Luciano Elias Reis (PR)
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A Lei de Licitações prescreve em seu artigo 40, inciso XIV, que o edital poderá prever nas condições de pagamento prazo de pagamento de até trinta dias a contar do adimplemento e também que eventuais antecipações de pagamento serão sopesadas para fins de compensações financeiras e penalizações. [1]
Ao mesmo tempo, o artigo 15 estipula que as compras sempre, que possível, deverão submeter-se às condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado.
Interpretando em conjunto com os dispositivos legais acima citados e a situação excepcionalíssima vivenciada com a pandemia, inclusive reconhecida via Lei n. 13.979/2020, parece crível que seja feita a antecipação de pagamentos, desde que a Administração Pública certifique da idoneidade empresarial do fornecedor.
Afastar riscos na presente situação não é possível simplesmente. É viável mitigar riscos exigindo garantia contratual, fazendo pagamento antecipado de parcela (deixando outra parcela para quando da entrega) e avaliando a vida pregressa do fornecedor para mostrar a sua responsabilidade na entrega em outras relações comerciais.
Não é momento para o gestor público ficar preso a restrições ordinárias da lei de licitações. Deve-se ter em mente que se está diante de um cenário anômalo e excepcionalíssimo que não merece interpretações e saídas normais.
Convém recordar que o artigo 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é sensível ao preceituar que "na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados." Ainda, pode-se aproveitar o dever de a Administração Pública pensar e repensar as consequências práticas, jurídicas e administrativas das soluções que podem ser adotadas no caso concreto, como se pode deduzir da razão dos artigos 20 e 21 da LINDB.
Atualmente, diante da teoria da demanda e do custo de oportunidade, o gestor público tem duas opções: (i) se adapta e encara o cenário atual com interpretações inteligentes ante o princípio da realidade ou (ii) se enquadra como um burocrata sem finalidade, e também se legitimidade, que não atenderá o interesse público e a necessidade da sociedade para a qual deve servir (e não servir-se).
Os custos de transação são os valores econômicos despendidos para determinada atividade contratual ou sua manutenção, mantença dos termos avençados e atingimento do escopo. Feliz ou infelizmente (a depender da condição do operador econômico e do observador), tais custos transacionais estão altamente voláteis. A oferta versus a procura tem gerado um efeito bolsa de valores nas atividades mercantis de empresas, principalmente relacionadas à área hospitalar e de equipamentos de proteção individual do trabalho. Com isso, a Administração Pública é uma compradora como qualquer outra e tem custos ex ante e ex post sob o viés da literatura de Williamson alargados em comparação com um concorrente do setor privado. Vide, por exemplo, nível de confiança do mercado, demora para pagamento, em alguns locais arbitrariedades na gestão contratual, dentre outros.
Afora isso, as externalidades, que podem ser vislumbradas neste momento como os atos e comportamentos de terceiros que afetam a relação contratual entre A e B, possuem elevada repercussão na relação Administração Pública e um fornecedor. A legislação atual autoriza a requisição administrativa, o que tem sido desafortunadamente utilizada sem critérios e de modo desmensurado por alguns agentes. Consequentemente, o fornecedor por vezes acuado sequer atenderá ao pedido de cotação, contratação, envio de propostas ou atenderá o telefone com medo de algum agente público investido de suas prerrogativas requisitar o seu material, o seu estoque ou sua empresa.
Como se verifica, a situação replica uma análise mais profunda, já que se está diante do teorema dos prisioneiros, teoria dos jogos ou dilema dos agentes do "Poço" (um dos filmes mais assistidos no netflix nos últimos dias), em que o comportamento animal de um agente que precisa de uma atividade econômica tem prejudicado outros, faltando harmonia, cooperação e solidariedade nas relações contratuais.
Será que vale a pena a empresa manter, por exemplo, a execução de um contrato de luva com um comprador que lhe está pagando Y reais, sob pena de multa de 20% em razão da inexecução contratual, enquanto outro lhe oferece 5Y reais. Muitos não entregarão o primeiro contratual e pagarão a multa sorrindo.
Talvez seja o momento de pensar na solidariedade ou interdependência social como fundamentos do Direito e da unidade na sociedade, assim como preleciona Léon Duguit, ou deixar de refletir criticamente neste momento para deixar futura reflexão quando os mares estiverem menos revoltos.
De qualquer forma, concluo que é hora de o Estado Brasileiro se portar como agente econômico que precisa dos demais agentes (é dependente) e deve atuar de acordo com as condições do jogo, o que leva a permitir nesta pandemia o uso de pagamento antecipado com as devidas cautelas quando as circunstâncias assim exigirem, nos demais casos que se faça pagamentos em até dois a três dias úteis, sopese efetivamente as cláusulas rebus sic standibus (de acordo com o estado das coisas), seja mais empático no trato com o fornecedor, dentre outras várias posturas a serem revisitadas.
A Medida Provisória nº 961, editada em 06 de maio de 2020, previu em seu artigo 1º, II, a possibilidade de pagamento antecipado para as contratações da época da pandemia quando ele representar condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço ou propiciar significativa economia de recursos. Explicitou que: (i) essa condição deverá ser exteriorizada aos fornecedores no edital ou no instrumento formal de adjudicação direta: (ii) na hipótese de inexecução contratual deverá haver a devolução do valor antecipado; (iii) poderão ser exigidas atos cautelares para reduzir o risco como a comprovação de execução de parte ou de etapa inicial do objeto contratado, prestação de garantia de até 30% do valor do contrato, exigência de certificação do produto ou do fornecedor, emissão de título de crédito pelo contratado e acompanhamento da mercadoria pelo representante da Administração.
Já foi um bom começo. A crise sempre desencadeia mudanças de paradigma. É preciso aprender e aproveitar as lições boas. Assim como as pessoas estão percebendo por que se vive e para que se vive, o Estado está vendo que sozinho e com atuações (prerrogativas) excessivas será estéril.
Especificamente acerca do pagamento antecipado, o Estado do Espírito Santo via Lei Complementar nº 946/2020, o Estado do Sergipe via Decreto Estadual nº 40.567/2020 e a Advocacia Geral da União por meio do Parecer 00254/2020/CONJUR-MS/CGU/AGU de lavra de Ronny Charles Lopes de Torres já demonstraram que entenderam o cenário holisticamente, visto que permitiram a sua realização [2]
Por tais razões, espera-se, para o bem da sociedade brasileira e a efetiva consecução das nossas necessidades iminentes nesta pandemia, um Estado mais confiável a partir de uma postura mais eficiente e racional, agindo como um interventor (via direção e fomento) no domínio econômico por meio das compras públicas, até porque já diria Geraldo Vandré:
“Vem, vamos embora, que esperar não é saber /Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
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[1] Texto escrito no dia 05 de abril de 2020 e depois acrescentado os pontos da Medida Provisória 961/2020.
[2] Outros escritos também têm refletido sobre o tema: FORTINI, Cristiana; PICININ, Juliana. Pagamento antecipado por bens adquiridos pelos órgãos públicos na pandemia; PEDRA, Anderson; OLIVEIRA, Rafael Sérgio de; CHARLES, Ronny Lopes de Torres. A mística da impossibilidade de pagamento antecipado pela Administração Pública; REIS, Luciano Elias; ALCÂNTARA, Marcus Vinicius Reis de. Análise crítica e os efeitos da Medida Provisória nº 961: aumento do limite da dispensa em função do valor, pagamento antecipado e extensão do RDC; PERCIO, Gabriela Verona. Antecipação de pagamento e cautelas necessárias.
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