Juliano Heinen (RS)
Introdução
Antes de você iniciar a leitura de qualquer palavra deste texto, é importante fazer uma advertência: as conclusões dispostas não têm caráter político e estão longe de tomar partido de qualquer ideia que não seja estritamente jurídica. Este é um texto científico. Significa dizer que o trabalho que se apresenta não defende nenhuma posição política. De modo objetivo: o presente texto foca em analisar a forma jurídica das medidas tomadas durante a pandemia (o que vale para todos os entes federados, sem exceção), e isso não pressupõe em absoluto uma crítica ao acerto ou não das políticas públicas feitas pela União, Estados e Municípios. Passemos ao desenvolvimento da ideia central que se quer defender.
Os últimos dias foram intensos. Não faltaram opiniões e trabalhos doutrinários analisando os impactos da pandemia causada pela Covid-19 (Coronavírus) no cenário jurídico brasileiro. E isto é compreensível, na medida em que é bem possível que o Brasil nunca tenha vivenciado a edição de tantas e tantas normas em tão pouco tempo, sendo que todas elas tratam de um tema. Todas elas procuram, em maior ou menor medida, disciplinar a atuação do Estado no combate à Covid-19. Para se ter uma ideia do que dissemos em relação ao imenso números de normas produzidas em tão pouco tempo, só no âmbito federal, criou-se um site específico para se conseguir acompanhar todos os atos normativos produzidos no endereço: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Portaria/quadro_portaria.htm
Para não cansar o leitor e para provar o que se está a dizer vamos dispor alguns números: até meados de abril de 2020, só no âmbito federal, foram editadas mais de cem portarias, mais de cinquenta resoluções, mais de vinte instruções normativas, mais de trinta decretos, mais de dez medidas provisórias etc. Somado a esse grande número de normas, poder-se-ia agregar todas as outras expedidas nos âmbitos dos demais entes federados (v.g. Estados, Distrito Federal e Municípios). O número é realmente impactante se pensarmos que a crise, no Brasil, é vivenciada efetivamente há pouco mais de dois meses.
Esse fenômeno jamais visto na história do direito brasileiro não poderia deixar de “perturbar” a mente dos juristas e de certo modo abalar muitos “dogmas” do direito administrativo. Cita-se apenas três: será inexorável o debate quanto ao reequilíbrio dos contratos administrativos, quanto ao papel do próprio direito administrativo (o que reconduz ao debate do próprio papel do Estado) e quanto aos limites e possibilidades da legalidade no período pós-crise.
Contudo, pretende-se abordar um outro tema aqui: esses inúmeros atos normativos não deveriam respeitar o texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88)? Sei que a pergunta pode revelar uma resposta óbvia. Mas será que, na prática, está-se a dar a resposta correta, ou seja, está-se a respeitar a Constituição? Especificamente, pretende-se aqui debater quais os limites constitucionais à atuação legislativa e administrativa dos entes federados no combate à pandemia causada pela Covid-19.
Desenvolvimento da problemática
A Lei nº 13.979/20 estabeleceu uma série de medidas para combate à Covid-19. Especificamente, tratou principalmente dos seguintes assuntos: poder de polícia, intervenção do Estado na propriedade alheia (v.g. por meio, por exemplo, de requisição administrativa), de contratação por dispensa de licitação e de prestação de serviços públicos etc. Logo, duas conclusões já são claras: a referida legislação trata de direito administrativo e, portanto, assim deverá ser interpretada quanto à divisão de competências legislativas constitucionalmente fixadas (arts. 22 e 24) e quanto à prestação destas atividades (arts. 21 e 23). De outro lado, se é “lei de direito administrativo”, ou há previsão expressa nos arts. 22 e 24 para a União tratar do tema, ou cada ente federado possui autonomia para legislar sobre isso.
Então, em homenagem à legalidade administrativa, primeiro, deve-se analisar como a CF/88 encara a competência legislativa para editar lei de tal evergadura. Já de plano poder-se-ia defender que a Lei nº 13.979/20 é norma que trata de “proteção e defesa da saúde” e, portanto, teria fundamento no inciso XII do art. 24 da CF/88. A referida legislação não possui fundamento de validade no art. 22, porque ele não trata sobre o tema da saúde pública. Logo, não se trata de uma “competência privativa” da União para legislar sobre o assunto, mas de “competência concorrente”.
De outro lado, de modo bem objetivo, não se concorda em dar fundamento de validade à Lei nº 13.979/20 pela via do art. 198 da CF/88, que trata da organização da saúde pública. Por dois motivos: porque o referido dispositivo constitucional trata de disciplinar organicamente o sistema de saúde nacional, seja em âmbito administrativo e orçamentário. E porque a Lei nº 13.979/20 aborda temas fora deste contexto ou, ainda que coligados, específicos à Covid-19.
Enfim, em tese, encontrou-se um fundamento constitucional para pensar a referida legislação como “lei nacional” e válida para ser aplicada em e por todos os demais entes federados. Do contrário, por se tratar de norma de direito administrativo, deveria ser objeto de lei de cada município e Estado, tudo de acordo com a autonomia dada pela federação brasileira (cf. art. 1º “caput” da CF/88).
Para tanto, se isso é verdade, ou seja, se a referida Lei nº 13.979/20 é matéria de “legislação concorrente”, ela somente e tão somente pode ser considerada “lei geral” sobre o tema, conforme os termos do § 1º do art. 24. E isso reclama inexoravelmente que existam leis regionais e locais, ou seja, que cada ente federado que pretenda proibir a abertura de estabelecimentos, interditar locais públicos etc. edite lei estadual e municipal. É inegável que essas leis deveriam existir, sob pena de se afrontar flagrantemente o art. 5º, inciso II e o art. 37 “caput” da CF/88.
Portanto, esse é o ponto: jamais poderiam os decretos municipais e estaduais serem editados sem base em lei local e regional, respectivamente. E sequer o § 7º do art. 3º da Lei nº 13.979/20 poderia “delegar” as “medidas previstas neste artigo” aos gestores locais e regionais – como assim foi feito. Isso porque os parágrafos do art. 24 da Constituição Federal reclamam a presença de lei estadual (e o art. 30 da CF/88 daria conta de impor a lei local). Tanto que a referida regra dispõe, como vimos, que a lei nacional revogará a “superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.” (§ 4º do art. 24). E que “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.” (§ 3º). Portanto, não há dúvidas de que o art. 24 reclama a edição de lei estadual ou municipal para que, respectivamente, os Estados e os Municípios possam restringir direitos fundamentais, sem que se possa valer diretamente da Lei nº 13.979/20.
Então, em termos competência legislativa, conforme o texto da CF/88, decretos estaduais e municipais sem respaldo em lei local e regional são ilegais e inconstitucionais. E sequer se pode admitir “delegação de competência” da União por meio da previsão expressada no mencionado § 7º do art. 3º da Lei nº 13.979/20.
Para que não se perca o foco: a legalidade administrativa impõe a presença de lei para qualquer atuação administrativa, porque é isso que diz a CF/88. E não se pode “pular etapas” e se basear em norma nacional, sem existir lei local ou regional, de acordo com o que determina o art. 24 da CF/88.
A fim de se tentar conseguir validade jurídica aos decretos estaduais e municipais, poder-se-ia fazer outra tentativa: dizer que eles se baseiam no disposto no art. 23, inciso II, da CF/88: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) II - cuidar da saúde e assistência pública, (...)”. Tem-se um primeiro obstáculo: estamos deixando de lado o fato de que as competências administrativas vêm depois de se ter estabelecidas a lei, o que reclama a validação pelos termos do art. 22, 24 e 30 da CF/88.
Logo, não se poderia validar a atuação estadual e municipal vendo o tema só pela perspectiva do art. 23, inciso II. Seria como se pensar que o ato administrativo vem antes da lei, o que é justamente o contrário. Uma das premissas mais basilares da legalidade administrativa é a reserva de lei. A reserva legal (Gesetzvorbehalt), determina que somente se atue quando a lei autoriza e nos estritos limites dela. Assim, a reserva da lei impõe que certas matérias somente sejam tratadas pela via legislativa, ou seja, com previsão expressa em lei, a excluir a previsão por outra via normativa. Os agentes estatais somente atuam quando existente previsão expressa em lei (tratamos disso com mais detalhes no nosso “Curso de Direito Administrativo” – Editora Juspodivm).
Mas há mais a dizer: ainda que a base normativa da atuação dos municípios e Estados fechando o comércio, restringindo a circulação de pessoas etc. fundamente-se somente e tão-somente na Lei nº 13.979/20 (lei nacional), e esta, por sua vez, possa deter fundamento somente e tão-somente no art. 23, inciso II, da CF/88, está-se diante de um segundo problema. A atuação administrativa também impõe a previsão legal, ainda mais em se tratando de intervenção do Estado na propriedade alheia ou de exercício de poder de polícia. Até porque ambas as funções do Estado visam a limitar os direitos do cidadão. Enfim, é um papel desempenhado “[...] pelo órgão competente nos limites da lei (...)” – art. 78 do Código Tributário Nacional.
Logo, volta-se à mesma ausência: a maioria, senão todos os decretos estaduais ou municipais que tratam de permitir um intenso poder de polícia para conter o Coronavírus não possuem base na legislação municipal ou estadual. De modo que voltaríamos ao mesmo argumento: poderia a Lei nº 13.979/20 se fundamento à atuação administrativa local ou regional?
Mais uma vez a resposta é negativa. Veja que se poderia defender que ela organiza como as competências dos Estados e dos municípios serão praticadas. Contudo, isso deveria ser feito por Lei Complementar, de acordo com o parágrafo único do art. 23 da CF/88. E, por óbvio, a Lei [ordinária] nº 13.979/20 não possui esta natureza.
De mais a mais, ainda que se fizesse um “esforço hermenêutico”, para, por meio de uma técnica interpretativa, compreender que a Lei ordinária nº 13.979/20 fosse “interpretada” como lei complementar, resolvendo o problema formal, materialmente ela sequer se presta a tratar de “normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (cf. art. 23, parágrafo único, da CF/88), para se conseguir o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Isso porque, a Lei nº 13.929/20 apenas determina quando os gestores locais podem atuar, e em muitos casos, a depender de “autorização” do Ministro da Saúde (inciso II do § 7º do art. 3º).
A Lei nº 13.979/20 não especifica em que termos será feita “cooperação” entre os entes da Federação, conforme determinado pela Constituição Federal no dito parágrafo único do art. 23. Não fala sequer dos limites claros da atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sendo estes justamente os maiores debates e controvérsias existentes entres os governos federal, estaduais e locais.
Veja que a análise jurídica da divisão de competências nem é um tema novo no Brasil. Por exemplo: já há muito se discutia se o Município poderia fixar o horário do comércio local, sendo editada, depois de décadas de debate, a Súmula Vinculante nº 38 (STF): “É competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial.”. Tal verbete foi precedido pela Súmula nº 419 da Suprema Corte: “Os municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas.” e pela Súmula nº 645: “É competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial.” (STF). Contudo, a fixação do horário sempre pressupôs a edição de lei local. Desconhece-se ato municipal (v.g. decreto) que se fundamentou em lei nacional para regulação do assunto.
Aliás, cabe dizer aqui, que o entendimento do STF no tema revela a inconstitucionalidade dos decretos estaduais que tentaram regular o funcionamento do comércio local. Afinal, a jurisprudência sempre interpretou que cabia a municipalidade essa competência.
Então, muitas das questões reguladas pelos decretos federais, estaduais ou municipais durante a Covid-19 possuem vício:
(a) Formal por violação à reserva legal: os atos administrativos não detêm fundamento de validade em lei municipal ou estadual, e não poderem se valer do disposto na Lei nº
(b) Formal por violação à iniciativa de competência: os atos administrativos podem tratar de assuntos que competiriam a outros entes federados (exemplo: Estados regulando matérias de competência municipal).
Por fim, poder-se-ia defender a incidência, aqui, de uma “legalidade excepcional”, o que os franceses definiriam como “Teoria das Circunstâncias Excepcionais” (também expomos isso com amplitude no nosso curso (p. 168-172)). Contudo, isso reclamaria a modificação do texto da constituição ou que fosse caso de uma das hipóteses previstas na própria CF/88 (v.g. Estado de Defesa ou de Sítio). Devemos perceber, é certo, que as situações constitucionais de crise se regem pelo princípio da excepcionalidade, até por ser uma medida antidemocrática. A rigor, a realidade comum autoriza tal medida extrema apenas nos casos previstos pela própria Constituição.
A reserva legal relativa, com limite na CF/88, precisa ser reconduzida à causa da intervenção. A vocação instrumental do ato interventivo é nodal à espécie. Em verdade, estabelece-se, no caso, um “regime administrativo especial”. Mas este regime, no mínimo, deve ser especificado, até pela complexidade que o ato interventivo revela.
De outro lado, pode-se pensar que, na verdade, não se fixou um “regime especial”, mas sim, há uma excepcional relativização da autonomia do cidadão, quando se está diante de uma intervenção sem base em lei. Já nos Estados de Defesa e de Sítio, há previsão da suspensão do ordenamento.
Por tudo isto, entede-se, pois, que a teoria francesa em questão não poderá ser aplicada senão pelas vias admitidas pela Constituição Federal brasileira. Logo, somente nos casos em que tal texto normativo franqueou uma legalidade outra que não aquela normalmente aplicada, produto do sistema legislativo formal e democrático, é que se poderá pensar na implementação da teoria francesa, com toda sorte de adaptações. Aliás, a “legalidade de crise” – produto de circunstâncias excepcionais – já está bem posta pelo texto da Constituição Federal de 1988.
Conclusões
Em muitos casos, a premência do tempo, a gravidade das circunstâncias, a ausência de recursos disponíveis, a inviabilidade de soluções alternativas – o elenco é meramente exemplificativo – poderão impor ao agente administrativo que adote atos jurídicos e materiais não conformes, de modo perfeito e exato, às normas legais. A Administração tem o dever de antecipar a efetiva consumação das variáveis indicadas. Mas isso lhe permite atuar fora do direito?
A situação excepcional em que vivemos reclama interpretações condizentes, mas não permite seja contrariado o texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Parece mais do que razoável e clara a manutenção da legalidade, mesmo em situações de crise. E isso foi feito por todas as Nações, ainda que em épocas tão duras quanto. Veja o caso da França, da Alemanha ou dos Estados Unidos que não deixaram de editar leis específicas nos períodos da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. E, hoje, as mesmas leis fundamentam a atuação do Estado no combate à Covid-19.
E por que se faz aqui essa defesa intransigente da legalidade? A mesma força que reclama a defesa da república, da democracia, do respeito aos direitos fundamentais, é a que pretende a defesa da legalidade.
Quanto à competência legislativa, cabe dizer que a autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências para o exercício e desenvolvimento de sua atividade normativa (art. 22 e 24 da CF/88). Percebeu-se, ainda, que o sistema brasileiro de distribuição de competências aos entes da Federação é o de execução imediata, em termos de “competências administrativas”. E incumbe à lei complementar fixar normas para a cooperação entre essas entidades, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (art. 23, parágrafo único, da CF/88).
Diante de tudo o que foi exposto, pode-se concluir objetivamente que:
(a) A Lei nº 13.979/20, que autoriza medidas ordenadoras (de polícia e interventivas) não é fundamento para os decretos estaduais e municipais, por conta de que:
(a1) se seu fundamento é o art. 24, inciso XII, da CF/88, reclamar-se-ia leis estaduais e municipais específicas, porque a legislação mencionada seria típica “norma de caráter geral”, na forma do § 1º do mesmo art. 24;
(a2) se seu fundamento é o art. 23, inciso II, da CF/88,:
(a2.1) a Lei nº 13.979/20 deveria ser lei complementar, conforme impõe o parágrafo único do art. 23;
(a.2.2) deveria tratar com clareza dos casos de atuação de cada entidade da federação;
(b) A legalidade administrativa e a competência para legislar sobre direito administrativo impõem que os atos normativos (v.g. decretos) e atos administrativos estaduais e municipais possuam fundamento em lei estadual e municipal – incidência do art. 5º, inciso II e art. 37 “caput”, ambos da CF/88;
(c) A admissão da existência de uma espécie de “legalidade excepcional” para o combate à Covid-19 somente é possível nos casos previstos expressamente pela CF/88 (exemplo: situações constitucionais de crise como o Estado de Defesa e o Estado de Sítio).