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O que UBER, AIRBNB e outros negócios da economia compartilhada ensinam ao direito administrativo

ANO 2016 NUM 207
Leonardo Coelho Ribeiro (RJ)
Mestre em Direito Público pela UERJ. Especialista em litígios e soluções alternativas de conflitos pela FGV Direito Rio (LL.M Litigation). Coordenador técnico do LL.M em Direito da Infraestrutura e do Curso de Regulação da Infraestrutura e dos Recursos Naturais no Ibmec/RJ. Professor de Cursos de Pós-Graduação em Direito Administrativo. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/RJ, IAB e IDAERJ. Advogado.


07/07/2016 | 7548 pessoas já leram esta coluna. | 15 usuário(s) ON-line nesta página

Economia compartilhada, possibilidades geradas por plataformas digitais de comunicação, drones, impressoras 3D e tantos outros mecanismos, são exemplos de novidades que vêm se afirmando em meio ao cotidiano, seja nos negócios, nos transportes, nas comunicações, e em tantos outros meios. Não havendo como evitá-los, fingindo sua inexistência, e pretendendo uma imutabilidade que não cabe na vida, é preciso, pois, absorvê-los; integrá-los ao que já existe; abrir terreno para o novo; avaliar e aproveitar as melhorias que podem proporcionar à sociedade, e a seu desenvolvimento.

Para além da pergunta jurídica fundamental, de como fazê-lo, está o foco deste ensaio: por que exemplares da economia compartilhada dão certo? E o que o Direito Administrativo precisa aprender com eles? Um breve apanhado sobre as inovações disruptivas e os fenômenos da economia compartilhada ajudam a começar a resposta.

Muito a reboque da economia compartilhada, o termo “inovação disruptiva” entrou na moda atual. Para ser disruptiva, uma inovação costuma: (i) ser mais que um aprimoramento incremental, provocando uma alteração drástica no mercado que, via de consequência, muitas vezes levará à significativa redução, ou até mesmo destruição, dos agentes de mercado até então estabelecidos (pense no impacto dos ipods para os produtores de walkmans, por exemplo); e (ii) oferecer não apenas novos produtos, mas novos modelos de negócio (como atualmente notável na arquitetura de negócios empregada pelo Airbnb e o Uber, nos nichos de hospedagem e transporte individual de passageiros, respectivamente).

No limite, inovações que reformulam radicalmente as maneiras de fazer até então empregadas pelos homens são movimentos inerentes à própria existência e evolução do ser humano e da sociedade, que vai se tornando mais complexa e, com isso, dependente da criatividade inventiva capaz de otimizar tarefas e dar conta dos novos desafios por caminhos até então inimagináveis. Desse modo, o contexto em que essas inovações estão inseridas conforma circunstâncias fundamentais para compreender as molas propulsoras das mudanças.

Na ordem dos dias atuais estão, principalmente: (i) os efeitos de uma crise financeira mundial; (ii) o excesso de capacidade de bens de propriedade individual, ocasionado por uma sociedade de intenso consumo; e (iii) grandes avanços tecnológicos, como os de comunicação, facilitando a integração mundial de mercados, e a tradicional transição de invenções militares para o ambiente civil e empresarial.

Não por outras razões as inovações disruptivas na atualidade possam ser creditadas, em sua maior medida: (i) ao crescimento da economia compartilhada; (ii) ao desenvolvimento de plataformas tecnológicas; e (iii) à introdução de novos meios para cumprir velhas funções.

Colhendo importância já na década de 70, a economia compartilhada envolve a troca de excesso de capacidade de ativos de propriedade individual por remuneração em uma escala que não seria possível sem o uso de tecnologias modernas. Seus exemplos mais atuais: Airbnb e Uber, casos nos quais o ativo econômico transacionado é a capacidade ociosa de hospedagem ou transporte.

E por que esse tipo de solução, a um só tempo, tem espaço em um cenário de crise financeira, e depende do avanço de plataformas tecnológicas? São duas as razões: (i) a crise financeira implica a necessidade de encontrar outros meios de geração de renda para a subsistência. Na falta de recursos, nada melhor do que potencializar a utilidade econômica ao que já se tem; por sua vez, (ii) as plataformas tecnológicas se encarregam de ligar as pontas, conferir escala às transações ao produzirem efeitos de rede e, mais que isso, prover um arranjo de incentivos apto a gerar controle mútuo e confiança entre os envolvidos na transação. É quando entram em cena as lições do Uber e do Airbnb para o Direito Administrativo.

As experiências de economia compartilhada têm sido o grande móvel de disrupção tecnológica recente. Para que isso pudesse acontecer, foi preciso desenhar modelos de negócio habilitados a superar a desconfiança e o medo entre as pessoas. Afinal, por que você entraria no carro de alguém que nem conhece? Ou, talvez ainda mais arriscado: por que dormiria no quarto vago da casa de um estranho? A resposta é simples, e pode revelar um importante fio condutor de mudanças na lógica subjacente aos arranjos jurídicos em geral: porque o arranjo institucional aplicável gera os incentivos adequados à promoção da confiança mútua nos participantes.

Remontando a um argumento histórico, antes da Revolução Industrial vivia-se uma profunda experiência de trocas, pautada na confiança pessoal de quem emprestava, tomava emprestado, ou mesmo transacionava em definitivo acreditando na qualidade do bem. Enquanto a vida tomava curso em pequenas cidades, e famílias se relacionavam pessoalmente há décadas, tomar provisoriamente emprestada com um vizinho uma ferramenta de que se precisava, mas não se tinha, era algo comum. A reputação pessoal, zelosamente cultivada como um capital individual valioso, se encarregava de fomentar a confiança necessária para o sistema dar certo.

Com a Revolução Industrial, e o êxodo populacional das pequenas cidades para os grandes centros urbanos, esse tipo de confiança ficou para trás, perdida no caminho entre o campo e a cidade. A vida se tornou mais impessoal. Nesse novo contexto, em que de certa forma ainda vivemos, fez-se então preciso desenhar um novo sistema institucional que pudesse substituir os incentivos anteriores, de modo a produzir melhores resultados práticos. Foram, então, normativamente elaborados mecanismos sociais estabelecendo requisitos a serem preenchidos para a obtenção de títulos junto ao Estado, como licenças e permissões, e submetendo os particulares habilitados à fiscalização pública, de modo a artificialmente produzir uma nova forma de confiança. A mudança funcionou bem, colaborando para a reconstrução da confiança por novas vias, mas hoje aparenta sinais de desgaste, como revelam: (i) o grande custo para manter estruturas públicas que habilitam e fiscalizam particulares, muitas vezes de forma superposta e a destempo; e (ii) o resultado efetivo que ao fim entregam, bem aquém do desejado, sem garantir qualidade verdadeira aos serviços recebidos pelos cidadãos.

Diante disso, a reconfiguração da confiança, sempre em resposta ao contexto no qual se insere, provavelmente se apresentou como o principal desafio para que modelos de negócio de economia compartilhada dessem certo. E se eles estão avançando bem, é porque conseguiram calibrar um novo arranjo institucional de incentivos, que passa pela utilização de sistemas de controle mútuo da conduta entre tomador e prestador do serviço, recolocando no centro do arranjo sua reputação, por meio de rankeamentos e avaliações críticas amparadas também nas plataformas digitais, sob a intermediação de quem modelou o negócio (aplicativo, site etc), permitindo feedbacks rápidos e que repercutem sobre suas reputações, podendo ocasionar recompensas (medidas premiais) ou, de outra mão, inclusive importar em um “banimento” do sistema (medidas punitivas).

O ponto é de muita utilidade ao Direito Administrativo, na medida em que, sendo a efetivação da fiscalização administrativa uma das principais dificuldades encontradas no exercício dos modelos tradicionais de controle de atividades, privadas ou públicas, pelo Poder Público, melhor seria redesenhar arranjos jurídicos para enfatizar situações nas quais, por exemplo, tomadores e prestadores de serviços, privados ou públicos, tivessem à mão mecanismos de controle mútuo de rankeamento e avaliação, amparados em plataformas digitais, cabendo às instância de controle, como agências reguladoras, tribunais de contas e ministérios públicos, exercerem o papel de intermediadoras desses controles exercidos pelas partes. Essas providências poderiam reduzir o custo estatal embutido no aparelhamento físico e de pessoal, superando a inexistência de canais de comunicação operativos, ampliando a transparência, a accountability e a legitimidade, bem como evitando demorados processos administrativos que inibem os usuários de noticiarem impropriedades dos serviços públicos às agências, por exemplo.

As inovações tecnológicas disruptivas colocam em grande evidência o papel instrumental do Direito Administrativo – e suas ferramentas – que, enquanto tecnologia social, se vê desafiado a equacionar as múltiplas variáveis enredadas pelos interesses de agentes econômicos antigos, agentes econômicos novos, e da coletividade. É bom que se diga, devendo sempre manter o leme na direção do desenvolvimento, da prosperidade dos cidadãos e da efetivação de direitos fundamentais.

Para não operar um papel defasado, impeditivo de que a história siga seu rumo entre transformações inovadoras e seus impulsos, é preciso compreender bem os fenômenos de destruição criativa que progridem em grande velocidade atualmente.

Aproveitando-se da forma como essas inovações fomentam uma confiança moderna em novas bases, merece realce a postura de pensar e operar os sistemas jurídicos enquanto arranjos institucionais geradores de incentivos adequados para restringir e oportunizar condutas, o que deve influenciar na forma como o Poder público habilita agentes econômicos a prestarem serviços, provê sua fiscalização, recebe, responde e absorve aportes do controle social de atividades públicas em sentido amplo. Quer dizer: em todo o caso, além de evitar que o Direito seja obstáculo à inovação, o mais importante é aprender com as novidades e empregá-las em favor do avanço dos modelos coexistentes, novo e velho.



Por Leonardo Coelho Ribeiro (RJ)

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