Marcio Cammarosano (SP)
“A democracia pode ser definida como o sistema de regras que permitem a instauração e desenvolvimento de uma convivência pacífica.” (Norberto Bobbio, O Tempo da Memória, p. 156, apud Celso Lafer na sua apresentação do livro A Era dos Direitos, do referido autor italiano, nova ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2004).
Nesta última obra mencionada, há um ensaio de Bobbio com o título “As razões da Tolerância” (pp. 186 a 199), que todos deveríamos ler e reler periodicamente, especialmente em tempos de crise, de turbulência política, de recrudescimento das paixões político-partidárias, a reclamar análise e ponderação racional, tanto quanto possível equidistante das partes em conflito e no limiar da beligerância. E, com efeito, é este cenário com que nos deparamos hoje no Brasil.
Pois bem.
Uma das possíveis definições de democracia “é a que põe em particular evidência a substituição das técnicas da força pelas técnicas da persuasão como meio de resolver conflitos”, mesmo por que “a verdade tem muitas faces”. (op. cit., pp. 191 e 192). E, no que diz respeito à tolerância, diz Bobbio:
“O núcleo da ideia de tolerância é o reconhecimento do igual direito de conviver, que é reconhecido a doutrinas opostas, bem como o reconhecimento, por parte de quem se considera depositário da verdade, do direito ao erro, pelo menos do direito ao erro de boa-fé. A exigência da tolerância nasce no momento em que se toma consciência da irredutibilidade das opiniões e da necessidade de encontrar um modus vivendi (uma regra puramente formal, uma regra do jogo), que permita que todas as opiniões se expressem. Ou a tolerância, ou a perseguição: tertium non datur” (Bobbio, op. cit., p.195).
Inspirado nessas reflexões de um dos maiores jusfilósofos da segunda metade do século XX, vejo, com muita apreensão e tristeza, o grau de intolerância que têm revelado, de parte a parte, muitos dos que são a favor ou contra o governo da Presidente Dilma, dos partidos políticos que lhe tem dado sustentação, e dos que lhe fazem oposição, advogando inclusive o impeachment da mesma.
O pluralismo político, as divergências de opiniões, acusações e defesas mediante utilização dos instrumentos jurídicos consubstanciados na Constituição da República e das leis em geral, acabam desaguando, não raras vezes, na maior radicalização do discurso político, que se manifesta por diversas formas, até mesmo ganhando as ruas.
No Congresso Nacional, nos meios de comunicação, nas universidades, no recesso dos lares, no bar da esquina, nos juízos e tribunais, não há lugar em que não esteja na ordem do dia questões concernentes à crise que se abate sobre o Brasil, como a crise política, econômica, social e moral. E o desencontro é tamanho que não faltam aqueles – bem poucos, é verdade – que até negam que estejamos em crise, como se num país com mais de 204.000.000 (duzentos e quatro milhões) de habitantes não houvesse sempre pessoas suficientes, para lotar supermercados e assegurar elevada ocupação de hotéis, navios e aeronaves.
Chegamos a tal ponto que brasileiros que se manifestam, divergindo politicamente, estão se colocando de forma arbitrária e generalizada, em dois grandes polos antagônicos, não como meros adversários, mas como inimigos: os situacionistas, rotulados pelos oposicionistas como protagonistas, adeptos ou defensores da incompetência governamental e do populismo demagógico, irresponsável e corrupto, a pretexto da defesa de políticas de inclusão social, fim justificador da utilização de quaisquer meios para a conquista e manutenção do poder, para dele também se servirem; os oposicionistas, rotulados pelos situacionistas como conservadores derrotados politicamente que não sabem perder, reacionários elitistas incomodados com a inclusão social de milhões de brasileiros, fascistas arautos do neo-liberalismo, da globalização, a serviço do capital, da privataria saqueadora do patrimônio nacional, e golpistas de ocasião desejosos de, ao arrepio da ordem jurídica, assumir o poder a qualquer custo e a qualquer preço.
Acaso não há, entre situacionistas e oposicionistas, quem esteja a acreditar, imbuído de boa-fé, de que a orientação política que professe seja realmente a mais adequada para a solução dos problemas que estamos a enfrentar no plano econômico e social?
Será que todos os situacionistas são corruptos ou complacentes com a corrupção, considerando-a meio justificável para a manutenção do poder, a ser utilizado para viabilizar políticas de inclusão social? Será que todos os oposicionistas são defensores de um neoliberalismo incompatível com o resgate da histórica divida social para com parcela significativa do povo brasileiro, que mais recentemente tem saído do estado de miserabilidade a que até pouco tempo estava condenada? Será que para todos os situacionistas é impensável ou inadmissível, mesmo num Estado Democrático, a rotatividade dos partidos políticos no poder, já que a vitória da oposição só poderia significar retrocesso intolerável em todos os sentidos, ou que os opositores do atual governo estão, em verdade, incomodados com a ascensão econômico-social dos que vem ou vinham sendo resgatados da pobreza extrema?
Será que os oposicionistas que mais cedo ou mais tarde chegarem ao poder irão implantar, ao arrepio da Constituição e das leis, e com aprovação do Congresso Nacional, uma política detrimentosa aos interesses do Brasil e dos brasileiros, privatizando e desnacionalizando despudoradamente o patrimônio nacional, em beneficio exclusivo das chamadas elites, das multinacionais e do sistema financeiro internacional? Será que vão deixar, pura e simplesmente, como conservadores que são, de dar continuidade, em termos sustentáveis, às políticas de inclusão social?
Se essas terríveis acusações e suspeitas contra ambas as falanges, asssacadas reciprocamente, e por não poucos brasileiros tidos como procedentes, forem em larga medida a expressão da verdade, então preparêmo-nos para o pior, pois o que nos espera é o caos, a convulsão social, o golpe ou a guerra civil, espreitando-nos sorrateiramente o fantasma de uma nova – Deus nos livre e guarde – ditadura civil militarmente sustentada, ou ditadura militar civilmente respaldada.
Todavia, creio eu que apenas uma parcela minoritária e ruidosa de partidários e não partidários do atual governo pode fazer jus aos atributos desqualificadores apontados por ambas as facções, reciprocamente. Por essa razão creio também que ainda é possível que a maioria dos contrários que se opõem com um mínimo de respeito, cada qual aberto, e de boa-fé, ao diálogo, confiantes em que as divergências que os apartam dizem respeito aos meios a serem utilizados e não aos fins últimos de interesse público que os animam, saibam conter ou desestimular a intolerância, o desrespeito, a violência física ou verbal.
Por outro lado, saibamos compreender que numa República não há intocáveis. Todos são responsáveis por seus atos, observado o devido processo legal, sem expedientes artificiosos que, sob aparência daquele, não passem de embuste.
Para preservar a nossa incipiente democracia – uma construção difícil e perene, que não termina jamais -, só pelo caminho da não violência, do funcionamento escorreito das nossas instituições governamentais, e não governamentais, como os Poderes constituídos, o Ministério Público, a Policia Judiciária, a Advocacia pública e privada, os órgãos de controle, a sociedade civil organizada, a imprensa livre, as universidades, que têm suas virtudes a preponderar sobre suas decantadas mazelas.
Creio que vale a este passo proclamar: ainda que imperfeitas as instituições democráticas que temos, inconcebível uma democracia sem elas.
Que sirva de exemplo a liberdade de imprensa, assegurada constitucionalmente (arts. 5º, IV, V, IX; 220 a 224), que muitas vezes enseja sim abusos, mas passíveis de medidas de responsabilização cabíveis nas hipóteses previstas no ordenamento jurídico. E mesmo quando as reparações devidas não sejam consideradas suficientes, propor o que? A volta da censura?
Afinal, sem liberdade não há democracia. E enquanto houver liberdade e sistemas de responsabilização nos casos de abusos, nos termos da lei, há esperança.
Façamos, pois, cumprir a Constituição da República e as leis com ela conforme, porque fora do direito não há salvação.
Cabe também anotar que o que mais contribui, entre os que estejam de boa-fé – com os de má-fé o diálogo é impossível -, para o acirramento de ânimos, para a intolerância, é a recíproca desconfiança no sentido de que as facções que se digladiam consideram que os opositores têm, em rigor, um objetivo primordial: a permanência ou a conquista do poder, a qualquer custo, e por quaisquer meios, para dele se servirem e, secundariamente, desenvolverem alguma atuação em prol do que seja, real ou supostamente, de interesse público, na busca de alguma legitimação.
Legitimação não raras vezes obtida mediante decisões ou discursos demagógico-populistas insustentáveis, especialmente às vésperas de eleições. Embustes que em rigor, ilaqueando a boa-fé de eleitores desavisados, fraudando substancialmente a vontade do povo, traindo sua confiança com propagandas eleitorais enganosas, deveriam levar à invalidação dos pleitos assim viciados.
E quando, abusando-se da ingenuidade política de parcela significativa do povo brasileiro, faz-se uso, conjugadamente, do discurso demagógico-populista insustentável, da propaganda enganosa, da mentira, do sofisma, do abuso do poder político e econômico, e da corrupção, coloca-se em sério risco as conquistas democráticas.
Chegamos a um grau intolerável de praticas nefastas em setores da administração pública, e nas relações desta com a iniciativa privada, que tem que ser revertido.
Como é atual Rui, o águia de Haia, (MATOS, Miguel. Migalhas de Rui Barbosa. 1ª ed. São Paulo: Migalhas, 2010. v. I. aforismo nº 676) ao dizer:
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
Diante, pois, dessas rápidas e despretensiosas considerações, e convicto de que uma social democracia é a menos imperfeita dentre as concepções ideológicas, que tem como pano de fundo a necessidade de fazer conciliar os ideais de liberdade e igualdade, algumas outras anotações se fazem imperiosas.
O ideal de liberdade, em todos os sentidos, assim como o de igualdade, devem ser conjugados consoante uma fórmula dotada de certa flexibilidade que possa instrumentalizar, em face das circunstâncias concretas, o respeito à dignidade de cada pessoa humana, na sua individualidade como ser inconfundível com qualquer outro da sua espécie, único, portanto diferente, em graus e aspectos variados, de todos os demais.
Mas os ideais de liberdade e de igualdade também devem ser conjugados de sorte a assegurar, sem embargo da liberdade de cada indivíduo, a justiça social consistente no respeito à dignidade de todas as pessoas, e de cada qual, na sua dimensão enquanto partícipes de comunidades organizadas, de coletividades com efetivo acesso a bens materiais e culturais a ser promovido, na medida do necessário, pelo próprio Estado.
Que o Estado crie as condições necessárias ao pleno desenvolvimento de cada pessoa, assegurando-lhe ser protagonista do seu próprio destino, bem como as condições para o desenvolvimento sustentável, intervindo diretamente sempre que indispensável, e fomentando, sempre que possível oportuno e conveniente. Pessoa alguma, numa democracia social, pode ser relegada à própria sorte, não obstante os cuidados devidos, evitando-se, por exemplo, políticas meramente assistencialistas que, sem outras complementares, sejam indutoras de comportamentos de conveniente indolência e acomodamento, ou ainda indutoras de vícios e má formação de caráter.
Políticas de estimulo à produção de bens e serviços, numa economia de mercado, devem conviver com as intervenções estatais no domínio econômico e social, como instrumentos de calibragem das exigências de liberdade e igualdade, como de resto prescreve a Constituição da República de 88.
E para que o princípio da maioria, indissociável do conceito de democracia, frutifique em termos de autenticidade da representação popular, sem a qual não há legitimidade, são impostergáveis medidas que possibilitem a cada cidadão, num ambiente de pluralismo político, o exercício do direito ao voto de forma consciente, e não como algo que tenha preço. Afinal, regimes democráticos são os que só se viabilizam efetivamente como tal à medida em que os cidadãos, eleitores e candidatos, forem adquirindo cultura política, nos estabelecimentos de ensino, no convívio familiar, no trabalho e no seio de movimentos organizados, pelos meios de comunicação social e pelo aprendizado no exercício contínuo e periódico do direito de voto e participação em outros eventos de consulta pública, com ou sem caráter deliberativo.
Viver democraticamente se aprende exercitando a democracia, de forma racional e criticamente. E a prevalência da vontade da maioria há de encontrar limites em direitos fundamentais das minorias.
Já no que concerne aos exercentes de mandato político, cumpre que preservem, ao logo do exercício do mandato, a legitimidade obtida para efeito de sua investidura no cargo. O mandato não pode ser exercido como se fora um cheque em branco, como se a manifestação inicial de confiança do eleitor se presuma respeitada e mantida até o término da legislatura, seja qual for o comportamento do eleito. Mandatos legitimamente outorgados também não podem subsistir diante de comprovado exercício eivado de graves distorções, por ação ou omissão do seu titular.
Enquanto não se institui mecanismos de recall, possibilitando periódica manifestação do eleitorado que possa implicar perda do mandato, algum outro mecanismo há de haver, constitucionalmente sustentável, que possa ensejar a extinção do mandato do agente político que comprovadamente, no exercício daquele, tiver atuado em grave descompasso com as promessas que, durante a campanha, seduziram o eleitor. E isto porque, ou foram promessas sabidamente impossíveis de cumprir, e portanto falsas ou demagógicas, ou foram promessas, a final inviáveis, porque formuladas por quem, à época das eleições, sequer tinha conhecimento da realidade das coisas. Nesses casos configura-se o que se tem denominado “estelionato eleitoral”.
Sem possibilidade alguma de responsabilização política daquele que, no exercício do mandato, trai a vontade do eleitor, que confiou na viabilidade de efetivação de promessas fundamentais de campanha, e no seu escorreito cumprimento, a democracia não passará de quimera, ainda que ao final do mandato o povo seja convocado para julgar, no novo pleito, a atuação dos que preteritamente tenha elegido. Isso é, em rigor, muito pouco, como lamentavelmente a historia deste país tem demonstrado. E é muito pouco porque se aquele que exerceu um mandato em desacordo com as promessas que o fizeram eleger-se, não mais se candidatar, sequer será possível ao povo, com relação a ele, inflingir-lhe derrota pessoal, mesmo não elegendo o candidato por aquele apoiado.
A traição ao eleitor, sem o recall, ou outro mecanismo de responsabilização do eleito no curso do mandato, será praticamente irreparável. Trilhar esse novo caminho, por certo não será fácil. Mas a grande virtude reside exatamente na superação dos desafios mais difíceis, com inteligência, criatividade e vontade política. Essa responsabilidade é de todos nós, que não podemos nos contentar com as exigências de ética na política, em face mesmo das divergências dos juízos quanto às projeções concretas dos valores e virtudes que consideramos devam prevalecer.
Impõe-se precisar, com a objetividade possível, os comportamentos que se espera de eleitores e eleitos, de administrados e administradores, prescrevendo as sanções cabíveis, inclusive para além daquelas já contempladas no nosso ordenamento jurídico, sempre passível de aprimoramento. Afinal, a predeterminação formal do direito, a que se refere Miguel Reale (Filosofia do Direito, 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1910. p. 709), dotado ele de coercibilidade, é que proporciona em grau maior, segurança quanto às consequências possíveis do nosso comportamento, bem como desejável eficácia. Já exortações morais apenas, uma vez desatendidas, implicam apenas reprovação das consciências.
Não que não sejam importantes as exortações morais, como apelos a ética na política. É que, traduzindo-se geralmente em pautas muito abertas, desprovidas de rigorosa tipicidade, acabam sendo insuficientes para induzir comportamentos específicos. Já as normas jurídicas, em razões mesmo do princípio da legalidade, são mais precisas e, assim, mais adequadas como técnica regulatória de comportamentos.
Exigências apenas de ordem moral, não positivadas juridicamente, são mais passíveis de não observância, casos em que difundem-se sentimentos de frustração e desalento.
Cumpre-nos, portanto, inspirados uma vez mais em Reale, reverter a tendência de perda de confiança nas soluções jurídico-normativas, com o crescente apelo a outras ordens normativas do comportamento, estas sim frequentemente ignoradas pela ausência da coercibilidade que caracteriza o ordenamento jurídico.