Maurício Portugal Ribeiro (SP)
O Governo Federal publicou em 13 de setembro de 2016 um documento chamado “Projeto Crescer – construindo um Brasil de oportunidades”.
O documento anuncia 10 diretrizes (“Diretrizes”) sobre a atuação que o Governo Temer pretende ter nos setores de infraestrutura. Nas palavras do documento:
“Após meses de debate técnico entre governo, as agências reguladoras, os órgãos de controle e o mercado, promovemos uma profunda reformulação na forma como o Estado brasileiro lidará com as concessões, reerguendo a segurança jurídica, a estabilidade regulatória, além de modernizar a governança para criar o ambiente propício à concretização dos investimentos privados”.
Como documento que assinala o lançamento de uma “profunda reformulação na forma como o Estado brasileiro lidará com as concessões” e é fruto de “meses de debate” é inevitável comparar o seu lançamento com os lançamentos realizados durante o Governo Dilma dos PIL – Programas de Investimento em Logística I e II, que foram extremamente criticados, inclusive pelo TCU, pela superficialidade dos estudos que embasavam tais lançamentos (Vide o Acórdão do TCU AC-1205-18/15-P, Relator Min. Augusto Nardes, aprovado na sessão de 20/05/2015, especificamente tratando do PIL-Ferrovias).
As Diretrizes anunciadas pelo Governo Temer lamentavelmente padecem da mesma superficialidade, e deixam ver que, apesar da troca de comando do Governo, ainda há na Esplanada dos Ministérios e muito provavelmente também no BNDES incompreensão dos problemas a serem enfrentados se a intenção do Governo for promover a reestruturação necessária nos setores de infraestrutura para acelerar a retomada dos investimentos privados nesses setores.
As únicas Diretrizes que merecem ser anunciadas são as de n⁰ 7 e algumas partes da de n⁰ 9.
A Diretriz n⁰ 7 diz que serão dados pelo menos 100 dias entre a publicação dos editais de licitação e a data para apresentação das propostas pelos participantes da licitação.
E os trechos da Diretriz n⁰ 9 que importam dizem (a) que não haverá financiamento-ponte para as concessões, e (b) que o BNDES, o Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal tomarão risco de crédito dos projetos no período de obras – o que implicaria não exigir fiança corporativa dos acionistas das concessionárias no período das obras iniciais do contrato, adotando-se a modalidade de financiamento de Project Finance Limited/Non Recourse, que é algo extremamente desejável.
Aliás, já defendi em artigo sobre a alocação do risco de financiamento em concessões e PPPs que essas medidas sejam adotadas, tanto a supressão do financiamento ponte (com assinatura do contrato de concessão apenas juntamente com o contrato de financiamento de longo prazo) quanto a realização pelo BNDES de financiamentos na modalidade de Project Finance Limited/Non Recourse (ver RIBEIRO, Mauricio Portugal. Como lidar com o risco de financiamento de concessões e PPPs em períodos de normalidade e de crise. Disponível em http://pt.slideshare.net/portugalribeiro/como-lidar-com-o-risco-de-financiamento-de-concesses-e-ppps-em-perodos-de-normalidade-e-de-crise?related=1)
Mesmo entre essas Diretrizes que, pela sua relevância, mereceriam anúncio, só as duas partes da Diretriz n⁰ 9 é que são novas. A Diretriz n⁰ 7 já havia sido anunciada pelo Governo anterior, no período em que Joaquim Levy era Ministro da Fazenda (Vide comentários à Decisão n⁰ 7 a seguir).
Por fim, mesmo as duas partes da Diretriz n⁰ 9 que merecem elogio, anúncio, e são novas, vão precisar de um enorme esforço para serem cumpridas.
A Diretriz de que não haverá empréstimo-ponte, e de que os contratos de concessão só serão fechados juntamente com os contratos de financiamento de longo prazo tem efeito político adverso: atrasa a assinatura dos contratos de concessão e o início das obras previstas nos contratos de concessão em aproximadamente 1 ano. Não há nada no documento divulgado que deixe claro que o Governo sopesou esse impacto da sua decisão, o que me deixa cético sobre o seu cumprimento.
A Diretriz de fazer o BNDES assumir o risco das obras das concessões – dando a entender que não exigirá a fiança corporativa dos acionistas da concessionária durante o período de investimentos dos projetos – apesar de ser algo relevante e com efeitos positivos enfrenta enorme resistência da área técnica do BNDES, que costuma acreditar que, nos financiamentos estruturados como Project Finance, é indispensável a garantia corporativa dos acionistas da concessionária até o “completion financeiro e técnico” do projeto; isto é, após a finalização das obras principais e o início de receitas em nível suficiente para atingir os covenants financeiros estipulados no contrato de financiamento.
Em relação a esse tema, várias vezes Governos tentaram, sem sucesso, superar essa visão comum na área técnica do BNDES para estimular a realização de Project Finance Non/Limited Recourse. Eu assisti pelo menos duas tentativas nesse sentido, que não tiveram sucesso.
A primeira delas quando Guido Mantega era Presidente do BNDES, Demian Fiocca era Vice-Presidente, e Marcos Barbosa Pinto, na condição de Chefe de Gabinete da Vice-Presidência do BNDES, liderou alteração às regras internas sobre Project Finance. Essas alterações foram posteriormente revertidas, de maneira que a intenção de tornar usual o Project Finance Non/Limited Recourse na atividade do BNDES foi abortada. Posteriormente, na gestão de Luciano Coutinho como Presidente do BNDES houve ampla discussão envolvendo o Ministério da Fazenda, o Ministério dos Transportes, a ANTT, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e a iniciativa privada, representada naquele momento pelo SINICON – Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada, sobre a possibilidade de financiamento na modalidade Project Finance Non/Limited Recourse para os projetos da 3ª Etapa das Concessões de Rodovias Federais. A menção de que os bancos públicos (BNDES, Caixa e Banco do Brasil) poderiam em regime de melhores esforços realizar financiamento sem a garantia corporativa dos acionistas constou da carta na qual esses bancos publicaram as condições de financiamento para as rodovias da 3ª Etapa. Contudo, essa modalidade de financiamento não foi utilizada, porque o BNDES continuou exigindo garantias corporativas dos acionistas das concessionárias ou fianças bancárias como condição para realização do financiamento.
Por isso, é difícil acreditar que esse Governo, no meio da recuperação de uma das maiores crises econômicas pelas quais o país já passou, e premido pelo enorme poder atual dos controladores da Administração Pública, particularmente o TCU e o Ministério Público – que volta e meia tem apontado as suas baionetas para o BNDES – consiga superar essa posição da área técnica do BNDES e convencê-la a estruturar financiamentos, sob a modalidade de Project Finance Non/Limited Recourse, sem a garantia corporativa dos acionistas das concessionárias no período dos investimentos, que implica necessariamente no BNDES assumir mais riscos nos seus financiamentos do que assume habitualmente.
Portanto, para sumarizar, mesmo as únicas Diretrizes que são novas e mereceriam anúncio – a de suprimir os empréstimos-ponte e a do BNDES tomar risco de obras, dispensando, portanto, nesse período as garantias corporativas dos acionistas da concessionária – parecem tão distantes da realidade atual que me deixam cético. Vamos assistir atentamente às próximas movimentações do Governo e verificar se essas duas Diretrizes realmente sairão do papel.
Todas as demais Diretrizes se enquadram em pelo menos uma das seguintes categorias:
Algumas das Diretrizes – particularmente a de n⁰ 8 (se for interpretada para que se licite projetos apenas com licenças prévias ambientais) e a parte inicial da de n⁰ 9 (que dá a entender que os contratos de concessão só serão assinados juntamente com os contratos de financiamento de longo prazo) – implicam aumento do prazo para contratação e implantação das novas concessões e PPPs nos setores de infraestrutura.
Em um Governo que só terá 2 anos e quatro meses, as Diretrizes mencionadas podem ter o impacto de estender o processo que vai da tomada de decisão sobre a realização da concessão de um dado projeto até o início das obras para 4 anos ou mais. É realista achar que essas Diretrizes serão cumpridas? E considerando que o Brasil tem uma ingente necessidade de realizar investimentos para aumento do estoque e da qualidade das suas infraestruturas, será que é de interesse público a adoção de Diretrizes que aumentem dessa forma o processo para realização dos investimentos? O texto do documento é superficial e não menciona os efeitos das Diretrizes nos prazos de contratação das concessões ou no prazo para início dos investimentos privados por meio de contratos de concessão. Mas seria importante o documento mencionar esse tema, até mesmo para dar ciência à sociedade que esse aspecto relevante foi considerado e sopesado para a adoção das Diretrizes.
Acho importante notar que o documento claramente não foi redigido para investidores ou para especialistas. Parece um folder destinado ao público leigo, ou um release para a imprensa. Em um Governo que promete “máximo rigor técnico” (isso consta da Diretriz n⁰ 1) na lida com os problemas do setor de infraestrutura, seria necessário fazer o folder, o release, ser acompanhado de um documento técnico que explique e fundamente as Diretrizes adotadas. A falta de um documento técnico desse tipo reforça a impressão de superficialidade das Diretrizes.
Enfim, o nível de superficialidade das Diretrizes é comparável àquelas anunciadas no Governo Dilma, por ocasião do lançamento dos PILs. E não há sinais no documento que os reais problemas dos setores de infraestrutura serão de fato enfrentados.
E a medida mais relevante e simples nesse momento para melhorar o ambiente regulatório das concessões que seria a viabilização da utilização da arbitragem para solução de quaisquer conflitos entre concessionários, Poder Concedente, e agências reguladoras, não foi sequer mencionada no documento. É importante notar que, apesar de existir previsão legal e em vários contratos federais de concessão da possibilidade de utilização da arbitragem para solução de conflitos, essa possibilidade é atualmente obstada pelo entendimento do TCU de que todas as questões relativas a equilíbrio econômico-financeiro de concessões se caracterizam como direito indisponível. Basta um artigo de lei para esclarecer esse tema, tão urgente para dar certeza a investidores que haverá meio para solução dos conflitos tecnicamente qualificado, imparcial e apto a tomar a decisão nos prazos necessários. Mas, o Governo não parece ter entendido a importância disso.
P.S. Queria agradecer a Gabriela Engler e André Bogossian pelas diversas sugestões de conteúdo e forma que fizeram no texto desse artigo. Gostaria, além disso, de agradecer a Antonio Bastos pela revisão de texto e ajuda na inclusão das referências. Os eventuais erros e omissões são exclusivamente de minha responsabilidade.
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