Marcelo Harger (SC)
1- INTRODUÇÃO
Há muito se questiona a objetividade da ciência. Embora o ideal de toda disciplina com pretensões científicas seja a objetividade, essa encontra sérias dificuldades devido aos condicionamentos ideológicos do cientista. Stephen Jay Gould, no livro intitulado “A Falsa Medida do Homem” demonstra claramente esse aspecto. Ao analisar a evolução do preconceito racial, mostra que as concepções científicas variaram de acordo com o momento histórico. Momentos nos quais predominava a igualdade eram propícios à criação de teorias científicas que justificavam a igualdade entre as raças. Os momentos de racismo desenfreado, por sua vez, geravam teorias científicas para fundamentá-lo.
Isso ocorre porque a objetividade da ciência é, na realidade, um mito. Pretender que a ciência somente se realize adequadamente quando os cientistas encaram a realidade como ela é, significa esquecer o que realmente acontece. Os cientistas são seres humanos, inseridos em um contexto histórico, com certa formação cultural e esses fatos influenciam na condução de suas pesquisas. O conceito tradicional de ciência, que a concebe como uma prática objetiva, é incorreto. Grande parte dos progressos é decorrente da intuição do cientista.
Outras vezes as mudanças que os conceitos científicos sofrem ao longo do tempo decorrem de uma alteração do contexto social, e não da aproximação de uma verdade absoluta. Deve-se ter a consciência dessa realidade e, talvez, até procurar a elaboração de um conceito novo de ciência.
As dificuldades, que já são grandes no campo das ciências naturais, tornam-se ainda maiores no caso das ciências humanas que são essencialmente atividades sociais. São atividades culturais, pois são criadas pelo homem e decorrem de certo ambiente sócio-cultural. Estudam o homem, que assim como as partículas subatômicas, reage ao ser observado. A reação, contudo, é diferente. Melhor seria dizer que interage. Ele fala, pensa e muda de opinião, e as mudanças de conduta do objeto de estudo acabam por afetar o cientista. A interação entre o pesquisador e o objeto pesquisado é tamanha que a base cultural da qual parte o pesquisador pode ser subvertida pela própria pesquisa. O pesquisador ao mesmo tempo em que estuda pode servir de meio para alterar o ambiente estudado.
Essa realidade, que ocorre em todas as ciências sociais, também se repete no campo da ciência do direito. Há três razões básicas para isso. A primeira é que o objeto de estudo é algo criado pelo homem por intermédio da linguagem, que nunca é precisa. A segunda é que a imprecisão da linguagem possibilita que o cientista acrescente a sua própria visão de mundo ao conteúdo do texto durante o ato de interpretar. Permite que a ideologia do cientista do direito afete a descrição e a compreensão do objeto de seu estudo. É por isso que se diz que o jurista, ao mesmo tempo em que estuda o seu objeto, o cria e altera. Finalmente, a terceira é que o direito é uma prática eminentemente ideológica.
É certo que ciência e ideologia são tradicionalmente considerados conceitos antagônicos. A ciência representaria a realidade e a ideologia o irreal. Essa contraposição, atualmente, tem sido criticada. Em primeiro lugar, porque a ciência nem sempre descreve a realidade. Em segundo lugar, porque conforme já se demonstrou, o próprio cientista é condicionado por fatores ideológicos. O que se deve procurar, em nossos tempos, é identificar até onde vão os condicionamentos ideológicos dos cientistas para desmascará-los.
O jurista, ao conduzir suas pesquisas, está condicionado por um conjunto de circunstâncias históricas e culturais que vão influenciar o resultado de seu trabalho. A visão particular do mundo de cada jurista acaba por influenciar a maneira como é feita a análise de seu objeto de estudo.
Isso nunca foi tão evidente quanto no atual momento brasileiro, no qual se discute o impeachment da presidente Dilma Roussef. Alguns estudiosos continuam a defender o que sempre defenderam. Outros mudam entendimentos há muito firmados. Outros fazem contorcionismos para adaptar suas teorias àquilo que desejam comprovar no momento atual.
As diferentes opções, contudo, são “menos científicas e mais ideológicas”. Aqueles cujas teorias servem para justificar o que querem (seja ou não o impeachment) defendem suas teorias com ardor. Por outro lado, aqueles cujas teorias servem para justificar um entendimento diverso ao que possuem em relação ao impeachment, alteram o entendimento já firmado ou procuram adaptá-lo para defender sua ideologia.
Não se está aqui a criticar a opção desses juristas. O que se está a dizer é que o momento político atual possibilitou uma clara percepção de que as diversas concepções existentes no direito público apenas refletem opções ideológicas dos intérpretes. A presente conjuntura apenas evidenciou aquilo que antes ocorria de modo latente.
Objetiva-se, por intermédio do presente trabalho, impor limites à influência da ideologia do intérprete por ocasião da interpretação do direito. É certo que o termo ideologia pode apresentar diversos sentidos e isso, conforme se verá, é um problema corriqueiro de linguagem. Para efeitos do presente trabalho, contudo, utilizaremos essa palavra para designar um conjunto de ideias, valores, crenças que exercem influência sobre as pessoas, seja no modo como agem seja na visão que possuem do mundo.
As normas jurídicas são expressas por intermédio da linguagem. Por isso, para que se possa estudar a relação entre a ideologia do intérprete e o significado que ele atribui às normas por ele interpretadas, necessário se faz tecer algumas considerações sobre esse tema.
A linguagem é a mais rica das formas de comunicação entre os homens. Por seu intermédio, se consegue transmitir de uma maneira mais detalhada as idéias que se quer expressar. Usamos a linguagem com diversos propósitos. Por exemplo, podemos utilizá-la com um propósito descritivo, fornecendo informações a respeito do estado de certas coisas. Podemos, também, utilizar as palavras como veículo para expressar nossos sentimentos ou para dirigir a conduta de outras pessoas. Finalmente, podemos falar em um uso operativo da linguagem. Apesar dessas diferentes funções, essa “ferramenta” comunicacional nem sempre funciona bem. Diversos problemas podem atrapalhar a comunicação.
Um deles é a carga emotiva que certas palavras despertam. As emoções que provocam podem atrapalhar a comunicação. Freqüentemente, tenta-se eliminar essa carga emotiva ao explicitar o sentido em que se usa certo termo.
Outras vezes as palavras possuem sentidos diversos. O significado de um termo depende do contexto linguístico e da situação fática em que é empregado. Na maioria das vezes, o contexto dissipa toda e qualquer possibilidade de confusão nos significados. Há, todavia, casos em que a dúvida subsiste, apesar dos esforços feitos para eliminá-la.
É verdade que há certos preceitos, nos quais há um núcleo onde os intérpretes, independentemente de sua formação, acabam por concordar quanto ao seu significado. É o caso, por exemplo, dos prazos processuais. Sabe-se que o prazo para a apelação é de 15 dias. Podem, nesse caso, até ocorrer divergências a respeito do início ou término da contagem do prazo, mas um ponto não se discute: são quinze dias. Esses casos, no entanto, são a exceção, sendo a regra a possibilidade de várias leituras de um mesmo dispositivo legal.
Devido ao fato de o Direito se expressar por intermédio da linguagem, ele apresenta, portanto, os problemas que já foram referidos. A relação entre o Direito e a linguagem é essencial, não no sentido anteriormente exposto, mas na acepção de que o Direito não existe sem a linguagem, assim como não existe pensamento fora da linguagem.
Sendo a linguagem um conjunto de instrumentos, mediante o qual o pensamento se torna concreto, são consentidas ao intérprete somente as possibilidades compatíveis com o sistema lingüístico. Excluem-se, por outro lado, as alternativas incompatíveis com esse sistema. Cada concretização linguística assume um sentido específico que passa a condicionar o resultado do ato interpretativo.
3 – INTERPRETAÇÃO E IDEOLOGIA
Diante de uma certa situação, podemos adotar uma atitude conservadora ou uma atitude modificadora. Podemos concordar com essa situação ou dela discordar, de acordo com nossas motivações íntimas. A atitude de concordância reflete um estado de coisas que se aprovam. Por outro lado, a atitude modificadora reflete um estado de coisas desagradáveis. Isso também ocorre com o jurista durante o ato de interpretar o Direito. Quando concorda com o status quo, opta por uma atitude conservadora e, na discordância, adota uma posição modificadora.
As leis refletem um turbulento universo axiológico. O sistema jurídico procura congelar ao menos uma parte desse universo, no intuito de conferir segurança jurídica. Os métodos de interpretação e teorias jurídicas podem ser divididos entre os que procuram favorecer esse congelamento normativo e os que procuram promover a sua mobilidade.
Esses métodos de interpretação atuam à disposição do intérprete como instrumento de manifestação de sua ideologia, enquanto atuando na prática do Direito. O caráter instrumental deles se evidencia pelo fato de que os resultados interpretativos variam de acordo com o método que se utilize.
Essa situação se verificou claramente por ocasião da divulgação de gravações de conversas entre a presidente Dilma Roussef e o ex-presidente Lula. Aqueles que discordaram da divulgação das gravações fizeram uma interpretação literal da legislação, concluindo que é proibido dar publicidade a gravações feitas em decorrência de ordem judicial. Os que são favoráveis à publicação das gravações utilizaram o princípio da publicidade para dizer que os detentores de cargos públicos, em apertada síntese, “perdem” uma parcela de sua privacidade.
4 - A FUNÇÃO RETÓRICA DOS MÉTODOS JURÍDICOS E SEUS LIMITES
Vê-se, diante do que até aqui se expôs, que por detrás de métodos, aparentemente objetivos, escondem-se concepções ideológicas e políticas.
Nas chamadas ciências naturais, a adoção de um novo método implica a renúncia ao método anterior. Na atividade jurídica isso não ocorre. Mesmo que um novo método de interpretação surja como decorrência de um novo contexto histórico, o método anterior não é descartado. Passa a ser menos utilizado, é verdade, mas sempre resta ao intérprete a possibilidade de utilizá-lo novamente ou até simultaneamente ao novo.
Os métodos jurídicos de interpretação nada mais são do que canais pelos quais são escoadas as concepções axiológicas dos intérpretes. São instrumentos de retórica, que adotam uma forma aparentemente neutra, para possibilitar uma “objetivação” das concepções valorativas. Conforme o método que se utilize, pode-se trocar a linha de decisão, extraindo-se da mesma norma legal diferentes conseqüências jurídicas. Assim, o intérprete adota o método propício ao alcance do significado que ele previamente pretende conferir à norma. Não há uma extração do significado da norma, mas uma justificação de um entendimento prévio a respeito desse significado. O intérprete, quando tem uma teoria, escolhe os itens que nela se encaixam e desconsidera o restante.
Em que pese, também possa ser permeado por influências ideológicas, é a partir do método gramatical que se pode estabelecer limites à utilização ideológica dos demais métodos interpretativos.
Faz-se essa afirmação, porque o objeto de estudo do direito é a lei, e ela se revela por intermédio de palavras. Embora a escolha desse método para estabelecer limites seja também uma opção ideológica, é preciso esclarecer que trata-se de escolha feita pela maioria do corpo social.
É que em um Estado de Direito, é justo dizer que a sociedade em sua grande maioria concorda com a idéia de que os homens devem ser governados pelas leis. Trata-se de um pressuposto essencial da vida em sociedade.
As leis, no entanto, nada mais são do que textos, e somente se pode compreendê-las partindo de uma análise gramatical. Isso não significa dizer que os demais métodos não tenham importância. O ato de interpretar exige na maioria das vezes a conjugação de métodos interpretativos.
Significa, no entanto, dizer que o texto legal não pode ser desprezado durante o ato interpretativo, pois o intérprete tem a sua atividade limitada pelo texto. Ele não legisla, apenas interpreta.
Embora não se possa esquecer que a linguagem possui uma textura aberta, é possível conferir certa precisão aos termos utilizados pelas leis.
Um primeiro elemento a servir de limitação para o intérprete é a integralidade do texto legal e da frase na qual o termo se insere, pois o intérprete não pode desprezar as palavras utilizadas pelo legislador porque há uma máxima interpretativa por intermédio da qual se afirma que não se pode presumir que na lei existam palavras inúteis.
Perceber que não se pode desprezar termos utilizados pelo legislador, contudo, não é suficiente para resolver todos os problemas postos pela linguagem, pois, ela apresenta as imprecisões já demonstradas anteriormente.
Reconhecer a existência de problemas semânticos, contudo, não significa que todos os conceitos utilizados sejam sempre imprecisos. É que a linguagem não seria utilizável se não houvesse convenções acerca de quais rótulos colocar nas coisas. Há um uso comum ou convencional das palavras. É imperativo ter em mente que, na realidade, o grau de indeterminação varia. Há, por isso, conceitos que são inequívocos e outros cuja equivocidade dificilmente pode ser sanada.
É assim que se pode contrapor os conceitos jurídicos determinados aos conceitos jurídicos indeterminados. Os primeiros são aqueles que delimitam a realidade à qual se referem de maneira precisa e inequívoca ou ao menos possibilitam que possa ser precisada diante do contexto em que se encontram.
Já os segundos, são dotados de um grau de indeterminação bastante elevado, o que dificulta a apreensão de seu conteúdo. Apesar de procurarem delimitar a realidade, eles não o conseguem, a não ser dentro de limites bastante amplos, pois não podem ser quantificados ou determinados rigorosamente. Isso, todavia, não significa que não haja limites para o seu campo significativo. A esse respeito, deve-se ter em mente que todo conceito indeterminado é finito, uma vez que as palavras têm um conteúdo mínimo, sem o qual a comunicação seria impossível. Isso ocorre porque “a palavra é um signo, e um signo supõe um significado. Se não houvesse significado algum recognoscível, não haveria palavra, haveria um ruído”. Os termos utilizados pela lei, portanto, possuem um mínimo de conteúdo semântico que limita as conclusões do intérprete.
Esse é o segundo limite que a linguagem impõe ao intérprete. É um limite imposto pelos termos utilizados, que coloca muros ao trabalho do intérprete, pois este somente pode trabalhar e buscar o sentido da norma dentro da prisão que lhe foi imposta.
Os termos utilizados pelo legislador não podem ser desprezados pelo intérprete porque representam escolhas feitas pelo legislador. Negar conteúdo às palavras postas na lei ou dar-lhes uma carga significativa que está além daquela prevista pelo léxico equivale a legislar, e isso é vedado ao intérprete.
O terceiro limite que se impõe consiste nos usos comuns da linguagem em determinado país em determinado momento histórico. É que os termos variam de acordo com o tempo e o espaço.
Finalmente, o quarto limite que a linguagem impõe consiste na compreensão sistemática do texto normativo. O texto normativo não pode ser interpretado como se fosse composto de termos ou frases isoladas. Assim como qualquer texto, somente pode ser interpretado quando se tiver em mente o contexto em que está inserido, pois a tarefa interpretativa pressupõe o trabalho de integrar a parte com o todo.
A razão para a existência desses limites encontra-se na própria razão de ser do direito, pois ele é uma linguagem e foi feito para ser compreendido. O afastamento da “letra da lei” impediria que as pessoas conhecessem os próprios direitos e os limites impostos pelo ordenamento jurídico. Em síntese, a ausência deles tornaria o sistema jurídico inútil.
5- CONCLUSÕES
1- A objetividade científica é sempre afetada pela ideologia do intérprete.
2- A imprecisão da linguagem ocasiona diversos problemas na elaboração de um discurso científico objetivo.
3- O direito não existe sem a linguagem e sofre os problemas que esta apresenta.
4- As ciências humanas e naturais não estão livres de influências ideológicas. Essas influências são ainda mais fortes no caso específico do Direito.
5- Os métodos de interpretação refletem uma opção ideológica do intérprete.
6- O método gramatical de interpretação pode ser utilizado para limitar a influência ideológica por ocasião da utilização dos demais métodos.
7- A escolha do método gramatical como limite é, por si só, ideológica, mas reflete a ideologia predominante em um Estado de Direito, que utiliza as leis como forma de condução da sociedade. Sendo as leis expressas por intermédio de um texto o resultado da interpretação não pode dele se afastar, pois não cabe ao intérprete legislar, mas sim criar dentro da margem de liberdade que lhe foi imposta pela lei.
8- Há quatro limites impostos pela linguagem à utilização dos métodos de interpretação: a) a integralidade do texto e da frase; b) o campo semântico dos termos; c) o uso comum da linguagem em certo país em determinado momento histórico; d) a compreensão contextual da norma.