Maria Paula Dallari Bucci (SP)
No Brasil, a cada crise política colocamos em questão as instituições, embora sempre contornando o problema principal, a representação política. Usando o chavão “crise de representação” é como se nos referíssemos a uma doença crônica, um mal incurável. Isso é curioso, já que para várias outras mazelas, nossa imaginação institucional é capaz de enxergar alternativas, nem sempre viáveis, mas caminhos diversos do já estabelecido. É o que parece acontecer com o semipresidencialismo, ventilado quando se evidenciou a falta de legitimidade (e legalidade) do impeachment, reconhecendo-se ao mesmo tempo as imensas dificuldades concretamente enfrentadas pelo governo eleito.
Luís Roberto Barroso, em 2006, então apenas professor da UERJ, publicara um artigo, no espírito de contribuir para a melhoria das instituições políticas no Brasil, que saíam da crise do chamado “mensalão” (A reforma política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil, conferir: http://goo.gl/E4a6nx). Combinando análise jurídica a uma postura propositiva, o texto era o poderíamos qualificar de “documento de ação”, examinando os caminhos para um tríplice movimento, que resultasse na reforma dos sistemas de governo, eleitoral e partidário. Para a primeira, a sugestão é que o Brasil passasse a adotar o semipresidencialismo, sistema vigente na França e em Portugal, combinando elementos do presidencialismo e do parlamentarismo. Quanto à reforma eleitoral, indicava-se a adoção do voto distrital misto como fator de barateamento e simplificação das campanhas eleitorais. Finalmente, quanto à reforma partidária, recomendava-se a implantação da cláusula de barreira, para enfrentar a fragmentação partidária.
Retomando o assunto, em recente palestra na Universidade de Harvard (Reforma política no Brasil: os consensos possíveis e o caminho do meio, confira: http://goo.gl/F6DMDH), o hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal reitera a proposição inicial, atualizando os dados com as informações do debate travado pela Câmara Federal, em especial na apreciação da PEC 352/2013, e destacando a difícil conciliação entre as posições dos maiores partidos do país, PT, PSDB e PMDB. O destaque que confere à proibição de coligação para eleições proporcionais e à cláusula de desempenho como os poucos pontos de consenso entre os grandes partidos reforça a abordagem pragmática do segundo texto, mais atento à viabilidade de aprovação das propostas e à questão da governabilidade do que a melhoras dificilmente alcançáveis no horizonte político próximo.
Sobre o tema do semipresidencialismo, resume-se a posição original, justificada como forma de combater o autoritarismo e a instabilidade institucional: “Nesse novo arranjo, o presidente continuaria a ser eleito por voto direto e conservaria uma série de poderes políticos importantes, embora limitados, incluindo: a indicação do Primeiro-Ministro, que dependeria de aprovação do Legislativo; a indicação de ministros dos tribunais superiores, dos comandantes das Forças Armadas e dos embaixadores; a condução das relações diplomáticas; a iniciativa de projetos de leis, em meio a outras competências. O primeiro-ministro, por sua vez, seria o chefe de governo e da administração pública, atuando no varejo das disputas políticas e nos embates do avanço social. O Presidente da República, com mandato fixo, seria o garantidor da continuidade e da estabilidade institucional. Já o primeiro-ministro, em caso de perda do suporte político, poderia ser substituído, sem abalo para as instituições.”
À Revista Época (O presidencialismo é uma usina de problemas, 25/1/2016), indagado sobre as condições para a adoção do semipresidencialismo, considerando a rejeição do parlamentarismo em plebiscitos anteriores, Barroso defende que a eleição direta do presidente da República seja mantida, por ter se tornado um símbolo da democracia e até uma cláusula pétrea. Não obstante, com o semipresidencialismo seria atenuada a concentração de poderes no presidente. “O povo brasileiro nunca se manifestou sobre isso. Ainda assim, caso viesse a ser aprovada a mudança do modelo, o tema deveria, sim, ser levado a consulta popular direta, para não haver dúvida quanto a sua legitimidade”.
A menção à consulta popular é importante, mas na história brasileira ela tem falado contra a possibilidade de restrição ao presidencialismo, como demonstram os plebiscitos de 1963 e 1993. O primeiro ocorria num momento de crise, em que a fórmula parlamentarista fora adotada como atenuante do cerceamento político do Presidente João Goulart, que depois culminaria na sua deposição pelos militares, no golpe de 1964. O segundo, diferentemente, consistia na retomada do debate constitucional, em momento de calmaria institucional, em cumprimento a disposição expressa do art. 2o do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988. O povo brasileiro também não se comoveu.
Sobre o debate na Constituinte, Rubens Ricúpero relatou em entrevista ao Canal Livre a visão de que muitas matérias no texto da Constituição revelam uma inclinação forte que havia no sentido do parlamentarismo e que ele só não teria sido aprovado por falta de visão política da bancada de São Paulo, recalcitrante em negociar com o Presidente Sarney a extensão de seu mandato presidencial, de 4 para 5 anos.
Difícil confirmar essa versão, diante do que parece ser uma opção consciente no país pela condução centralizada da política, sob a liderança de um Presidente da República. Os componentes institucionais que cercam essa opção, em especial a debilidade do Poder Legislativo e das formas de representação política, mais do que uma disfuncionalidade acidental, parecem ser elementos que integram essa tradição. Sem que eles sejam alterados, dificilmente será viável o semipresidencialismo.
O problema central é que o semipresidencialismo, como variante do parlamentarismo, é uma versão mitigada desse (um parlamentarismo com o Presidente fortalecido) e não, como se pensa, o seu contrário, isto é, um presidencialismo com o Presidente enfraquecido ou contido.
Como tudo na institucionalidade da democracia, as oportunidades históricas foram criando as condições para a inovação. As referências mais importantes de semipresidencialismo são a França e Portugal. Ambos definiram essa fórmula original como resposta a crises políticas. No caso da França, a Constituição da 5a República, de 1958, mediante a demanda de De Gaule de poderes ampliados, para o enfrentamento da crise da Argélia. No caso de Portugal, da Constituição pós-Revolução dos Cravos, de 1976, no fim do período autoritário (Salazar/Mario Soares), também enfrentando uma crise colonial.
Importa destacar, no entanto, que a matriz política das duas experiências, ao contrário do que ocorreria no Brasil, está no sistema parlamentarista. O semipresidencialismo, nesses casos, foi adotado como uma forma de estabelecimento de um novo equilíbrio político pelo fortalecimento de um dos pólos, o Presidente, e não o enfraquecimento do outro. Diríamos, com Montesquieu, que só o poder (mais poder) controla o poder. Esse, na minha opinião, é o ponto frágil da proposta de adoção do semipresidencialismo no Brasil: acreditar na possibilidade de enfraquecer um poder presidencial onde tudo o mais no ambiente político é fragmentado e fraco. Qual seria o poder capaz de construir e sustentar esse novo desenho institucional?
O modelo parlamentarista, como se sabe, é caracterizado pela dualidade Chefe de Estado/Chefe de Governo. Há uma divisão de atribuições políticas, recaindo sobre o Chefe de Estado a representação formal e sobre o Chefe de Governo a condução da vida do país.
No semipresidencialismo, o Presidente tem sua própria legitimação, em geral escolhido em eleição direta. Isso o distingue do parlamentarismo clássico, consubstanciado em monarquias constitucionais chefiadas por figuras que, sem blague, são verdadeiras “rainhas da Inglaterra”, isto é, detêm poder mais simbólico, de identidade política nacional, do que propriamente papel de coordenação da vida do país, o que só ocorre em momentos excepcionais de crise (como, por exemplo, no caso espanhol, em vista da imensa dificuldade para a formação do governo, após mais de 6 meses das eleições).
Embora esquematicamente se diga que cabe ao Chefe de Governo a operação da rotina da administração do país, na prática seu papel é muito maior. Isso porque o elemento-chave do parlamentarismo é a responsabilidade política do Chefe de Governo (Primeiro-Ministro) perante o Parlamento. Atua aquilo que se denomina de mecanismo de confiança entre o Gabinete e o Parlamento. Mais uma vez, a história recente nos fornece os exemplos, com a renúncia imediata de David Cameron após o malogro da estratégia imaginada com o plebiscito que levou à decisão de retirada da Grã-Bretanha da União Europeia (Brexit).
Em Portugal, a Constituição define o Governo como elo de ligação entre Parlamento e Executivo, órgão de condução da política geral do país e órgão superior da administração pública. O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente, em função dos resultados eleitorais (“cabeça de lista”) e há um programa de governo vinculante, com base no qual o Governo passa a ser responsável perante o Presidente e a Assembléia. A rejeição do programa de governo, assim como a não aprovação de moção de confiança sobre assunto relevante de interesse nacional, ou a aprovação de moção de censura por maioria absoluta dos deputados disparam os mecanismos de demissão do governo.
Não resta dúvida, portanto, quanto à intensa participação da Assembleia Nacional nas decisões sobre a gestão dos assuntos do país. A dualidade governo/oposição é expressa na própria Constituição, que prevê a participação dos partidos políticos, de acordo com a sua representatividade eleitoral. Também é reconhecido às minorias o direito de oposição democrática; os partidos representados na Assembleia que não façam parte do governo têm direito de serem informados regular e diretamente por ele sobre o andamento dos principais assuntos de interesse público.
Com isso, como questões para o semipresidencialismo no Brasil cabe perguntar se a crise e seu potencial transformador seriam suficientes, neste caso, para suplantar as deficiências políticas que têm minado o funcionamento do sistema presidencialista e também se apresentariam como dificuldades significativas no semipresidencialismo. Esse último não dispensa melhoras estruturais no sistema político, em especial, a valorização da representação político-partidária, para o fortalecimento do Poder Legislativo.
A Constituição de 1988, como observa Fabiano dos Santos, optou pela dispersão do poder, com a adoção do federalismo e do multipartidarismo. Isso resultou no aumento dos custos políticos de cada Presidente para a composição de sua base de sustentação parlamentar, configurando o “presidencialismo de coalizão” de Sérgio Abranches, ou, na variante de Marcos Nobre, o “peemedebização e megacoalizão”, exacerbada recentemente, segundo o próprio cientista político, pela rebeldia dos deputados integrantes do “baixo centrão” contra as hierarquias partidárias que até certo momento provinham o sistema representativo de um mínimo de coordenação.
Em vista disso, sem o revigoramento do Poder Legislativo e sem a revalorização da política seria muito difícil viabilizar também o semipresidencialismo.