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Decisão parcial do STF quanto ao fornecimento de medicamento de alto custo sem registro no país

ANO 2016 NUM 272
Lenir Santos (SP)
Advogada em gestão pública e direito sanitário. Doutora em saúde pública. Coordenadora do curso de especialização em direito sanitário IDISA - Sírio Libanês.


07/10/2016 | 8905 pessoas já leram esta coluna. | 14 usuário(s) ON-line nesta página

No último dia 28 de setembro, o STF deu continuidade ao julgamento dos RE 566.471-RN e do RE 657.718-MG, que trata da possibilidade de se obrigar o Estado a fornecer medicamento com registro na ANVISA e não incorporado ao SUS e medicamento de alto custo para doenças raras, sem registro no país. O julgamento foi interrompido em razão do pedido de vista do Ministro Teori Zavascki, havendo votado o Ministro-Relator Marco Aurélio Mello, voto-vista do Ministro Luis Roberto Barroso e o Ministro Edson Fachin.

A judicialização da saúde tem sido um fenômeno relevante há mais de 15 anos e parece um problema sem fim, tendo em vista suas causas não serem combatidas, como o baixo financiamento do sistema, que conta com apenas 4% do PIB. É senso comum a impossibilidade de se manter um sistema de saúde universal sem se aplicar, no mínimo, 7% do PIB, conforme exemplificam a Inglaterra, França, Espanha, Portugal, Itália. Nesse sentido, o SUS é um sistema público inconcluso ante a falta de 45% de recursos para a sua adequada organização e funcionamento.

Sendo a causa principal da judicialização da saúde (não a única) a inadequação dos seus serviços às necessidades da população, a judicialização continuará crescente, ainda mais se se considerar que a EC 86, de 2015, a partir de 2017, retirará da saúde por volta de 10 bilhões de reais (vide a ADI 5595 proposta pelo Procurador Geral da República por entender inconstitucional os artigos da EC 86 que alteram os pisos da EC 29, de 2000). Isso sem falar da PEC 241 que pretende congelar por vinte anos os recursos da saúde, tendo por base o orçamento de 2016, apenas o corrigindo pelo índice do IPCA, sem considerar o crescimento populacional, o envelhecimento da população, as atuais insuficiências do sistema, as novas tecnologias e a inflação da saúde sempre superior à inflação oficial. (Não é demais lembrar que o SUS deve atender 202 milhões de pessoas, sendo delas dependentes exclusivamente, 150 milhões).

Nesse sentido, parametrizar decisões judiciais ante o seu excesso, custos públicos e limbo legislativo-administrativo existente em alguns campos, como a definição do conteúdo da integralidade da assistência à saúde, com a publicação integral da RENASES – Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde – é relevante para o SUS a fim de garantir um mínimo de segurança jurídica em sua organização.

Nesse sentido, o voto-vista do Ministro Barroso sobre medicamento sem registro na ANVISA e, como consequência, não incorporado pela Conitec – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia em Saúde do Ministério da Saúde na Rename – Relação Nacional de Medicamentos, é de grande importância, com a ressalva que mencionaremos.

O Ministro Barroso impôs cinco requisitos cumulativos para a garantia de medicamento de alto custo sem registro na ANVISA:

1.               O postulante do medicamento tem que demonstrar a sua incapacidade financeira de arcar com o custo correspondente. Essa decisão cria uma condição, data vênia, inconstitucional pelo fato de o artigo 196 da determinar que o acesso às ações e serviços de saúde é universal e igualitário, o que tem sido interpretado como gratuito e assim definido em normas como o artigo 2º, I, da LC 141, de 2012 e o art. 43 da Lei nº 8.080, de 1990. Por sua vez, o artigo 3º, III, da LC 141, em conformidade ao princípio da igualdade de acesso, afasta qualquer ação e serviço de saúde que não seja de acesso universal do cômputo dos gastos mínimos com saúde.  Passa a ser um elemento complicador, em relação a este conceito exigir o critério da pobreza para a garantia de acesso.

Além do mais, o voto do Ministro-Relator, Marco Aurélio, é bastante preocupante ao comparar o direito à saúde ao de prestação de alimentos por familiares. Argumentar que familiar com posses deve arcar com as despesas do medicamento de um parente seu, cabendo ao Poder Público o direito de regresso, chega a ser absurda. Quem exige comprovação da pobreza é assistência social. Aqui infelizmente confundiu-se o instituto da assistência social (artigo 203 da Constituição) com o da saúde; na assistência, a condição para o exercício do direito é a pobreza e o seu fundamento, a dignidade humana e seus mínimos existenciais.

2.             O postulante do medicamento precisa demonstrar a inexistência de manifestação expressa da CONITEC pela não-incorporação. Decisão que reforça o relevante papel da CONITEC, como o órgão competente para realizar as análises técnico-científicas e sanitárias dos medicamentos e procedimentos para a sua incorporação ou não pelo Ministério da Saúde. Pela judicialização, o grande incorporador de tecnologias e medicamentos tem sido o médico, sua prescrição e a liminar de um magistrado, o que não faz sentido, tumultua a organização do SUS e desconsidera a competência da CONITEC e do Ministério da Saúde.

3.             A necessidade de inexistência de um substituto terapêutico incorporado pelo SUS. Decisão importante na mesma linha da decisão acima comentada que reforça o papel do Poder Público quanto às escolhas técnico-científicas, sanitárias, epidemiológicas, de custo-benefício, dentre outras.

4.              Comprovação da eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidência. Esse é um ponto de destaque no tocante à segurança e eficácia dos medicamentos e tecnologias, evitando-se assim que interesses de mercado se sobreponham aos efeitos seguros de um medicamento ou tecnologia, não permitindo abusos como muitas vezes ocorrem, nem situações esdruxulas, conforme recente decisão legislativa de fornecimento, sem comprovação de suas evidências científicas, da pílula do câncer.

5.             Nos casos em que houver pleito de medicamento não incorporado, a ação deve ser proposta necessariamente contra a União, haja vista que a competência para incorporar é do Ministério da Saúde. Decisão que vem sendo reclamada há muito pelas autoridades do SUS, especialistas, operadores do direito.

A responsabilidade solidária não condiz com a forma organizativa do SUS. Um sistema que obrigatoriamente deve integrar serviços de saúde de entes federativos assimétricos, social, econômica e demograficamente falando, além de a sua organização observar níveis de complexidade tecnológica de serviços, não pode coadunar com responsabilidades iguais. Por isso sua organização se faz em redes e de forma regional (regiões de saúde), para que cada região seja capaz de, integrando serviços dos entes federativos, compor redes em todos os níveis tecnológicos da assistência.

Não se pode impor a um município de pequeno porte (que somente cuida da atenção básica) a responsabilidade pelo fornecimento de medicamento de alto custo ou por um transplante (produzimos, em parceria com Elida Graziane e Alexandre Bahia, um artigo, em publicação, sobre esse tema). A decisão do Ministro Barroso é bastante racional e atenta para o princípio da razoabilidade, ao permitir associar a responsabilidade do ente federativo à sua condição de gestão no SUS.

Contudo, ressalte-se que a decisão do Ministro se refere aos medicamentos não incorporados que, entretanto, deve ser parâmetro para os medicamentos incorporados de alto custo, dado o fundamento de seu financiamento pelo Ministério da Saúde, impondo-se de plano o ajuizamento em vara federal. E mesmo se referindo à responsabilidade pela incorporação, abriu um precedente para se analisar as competências pelos serviços per si, o que o conceito de responsabilidade solidaria não permite.

Resta a questão da hipossuficiência – não existente na Constituição – para fazer nascer o direito da pessoa ao medicamento de alto custo sem registro na ANVISA e que fatalmente gerará conflitos no SUS. O direito à saúde não traz constitucionalmente nenhum condicionante para o seu exercício, como ocorre com a previdência social que se exige seja a pessoa contribuinte do Regime Geral de Previdência Social, mediante pagamento compulsório de parcela de seu salário ou ganhos para o fundo que se destinará a garantir os benefícios previdenciários (dentre os quais, a saúde não é mais parte desde 1988). O mesmo pode-se dizer da assistência social que tem como condicionante para o exercício do direito, a pobreza. Somente as pessoas desprovidas de recursos para a garantia de determinadas necessidades essenciais fazem jus ao direito. Pobreza ou hipossuficiência são critérios da assistência social e jamais da saúde. Confundir institutos ou misturar os critérios ao arrepio da Constituição poderá permitir interpretação equivocada em relação a outros serviços.

O julgamento deve continuar proximamente quando se espera que a decisão final possa harmonizar as discrepâncias existentes nos votos dos três ministros que se manifestaram, como é o caso do Ministro Edson Fachin, que entende excepcional a prestação individual em relação às coletivas, e que deve ainda existir provas que demonstrem que a inexistência do medicamento na rede pública foi causada por impropriedade da política de saúde e que se comprove que há medicamento. A precedência da ação coletiva em relação à individual também é um bom precedente para se pensar na desjudicialização da saúde.

Por fim entendemos que deslocar a definição das políticas de saúde do Poder Executivo para o Poder Judiciário, exceto nos casos em que realmente haja asfixia comprovada do direito, é rota que permite distorções como as que já ocorrem hoje, não contribuindo para a melhor organização do SUS e o alcance de sua maturidade político-sanitária. 



Por Lenir Santos (SP)

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