (relação interna), dissolvendo-os na personalidade jurídica do Estado, sem qualquer individualidade organizatória.

É intuitivo que, se quisermos emprestar sentido útil ao texto constitucional, especialmente às normas que deferem expressamente autonomia a órgãos despersonalizados (CF, art. 99, caput; 127, §§1º e 2º; 134, §2º), inclusive em relações interorgânicas (CF, art. 37, §8º), devemos reconhecer aos órgãos, embora unidades administrativas despersonalizadas, não apenas a “personalidade judiciária”, mas a condição de sujeitos-de-direito para situações jurídicas específicas, quando a norma legal ou constitucional atribuir-lhes capacidade para atuar diretamente em relações jurídicas com algum grau de individualidade organizatória.

É evidente que a palavra autonomia não é empregada aqui em seu sentido etimológico. A aplicação ortodoxa da palavra autonomia remete diretamente à capacidade de produção de legislação própria, apanágio do poder político. A etimologia da palavra sugere o conceito de dar a si mesmo o próprio direito, o que somente é deferido às pessoas político-administrativas (União, Estados, Municípios, Distrito Federal). Mas a lei, a Constituição, a jurisprudência empregam também a palavra autonomia em sentido menos exigente, para referir o grau de sujeição de unidades administrativas a controles, hierárquicos ou não, outra face do grau de ação independente que gozam na realização de suas competências.

A própria hierarquia administrativa é relação interorgânica, relação jurídica interna, relação entre órgãos e não entre agentes eventuais. Como vínculo jurídico, é moldável pelo direito e maleável, conhecendo graus e atenuações, conforme dispuser a lei. A doutrina tradicional a define como uma ingerência contínua, permanente e implícita do órgão superior em face do órgão inferior. Mas mesmo a doutrina tradicional admitia atenuações a essa subordinação geral, considerando disposições expressas do direito positivo.

No âmbito federal, por exemplo, o art. 172 do Decreto-lei nº 200/67, com a redação dada pelo Decreto-lei nº 900/69, prescreve:

Art. 172. O Poder Executivo assegurará autonomia administrativa e financeira, no grau conveniente aos serviços, institutos e estabelecimentos incumbidos da execução de atividades de pesquisa ou ensino ou de caráter industrial, comercial ou agrícola, que por suas peculiaridades de organização e funcionamento, exijam tratamento diverso do aplicável aos demais órgãos da administração direta, observada sempre a supervisão ministerial.

§1º Os órgãos a que se refere este artigo terão a denominação genérica de Órgãos Autônomos.

§2º Nos casos de concessão de autonomia financeira, fica o Poder Executivo autorizado a instituir fundos especiais de natureza contábil, a cujo crédito se levarão todos os recursos vinculados às atividades do órgão autônomo, orçamentários e extra-orçamentários, inclusive a receita própria.

Essa previsão legal autoriza o Chefe do Poder Executivo a conceder, por decreto, graus de autonomia administrativa a órgãos despersonalizados quando a atividade desenvolvida recomendar “tratamento diverso do aplicável aos demais órgãos da administração direta”. É certo que a palavra autonomia tem o sentido aqui de independência administrativa, ou redução do grau de sujeição do órgão autônomo aos órgãos superiores, sem a eliminação da supervisão ministerial.

Na matéria, mestre Sérgio de Andréa Ferreira averbava:

“Na administração direta, a ossatura central está na hierarquia (inter-relação de coordenação e subordinação) com as atenuações da desconcentração (descentralização burocrática), que gera os órgãos autônomos, dotados do que a legislação chama de autonomia limitada, de índole administrativa, isto é, de decisão, e financeira, compreendendo a arrecadação, gestão e dispêndio de recursos (ver art. 172, e seus §§, do Decreto-lei nº 200/67; Decreto-lei nº 86.212, de 15.7.81), que mitiga a estruturação hierárquica”(Comentários à Constituição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1991. p. 30, 3 v.).

Mas a hierarquia não designa necessariamente um vínculo sujeito a disjunção “tudo ou nada”, mas a graduações complexas, moldáveis pelo direito. São órgãos autônomos da União, vinculados ao Poder Executivo, entre outros, o Departamento da Polícia Federal, o Arquivo Nacional e a Imprensa Oficial. Há além disso “órgãos constitucionais autônomos”, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas, expressamente desligados da hierarquia administrativa e sem personalidade jurídica, que manejam com ampla discricionariedade competências administrativas exclusivas.

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, após definir a hierarquia como “relações de subordinação entre órgãos superiores e inferiores, e com competências concorrentes, dentro do mesmo aparelho administrativo”, explica que exceções podem afastar poderes normalmente atribuídos aos órgãos superiores quando: “a) dispositivo legal, dando competência específica ao inferior, em certa matéria, expressamente, exclui a responsabilidade do superior pela sua emanação; b) dispositivo legal impede recurso da decisão do inferior ao superior, considerada definitiva, relativa a determinada questão, ou entrega a apreciação de recurso de alguns dos atos da sua competência a outro órgão administrativo fora da hierarquia; c) dispositivo legal nega ao superior, expressamente, competência para exercer competência dada ao inferior em assunto específico”.(BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo, op. cit., v. 1, p. 135).

Ora, essas exceções nada mais são do que a atribuição de certo grau de independência, ou autonomia administrativa, ao órgão inferior em face do órgão superior. Não há inconstitucionalidade na lei que assim procede. A lei, porém, pode desde logo excepcionar os poderes do supervisor ou condicionar a exceção a fato jurídico-administrativo posterior, a exemplo dos “contratos de gestão” entre órgãos de uma mesma pessoa administrativa, que foram cognominados no anteprojeto de nova lei de organização administrativa como “contratos de autonomia”, em harmonia perfeita com o disposto no art. 37, §8º, da Lei Maior (ver, com maior desenvolvimento, MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa, in: Modesto, Paulo (org.) Nova Organização Administrativa, 2ª. Ed, Minas Gerais, Ed. Forum, 2010, pp. 115-174). Nada disso é inconstitucional, aberrante no direito comparado ou descabido no direito nacional.

Em França, por exemplo, os “contratos” entre órgãos, para concessão de autonomias, constituem os chamados centros de responsabilidades (“centres de responsabilité”), disciplinados pela circular de 25 janeiro de 1990, de Michel Rocard. Sobre o tema, cf. intervenção de Roger Barbe publicada no livro coletivo Contratos de gestão e a experiência francesa de renovação do setor público, seminário Brasil/França: 29 a 31 de outubro de 1991. Brasília: ENAP, 1993. p. 24-25. Em Portugal, o Ministério da Educação assina contratos de autonomia com as escolas, unidades despersonalizadas, modulando em cada caso a concessão de autonomias previstas antecipadamente por lei, através de acordos regulados inicialmente pelo Decreto-lei nº 115 A/98, disciplinados pelo Decreto-lei nº 75/2008, de 22 de Abril.

É importante superar na doutrina brasileira o mantra segundo o qual “se há hierarquia não pode haver autonomia” ou sua variante popular “órgãos não possuem autonomia”. O direito não se presta a dogmas desta espécie, pois molda as suas próprias noções, seguindo critérios não necessariamente coincidentes com os do mundo físico ou natural.

O direito possui um código próprio de qualificação dos fatos e atos por constituir um sistema específico de comunicação ou linguagem. Embora aberto à informação e a interferências do meio ambiente e dos demais sistemas de comunicação (abertura cognitiva), o direito organiza as suas próprias categorias e noções (autonomia funcional), sendo por isso frequentemente denominado de sistema autopoiético. As significações extrajurídicas apenas adquirem validade após filtragem pelo código interno específico do sistema jurídico, que para muitos é o código legal/ilegal. O direito não é autista, indiferente ao real e as interferências dos demais sistemas, mas tampouco admite a absorção imediata e direta de noções produzidas no meio circundante. Sobre o tema, com ampla fundamentação, vale à pena conferir o clássico TAUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

Há também situações em que a atenuação dos poderes inerentes ao vínculo hierárquico é quase completa no relacionamento entre órgãos, não por força de lei, mas em razão da própria atividade desempenhada por órgãos despersonalizados. É como esclarece, novamente com precisão, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:

“Não há subordinação hierárquica entre os órgãos deliberativos de um colégio, os consultivos e os de controle, no exercício das suas competências, com referência aos órgãos ativos, pela incompatibilidade lógica entre a noção de hierarquia e as funções aí referidas, isto é, de deliberar em colégio, de oferecer parecer sobre dado assunto em que foi consultado, ou efetivar a apuração da responsabilidade de alguém sobre a prática de certo ato. Por seu turno, eles não podem sujeitar os órgãos ativos ao seu poder hierárquico. Igualmente, estão fora do poder hierárquico dos superiores os estudos, pesquisas e preleções de natureza técnica e professoral dos órgãos inferiores. São insuscetíveis de serem levados a efeito segundo ordens dos superiores, salvo se participantes de trabalhos de equipe, em que há um superior ou chefe de natureza técnica ou professoral, orientando-os. Aliás, aí está em jogo, em última análise, a liberdade de pensamento. (BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo, op. cit., v. I, p. 136).

Por isso, no anteprojeto da nova lei de organização, que ajudei a elaborar na honrosa companhia dos professores Almiro do Couto e Silva, Carlos Ari Sundfeld, Floriano de Azevedo Marques Neto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Maria Coeli Simões Pires e Sérgio de Andréa Ferreira, colhe-se a seguinte afirmação:

“Art. 4º A administração direta é organizada com base na hierarquia e na desconcentração, sendo composta por órgãos, sem personalidade jurídica, os quais podem dispor de autonomia, nos termos da Constituição e da lei.”

Na exposição de motivos do anteprojeto a norma proposta, contrária ao mantra dogmático que ainda hoje é verbalizado, tem a sua justificativa resumida em termos claramente convergentes ao exposto neste trabalho:

“Os órgãos da administração direta não possuem personalidade jurídica, mas poderão dispor de autonomia, nos termos da Constituição e da lei. Afasta-se, desse modo, o preconceito ainda presente contra o reconhecimento de graus de autonomia administrativa a órgãos, consideradas situações especiais em que este reconhecimento se impõe. Essa orientação permitirá o aprofundamento da temática das relações interorgânicas, a aplicação adequada do artigo 37, §8º, da Constituição Federal e o tratamento coerente de unidades orgânicas peculiares, a exemplo dos conselhos consultivos, órgãos constitucionais autônomos e órgãos deliberativos com participação social.”

As relações interorgânicas são fundamentais para uma administração coordenada e eficiente. Estudá-las é urgente, pois em períodos de crise é reforçada a necessidade de fazer mais com menos e articular os órgãos de modo coerente e otimizado, intensificando o planejamento e a racionalidade matricial das estruturas, o que não se extrai de vínculos personalíssimos, mas de vínculos associados diretamente a tarefas e responsabilidades públicas. Relações de complementariedade, colaboração, substituição, controle e reavaliação não devem ser improvisadas.

A complexidade da organização administrativa contemporânea exige novos quadros conceituais e novos quadros mentais capazes de pensar a dinâmica e a estática da organização pública. Destaca-se a dinâmica da organização administrativa, que não pode prescindir de relações interorgânicas cada vez mais criativas e arrojadas, como as conferências de serviço (consagradas, por exemplo, no Art. 28 da Lei baiana 12.209/2011), os acordos procedimentais (a exemplo dos termos de ajustamento de condutas e dos termos de ajustamento de gestão), os contratos-programas, os acordos de autonomia e outras formas de concertação administrativa. Para disciplinar e compreender adequadamente as relações interorgânicas, porém, é indispensável o reconhecimento da individualidade organizativa de unidades administrativas despersonalizadas, base última de todos esses vínculos jurídico-administrativos.



Por Paulo Modesto (BA)

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