Maria Paula Dallari Bucci (SP)
I. Método: utilidade do quadro de referência para análise jurídica de políticas públicas
A abordagem que relaciona Direito e Políticas Públicas enfrenta uma dificuldade particular, relativa à identificação ou isolamento do objeto de estudo. Essa dificuldade pode ser ilustrada com um exemplo comumente referido no tema do controle judicial das políticas públicas. Ao tentar recortar o programa de ação governamental - expressão empregada aqui como sinônimo de política pública - que será objeto do controle ou da análise, o estudioso terá dificuldade em destacá-lo do emaranhado de atos normativos, decisões executivas e medidas operacionais nos quais se enovela (v. meu O conceito de política pública em direito, in Políticas Públicas: Reflexões sobre o Conceito Jurídico, Saraiva, 2006). Essa operação de identificar os elementos específicos do programa de ação e isolá-lo do entorno é problemática, entre outras coisas, porque as normas que o conformam e sustentam, na maioria das vezes, não são exclusivas daquele programa. Essas compreendem, em geral, além de uma lei ou decreto principal de organização, “camadas” de disposições, veiculadas em todo tipo de suporte jurídico (portarias, instruções ou outras leis e decretos), que disciplinam matérias de cunho geral (pessoal, orçamento etc.) que também incidem sobre aquele programa.
O quadro de referência que se apresenta a seguir tem o singelo propósito de apoiar a demarcação mais clara dos limites do programa de ação. Para isso, aponta os elementos principais que permitem compreender sua organização interna, a partir da base jurídica, identificando as ligações com aspectos políticos, econômicos e de gestão mais importantes.
O quadro de referência foi concebido como ferramenta de apoio didático, visando proporcionar certa uniformidade de visões entre o pesquisador que conduz o estudo e aqueles que o leem ou com ele colaboram.
Trata-se de uma contribuição para um método estruturado da abordagem jurídica das políticas públicas. O método, conforme desenvolvi no capítulo 4 de meu Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas (Saraiva, 2013), é condição imprescindível para que o trabalho de múltiplos estudiosos, individualmente ou em colaboração, convirja para a geração de massa crítica sobre o assunto. Sem isso, as possibilidades analíticas sobre a dimensão jurídica das políticas públicas serão sempre fragmentadas e limitadas. Isso afetará, em consequência, também as condições para a intervenção nas políticas públicas por meio do direito, que permanecerão igualmente tópicas, isoladas e sem visão sistemática. Em outras palavras, o método está na base tanto do conhecimento como da ação organizada por meio do direito. Por essas razões, é condição imprescindível para o desenvolvimento de uma tecnologia jurídica das políticas públicas. (v. Diogo Coutinho. O Direito nas Políticas Públicas. In: Política Pública como Campo Disciplinar, Eduardo Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria, orgs., Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Unesp, Ed. Fiocruz, 2013, pp. 181-200)
II. Visão jurídico-institucional. A ação governamental em escala ampla
O quadro de referência que adiante se propõe dá ênfase ao aspecto institucional das políticas públicas. Evitando alongar excessivamente as citações para uma ferramenta que se pretende simples de utilizar, esse qualificativo, em síntese, diz respeito a mecanismos de agregação de preferências. Isso é muito relevante, em políticas públicas, dada sua característica primordial de programas de ação governamental em escala ampla. O alcance de uma política pública é, por definição e necessariamente, supraindividual, envolvendo uma coletividade determinada, com demandas e expectativas comuns.
Ellen Immergut justifica o desenvolvimento do chamado novo institucionalismo como resposta, na ciência política do pós-guerra, à abordagem behaviorista, que procurava compreender as decisões políticas com base nos comportamentos dos indivíduos. Para o institucionalismo, o comportamento ocorre no contexto de instituições e só nele pode ser compreendido. Instituições são mecanismos pelos quais as decisões individuais são agregadas e combinadas em decisões coletivas. Esses mecanismos de agregação são procedimentos e regras que, na verdade, não somam, mas remodelam os interesses. Dessa forma, criam um viés decisório.
Essa visão, segundo Immergut, remonta a uma tradição presente na filosofia política do séc. XVIII, quando se desenharam as instituições políticas da modernidade. Immergut refere-se mais especificamente à obra de Rousseau, cuja célebre crítica sobre a propriedade como fonte e origem das desigualdades entre os homens, não um postulado universal, mas produto da sociedade, pode ser estendida para outros domínios da convivência humana: as leis e os costumes moldaram as preferências do homem e institucionalizaram o poder e o privilégio (Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, 1755). Posteriormente, ao considerar o contrato social, Rousseau destaca que o todo é mais do que a soma das partes: “a vontade geral é a soma das diferenças”. (Do Contrato Social, Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1997).
Na ciência política contemporânea, diversos autores referem-se às instituições - cujo traço mais marcante, além da agregação da ação, é a permanência social-, utilizando elementos próprios do universo jurídico. Entre muitos que poderiam ilustrar esse espaço de conexão entre as duas disciplinas, cite-se Elinor Ostrom (Institutional Rational Choice: An Assessment of the Institutional Analysis and Development Framework. In Theories of the Policy Process, Paul Sabatier, ed., Colorado: Westview Press, 2007, pp. 21-64), que aprofunda as premissas metodológicas do modelo de análise IAD (Institutional Analysis and Development Framework) de modo inspirador para a estruturação de um método jurídico nesse campo. Sobre as instituições, Ostrom afirma, em resumo, que elas se expressam em regras e procedimentos. Embora reconheça a possibilidade de entidades de tipo organizacional, tais como o Congresso, uma empresa, um partido político ou uma família, aponta que a maior relevância da figura institucional reside numa segunda possibilidade, justamente a das regras, normas e estratégias adotadas por indivíduos operando com as instituições ou através delas.
Na definição de Ostrom, regras são prescrições compartilhadas (deve, não deve, pode; must, must not ou may) mutuamente compreendidas e previsivelmente aplicadas em situações particulares por agentes responsáveis por monitorar as condutas e impor sanções. Normas são prescrições compartilhadas que tendem a ser aplicadas pelos participantes por si mesmos, por meio de ônus (costs) e induções impostos interna e externamente. Finalmente, estratégias são planos regularizados que os indivíduos fazem no âmbito da estrutura de incentivos produzida pelas regras, normas e expectativas de comportamento semelhante de outros, numa situação afetada por condições físicas e materiais relevantes. (Ostrom, ob. cit., p. 23)
Diferentemente da visão jurídica mais tradicional, o aspecto do cumprimento das normas e regras é decisivo para essa concepção. Só se pode falar em instituições, em sentido próprio, quando há estabilização do direito efetivamente aplicado.
No campo jurídico, o institucionalismo jurídico clássico de Santi Romano, importante autor da formação do direito público no início do séc. XX, cunha a seguinte definição: “as instituições são as normas e o que põe as normas”, destacando, na visão institucional, a noção de poder organizado, que se realiza exatamente pelo estabelecimento da regra jurídica. Outro institucionalista do mesmo período, que prestou grande contribuição para a estruturação jurídica do Estado e da Administração Pública, Maurice Hauriou, trabalha com a questão central do poder criador do direito. (cf. meu Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas, cap. 3).
A conexão estruturada entre os elementos jurídicos e políticos do programa de ação permite integrar a visão das normas e procedimentos aos seus componentes políticos e sociais vitais, quebrando o isolamento metodológico que foi imposto ao direito com a consagração do positivismo jurídico.
Feita essa breve apresentação dos fundamentos institucionais da abordagem que se propõe, sumaria-se a locução jurídico-institucional como qualificativo do quadro de referência, indicando destaque aos seguintes elementos:
a) a organização do programa de ação, isto é, quais os elementos da política e como se relacionam;
b) os papéis institucionais, ou, em outras palavras, quem faz o quê. Essa observação procura abstrair as subjetividades (sem, todavia, omiti-las), considerando que o que direito faz, ao estruturar a política pública, é despersonalizar a iniciativa. A partir da institucionalização, ou da formalização na regra jurídica, o funcionamento do programa passa a depender, não mais da vontade pessoal de quem tomou a decisão de institui-lo e sim, do cumprimento dos deveres e obrigações previstos nas normas, para as finalidades objeto do programa;
c) o movimento, a finalidade pretendida, no sentido político e social, aspecto mais abstrato da aplicação do institucionalismo ao estudo das políticas públicas, que diz respeito ao sucesso da agregação de interesses operada com a criação e implementação do programa.
III. Elementos do quadro de referência
O quadro de referência sintetiza, numa perspectiva de racionalidade ideal, o caráter sistemático que articula os elementos mais importantes da política pública, a seguir destacados.
1) Nome oficial do programa de ação
O nome do programa é o que lhe confere identidade, permitindo isolá-lo do entorno. Contemporaneamente, o nome é associado à marca política do programa, sua identificação político-partidária. Embora seja, talvez, uma “licença teórica” relacionar esse componente da marca política, hoje muito ligado ao marketing político, a um dos corifeus do institucionalismo do séc. XX, Hauriou, a noção de ideia diretriz, concebida por esse autor, empresta um poderoso sentido explicativo à noção da marca, na medida em que descreve a comunicação entre as expectativas individuais e a iniciativa que resulta do poder legitimado pela coletividade.
2) Gestão governamental
Apontar a gestão governamental que criou ou implementou o programa permite compreender seu sentido à luz do espectro político-partidário. Isso, além de conferir maior profundidade à análise, aproxima o estudioso do material não jurídico, permitindo visualizar aspectos que a consideração isolada das normas e variáveis exclusivamente jurídicas limita sobremaneira.
Em complemento, devem ser indicadas eventuais fontes de inspiração em modelos de ação externos, tais como os adotados por agências da Organização das Nações Unidas, Banco Mundial etc.
3) Base normativa
Apontar a norma que institui o programa e as disposições mais importantes específicas para o seu funcionamento. A norma principal, cujo suporte pode ser de hierarquia variada (em geral lei ordinária ou decreto, embora possa ser também inferior ou superior) se caracteriza, pelo menos idealmente, por conferir caráter sistemático ao programa, articulando seus diversos elementos e, em especial, os vários focos de competência dos quais depende o seu funcionamento.
Em complemento, pode-se indicar outras normas não exclusivas do programa, nos quais se apoia o seu funcionamento.
Conforme se advertiu no início, essa operação não é simples. Não basta arrolar um grande número de normas com incidência sobre a criação ou implementação do programa. É importante buscar o núcleo de sentido do programa, amparado no conjunto normativo. Cabe aos intérpretes --- o “autêntico”, no caso dos instituidores do programa, ou os externos --- identificar de que forma isso se dá.
4) Desenho jurídico-institucional
A identificação da base normativa do programa, referida no item 3, é mais viável quando se consegue descrever a organização do programa, numa visão macro. O primeiro passo é identificar os principais agentes institucionais com competências, atribuições e responsabilidades sobre o funcionamento do programa, tanto no interior do aparelho governamental, como fora dele. Em seguida, descrevem-se os papéis institucionais de cada um (itens 5 e 6) e os mecanismos de articulação da ação (item 7), isto é, como está prevista a atuação, em conjunto, desses vários agentes. A descrição, nesse ponto, deve ser não valorativa, de modo que a percepção mais objetiva permita, posteriormente, a apreciação crítica.
A visão comparativa, tanto histórica, no sentido evolutivo, em relação ao contexto de programas de ação existentes para finalidades semelhantes, como em vista de experiências similares adotadas em outros países, em geral é inspiradora para a descrição ou elaboração do desenho institucional.
5) Agentes governamentais
Identificar, a partir da base normativa, as competências, atribuições e responsabilidades reservadas a cada agente governamental, tanto os principais, como os secundários, isto é, aqueles que administrarão efeitos da conduta dos primeiros. Essa identificação é a base para a compreensão tanto da estratégia de implantação do programa (item 10), como de seu funcionamento, seja o idealizado, seja o efetivo, e seus aspectos críticos (itens 11 e 12).
6) Agentes não governamentais
Identificar os agentes situados fora do aparelho governamental que executam aspectos da política, em geral mediante financiamento ou indução de comportamentos. A compreensão de quem são os principais interessados, quais são os protagonistas e possíveis antagonistas do programa, as forças sociais que explicitamente (ou de forma menos visível) o sustentam confere maior profundidade à análise.
7) Mecanismos jurídicos de articulação
Há diversos mecanismos possíveis de articulação ou coordenação da ação dos vários agentes, tanto no plano intra-governamental, como na relação dos agentes governamentais com os não governamentais. No Brasil, a forma federativa e a repartição de competências, especialmente a definição constitucional das competências comuns, tem influência determinante sobre os programas de alcance nacional. Os modos pelos quais se dá a articulação da ação dos vários agentes depende, em grande medida, de mecanismos jurídicos, de gestão e de informação.
8) Escala e público-alvo
Conforme dito acima, a escala ampla é um traço definidor das políticas públicas. Nesse sentido, a análise do programa deve escrutinar o alcance esperado com a implementação do programa, dimensionando, para o intérprete, a magnitude pretendida, mediante comparação com programas similares ou ordens de grandeza que possam servir de referência. Essa análise poderá ser balizada por programas de outros países, programas mais antigos etc.. Esses parâmetros permitem qualificar os dados quantitativos sobre beneficiários diretos e indiretos, em geral disponíveis em bancos de dados oficiais, a partir do cotejo com informações de outras procedências, que permitirão a necessária perspectiva crítica sobre o programa (item 12).
9) Dimensão econômico-financeira do programa
Os recursos financeiros vinculados ao programa são um dado da maior relevância, que os estudiosos do direito em geral têm dificuldade em considerar. Do ponto de vista da alocação orçamentária, essa inversão de recursos pode se dar na forma de investimento, custeio ou pessoal. A última, em regra não é exclusiva do programa, pois exceto na hipótese de pessoal especializado (professores, médicos etc.), os recursos humanos na Administração Pública geralmente atendem a diversos serviços e programas.
Ainda assim, na descrição da política essa informação, pela sua relevância, deve ser buscada, seja nos quadros da leis orçamentárias, seja nos anexos do projeto de lei que cria o programa ou em outras fontes disponíveis. O dimensionamento do programa mencionado no item 8 ganha outra expressão, se puder ser comparado quando ao quesito do financiamento.
10) Estratégia de implantação
Nesse ponto, o objetivo é descrever, com base nas fontes oficiais, qual é o movimento pretendido ou esperado pelo gestor público que protagoniza a instituição do programa. A qualidade do planejamento se revelará neste item, posto que dela exsurgirá naturalmente a estratégia. Em sentido contrário, da deficiência de planejamento resultará a obscuridade na compreensão da estratégia, pelo analista, e as limitações de adesão e legitimação, no plano da ação concreta.
Uma informação menos evidente, mas bastante relevante, diz respeito às reações esperadas dos demais agentes e principalmente dos possíveis antagonistas do programa. Ou, quando se trata de uma transformação significativa, como se projeta a reação conservadora, que poderá ser superada, eventualmente, em etapas. Nesse aspecto, o direito tem um grande potencial de conformar o processo de transição, ao definir a situação das relações jurídicas em curso, aquilo que se conhece como direito intertemporal.
11) Funcionamento efetivo do programa
Compreendido o desenho ideal do programa (itens 4 a 10), poderá o analista confrontá-lo com o seu funcionamento real, numa visão panorâmica. Neste aspecto é importante contar com documentos externos aos elementos oficiais do programa, visões de outros agentes, distintos dos agentes governamentais envolvidos; em outras palavras, basear-se em fontes diversas da governamental. Dados comparativos com programas similares também são bastante úteis, neste quesito.
Programas muito recentes apresentam dificuldade de análise, neste quesito, visto que as informações disponíveis em geral limitam-se às governamentais, que raramente apresentarão aspectos críticos de seu funcionamento. Numa administração democrática e transparente, pode-se admitir que isso ocorra menos por interesse em escamotear problemas do que por uma característica própria da ação governamental, de prosseguir processando as dificuldades (com ou sem sucesso), justificando eventual fracasso com a consideração do processo de implantação como ainda inacabado.
12) Aspectos críticos do desenho jurídico-institucional
Por fim, da visão panorâmica mencionada no item 11 poderão ser destacados para análise em detalhe os elementos jurídicos presentes na estruturação da política, capazes de explicar, pelo menos em parte, os aspectos críticos da sua implementação.
IV. Considerações finais
Esses são os elementos do quadro de referência. Se são os mais pertinentes ou úteis para apoiar o trabalho do estudioso do direito ou do ativista que se dedica às políticas públicas, as aplicações dirão.
Em tempos de redes e trabalho colaborativo, o mais plausível é que o uso do quadro de referência (este ou outros que venham a ser construídos), produza uma evolução na percepção de como se analisam e como se organizam juridicamente as políticas públicas, induzindo a produção de uma nova cultura na gestão pública, em que a presença do direito seja mais integrada e prospectiva. /////
*Uma primeira versão deste artigo foi publicada na obra coletiva O Direito na Fronteira das Políticas Públicas (Gianpaolo Poggio Smanio, Patrícia Tuma Bertolin, Patrícia Cristina Brasil, orgs.). São Paulo: Páginas e Letras Editora e Gráfica, 2015. Ele resulta da parceria acadêmica com Clarice Seixas Duarte, a quem registro meu agradecimento.