Marcelo Harger (SC)
Em 18 de dezembro de 2015 entrou em vigor a medida provisória no 703 que altera a lei no 12.846/2013, conhecida como lei anticorrupção.
A grande inovação da referida medida provisória é a melhor disciplina do acordo de leniência, que é um instituto cuja ratio iuris parte do pressuposto de que a sanção não é o único meio para o atendimento do interesse público. Uma solução consensual pode atendê-lo de modo mais rápido do que uma via litigiosa.
Esse é o espírito a nortear a edição da medida provisória que ora se comenta, pois, de um modo geral, as normas por ela introduzidas destinam-se a facilitar a celebração do referido acordo. O modo escolhido para favorecer a celebração do ajuste foi assegurar à empresa a possibilidade de continuar a existir. Há, portanto, uma clara adoção do “espírito” da Administração Pública Consensual e de Resultados. Trata-se de uma verdadeira mudança de paradigma, pois, até pouco tempo atrás, seria impensável imaginar que a Administração Pública pudesse negociar com um infrator responsável pela prática de atos de corrupção. Havia apenas um caminho: apurar a infração e aplicar as sanções correspondentes. A complexidade das infrações e a dificuldade na produção de provas, no entanto, demonstraram a baixa efetividade da escolha desse caminho.
Buscou-se uma concepção utilitarista, que permite a negociação com o infrator. Em síntese, o infrator repara o dano e colabora com a punição de outros infratores em troca da redução ou extinção das penalidades que lhe seriam aplicáveis. Esse parece ser um bom caminho e é partindo desse pressuposto que se fará a análise da medida provisória nº 703 de 18 de dezembro de 2015.
O primeiro aspecto positivo da referida medida provisória é a revogação do inciso I do §1º do art. 16 da lei anticorrupção cuja redação era a seguinte:
Art. 16
...
§ 1o O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;
...
O dispositivo revogado permitia duas interpretações. A primeira é de que, quando concorressem diversas empresas para a prática de uma infração, somente a primeira a manifestar o interesse em cooperar para a apuração do ilícito teria direito a celebrar o acordo de leniência. A segunda é de que, para fazer jus à possibilidade de celebrar o acordo, a empresa deveria manifestar-se por primeiro, ou seja, antes de ser formalmente acusada.
A primeira linha interpretativa trazia o inconveniente de que o proponente poderia manifestar interesse em cooperar e, posteriormente, não celebrar o acordo de leniência. Os demais interessados perderiam a possibilidade de celebrar o acordo por não terem sido os primeiros a se interessarem.
A segunda linha interpretativa tinha o inconveniente de que, devido ao fato de a lei prever a responsabilização objetiva, nem sempre a empresa poderia identificar claramente a prática de um ato ilícito. Muitas vezes a identificação apenas ocorreria no momento em que fosse formalmente acusada e isso inviabilizaria o acordo.
A revogação do dispositivo vem em boa ora, e segue o sentido, já apontado, de facilitar a celebração do acordo de leniência. A primazia na manifestação do interesse foi substituída pela primazia na assinatura do acordo de leniência. A consequência dessa primazia é que, nos termos do inciso III do § 2º do art. 16 da lei anticorrupção, introduzido pela medida provisória, poderá haver remissão integral da multa, o que é um grande incentivo para a celebração do acordo. As demais empresas envolvidas poderão beneficiar-se de uma redução da multa de até 2/3 de acordo com o inciso II do §2º do art. 16.
O segundo aspecto consiste na alteração do inciso III do § 1º do art. 16 cuja redação original exigia que a pessoa jurídica admitisse expressamente a participação no ilícito. A providência trazia pouco benefício ao interesse público e grande prejuízo à imagem da empresa, que poderia recusar-se a firmar o acordo na tentativa de preservar seu bom nome.
A nova redação não exige a admissão de participação em ilícito. Parte do pressuposto de que a infração independe de culpa da empresa, eis que a responsabilidade é objetiva. Embora a responsabilidade objetiva na aplicação de sanções seja de constitucionalidade duvidosa, pode-se afirmar que a modificação trouxe coerência ao diploma legal. A lei, originariamente, previa a punição independentemente da existência de culpa, mas exigia a assunção de culpa para a celebração de acordo de leniência.
O terceiro aspecto consiste na possibilidade de isenção das sanções restritivas ao direito de participar de licitações e celebrar contratos com a administração pública prevista no inciso I do § 2º do art. 16 introduzido na lei anticorrupção pela medida provisória e na alteração por ela feita na redação do art. 17 da mesma lei. A redação original do art. 17 da lei anticorrupção previa exclusivamente a possibilidade de isenção ou atenuação das sanções previstas pelos artigos 86 a 88 da lei no 8.666/93. Ocorre que Ilícitos e sanções administrativas equivalentes aos estabelecidos nos artigos da lei de licitações foram previstos pelo art. 7º da lei do pregão (lei nº 10.520/2002) e pelo art. 47 da lei do RDC (lei no 12.462/2011). Tratava-se de omissão imperdoável que gerava uma quebra na ratio iuris do sistema. Descumprir obrigações assumidas por intermédio da lei de licitações, da lei do pregão ou da lei do RDC são ilícitos de naturezas equivalentes e, portanto, deveriam receber sanções e benesses similares. Essa falha foi corrigida pela edição da medida provisória no 703/2015. A previsão, contudo, deve estar expressa no termo do acordo, conforme dispõe o inciso II do art. 30 da lei anticorrupção introduzido pela medida provisória.
O quarto aspecto consiste na possibilidade de o acordo de leniência impedir a propositura ou o prosseguimento das ações cíveis, bem como daquelas previstas no art. 19 da lei anticorrupção e na lei nº 8.429/92. A previsão está contida nos parágrafos 11 e 12 do art. 16 que foram incluídos na lei nº 12.846/2013 pela medida provisória nº 703/2015. Obviamente o impedimento apenas ocorrerá quando todos os titulares das referidas ações assinarem o acordo. É possível celebrar o acordo de leniência mesmo após a propositura das ações já referidas, conforme dispõe o parágrafo único do art. 20 incluído na lei anticorrupção pela medida provisória. O afastamento da responsabilidade judicial, conforme dispõe a nova redação do art. 18, no entanto, deve estar expressamente previsto no termo de acordo sob pena de o acordo produzir efeitos exclusivamente na esfera administrativa.
O quinto aspecto consiste na possibilidade de o acordo de leniência impedir a incidência das sanções previstas na lei nº 12.529/2011, que pune as infrações contra a ordem econômica. Trata-se de previsão constante incluída no inciso III do art. 30 da lei anticorrupção.
A mais importante inovação trazida pela medida provisória, no entanto, foi a revogação do § 1º do art. 17 da lei nº 8.429/92, feita pelo art. 2º da medida provisória nº 703/2015. O ordenamento jurídico brasileiro já admitia transação em ação de improbidade administrativa nas hipóteses previstas no § 4º do art. 35 da lei nº 13.140/2015. A conciliação, no entanto, ficava restrita às hipóteses em que houvesse controvérsia jurídica na qual estivesse envolvido ente federal. O dispositivo ora revogado impossibilitava a transação nas demais espécies de ações de improbidade administrativa.
Era, no entanto, um dispositivo que estava em dissonância com o ordenamento jurídico brasileiro. A razão para essa afirmação é que a transação é até mesmo admitida em ilícitos criminais, que são aqueles reprimidos de modo mais severo pelo ordenamento jurídico. Não havia sentido em permitir-se a transação em um ilícito que é “mais grave” e recusá-la em outro que é juridicamente “menos grave”.
A incongruência tornava-se ainda maior quando se considerava que a lei de improbidade previu, inconstitucionalmente, hipótese culposa de improbidade administrativa. Não havia qualquer sentido em se proibir que aquele que culposamente causou um dano viesse a repará-lo espontaneamente por intermédio de uma transação. Apesar de incongruente a existência de dispositivo legal impedia qualquer possibilidade de conciliação.
A revogação do § 1º do art. 17 da lei nº 8.429/92 foi, portanto, uma medida salutar. Serviu para estender a possibilidade de transação para as demais ações de improbidade. Para demonstrar a importância da revogação desse dispositivo passar-se-á a discorrer brevemente acerca da lei de improbidade.
De um modo geral, pode-se dizer que esta lei possui três núcleos de condutas puníveis: a) atos que importem enriquecimento ilícito (art. 9º); b) atos que causam prejuízo ao erário (art. 10); c) atos que atentem contra princípios da administração pública (art. 11).
As penas aplicáveis pela prática de tais atos estão previstas nos incisos do art. 12 da lei de improbidade e são de duas espécies: restritivas de direitos ou pecuniárias. As restritivas de direito consistem em perda da função pública, suspensão de direitos políticos, proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente. As penas pecuniárias, por sua vez, consistem em pagamento de multa civil, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio e ressarcimento integral do dano.
Transacionar é uma maneira rápida de garantir a reparação do dano. É também uma maneira célere de garantir a aplicação de uma sanção pecuniária ou restritiva de direitos. Assegura-se por intermédio do acordo efeitos equivalentes aos que teria a decisão judicial, quais sejam a reparação do dano e a repreensão do ilícito. A celeridade, no entanto, acaba servindo de desestímulo em relação à prática de novos atos ilícitos pelo acusado, bem como para as demais pessoas que contratam com o Poder Público. Há também para a Administração Pública o benefício de evitar um longo processo judicial cujo êxito seria incerto.
Podem, no entanto, ser feitas algumas críticas à medida provisória. A primeira é que ela nada dispõe acerca do tratamento a ser dado às pessoas físicas. Sabe-se que as pessoas jurídicas manifestam sua vontade por intermédio das pessoas físicas que as dirigem. É de se imaginar alguma dificuldade em firmar acordos de leniência que beneficiem a empresa, mas nada disponham em relação à seus diretores que, em tese, poderão ser responsabilizados criminalmente.
A segunda diz respeito à constitucionalidade formal da medida, eis que ela padece do requisito de urgência previsto no caput do art. 62 da Constituição Federal. Esse vício, no entanto, pode ser apontado em relação a praticamente todas as medidas provisórias editadas no Brasil até a presente data. Atualmente, no entanto, poucas medidas provisórias foram declaradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário pela ausência desse requisito.
A terceira crítica consiste no momento em que a medida provisória foi editada. Sabe-se que diversas empresas, cuja maior fonte de renda advém de contratos celebrados com a Administração Pública, e são rés em processos judiciais envolvendo atos de corrupção, poderão ser por ela beneficiadas.
Trata-se de questão que, contudo, não retira o mérito das inovações trazidas, embora possa ensejar eventual investigação por desvio de poder.
As inovações trazidas pela medida provisória no 703 de 18 de dezembro de 2015 são, portanto, em abstrato, benéficas. As normas introduzidas no ordenamento jurídico facilitam a celebração de acordos de leniência ao disciplinar de maneira abrangente o instituto. A revogação do § 1º do art. 17 da lei nº 8.429/92, por sua vez, retira do ordenamento jurídico dispositivo que destoava do restante do sistema. Em síntese, a medida provisória nº 703/ 2015 permite que danos praticados contra a Administração Pública sejam reparados de maneira célere e os infratores sejam punidos com rapidez, por intermédio de transações.
Resta saber, contudo, qual o uso que se fará das inovações trazidas. Há leis que abstratamente podem ser consideradas boas, mas cuja aplicação traz resultados terríveis. Os intérpretes são os grandes realizadores do direito. Os resultados a serem obtidos pela aplicação das inovações trazidas, portanto, dependerão da responsabilidade e da consciência com que os diversos atores envolvidos na celebração dos acordos de leniência atuem. //
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