José Luiz Levy (SP)
Há uma interessante peça de teatro, intitulada “Um inimigo do povo”, escrita por Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês, cuja trama gira em torno da descoberta de um médico, Dr.Stockmann, de que as águas do balneário onde trabalhava estavam infectadas com substâncias orgânicas em decomposição, com sério perigo à saúde dos frequentadores. Propõe ele, então, que a imprensa local imediatamente alerte a todos do perigo. Os familiares e amigos do Dr. Stockmann, e até mesmo os responsáveis pelo jornal, elogiam-no e consideram-no um grande benfeitor, e reconhecem a importância da publicação da matéria, que poderá salvar inúmeras vidas.
Porém, a situação se modifica quando o Prefeito, que promovera a construção do balneário sem os cuidados necessários, irmão do médico, não simpatiza nada com a ideia da divulgação da descoberta. Consegue que o jornal local não a publique, e tenta convencer seu irmão a não insistir no tema. Procura fazer-lhe ver que demoraria aproximadamente dois anos uma reforma adequada para evitar a contaminação e, portanto, a divulgação agora da notícia afastaria precipitadamente e por muito tempo os frequentadores do balneário, acarretando prejuízos irreparáveis para a cidade.
A peça retrata bem como o médico sofre pressões de toda a ordem, uma vez que ele se recusa a silenciar a descoberta. Não somente seu irmão Prefeito, mas também seu sogro, que é o principal acionista do balneário, empenham-se em denegrir a sua imagem, e conseguem que a opinião pública passe a considerá-lo como “um inimigo do povo”. É então que o médico Dr. Stockmann, despedido de seu emprego e já sem a maioria dos amigos, dá-se conta de que não são apenas as águas do balneário que estão contaminadas, mas sim todos os habitantes da cidade. Resolve então, juntamente com a sua família, começar uma escola para preparar uma nova geração de cidadãos.
Veio-me à mente essa peça de teatro, logo que fui convidado a tecer algumas considerações sobre o controle da Administração exercido pelo Tribunal de Contas e pela Câmara Municipal.
Um e outro órgão, ao exercerem a sua árdua e rotineira missão constitucional de controle da Administração municipal, são tratados às vezes como benfeitores extraordinários, que descobrem irregularidades e exigem salutares mudanças de rumo nos desperdícios do dinheiro público. Outras vezes, pelo desempenho das mesmas tarefas, são acusados de “inimigos do povo”, que impedem a realização de urgentes serviços públicos, e retardam os benefícios à população, tão carente de atendimento.
Em verdade, essas repentinas alterações da opinião pública a respeito da atuação dos órgãos de controle em sua rotineira tarefa têm como causa, não raras vezes, um profundo desconhecimento do papel constitucional atribuído a cada órgão de controle. Nenhum desses órgãos, evidentemente, desempenha um papel de “super-homem”, dotado de poderes excepcionais; e tampouco pretende ser um “estraga prazeres”, a se intrometer como uma “pedra no sapato” da Administração. Mas sim prestam um indispensável auxílio na gestão pública, e constituem um apoio insubstituível para a população na preservação e boa gestão do Erário, apontando os ajustes e as correções necessárias.
A reflexão sobre os órgãos de controle contribui para termos uma visão mais positiva e equilibrada de seu papel, e para compreendermos melhor a sua importante contribuição para que o interesse público seja atingido com a máxima rapidez dentro da lei, com economia, com eficiência e moralidade. Quanto maior for a sua compreensão de seu papel, inclusive pelos próprios agentes públicos, mais a população respeitará e colaborará com o seu trabalho, já que é justamente ela, sobretudo a população carente, a principal beneficiária de um controle adequadamente realizado.
Oportuno tecer, portanto, algumas ponderações sobre o trabalho de controle sobre os atos da Administração, cuja natureza e limites com frequência esbarram em sérias dificuldades.
Como é sabido, no nosso regime constitucional os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo não se confundem nem se subordinam, mas se harmonizam, cada qual desempenhando, além de sua função precípua − legislar, julgar ou administrar −, outras funções que a Constituição lhes outorga para uma mútua cooperação institucional. Adota nosso país o regime da separação de poderes próprio de um Estado de Direito, de acordo com a teoria dos freios e contrapesos proposta por Montesquieu, através do qual um Poder controla o outro, impedindo-se o arbítrio e garantindo-se a liberdade pessoal.
Por tradição que se inicia com a Magna Carta na Inglaterra, em 1215, o Poder Legislativo é o poder financeiro, e a ele compete não apenas autorizar a cobrança de tributos e consentir nos gastos públicos, mas também tomar contas dos que usam do patrimônio em geral. Exerce esse controle financeiro em decorrência do princípio republicano que fundamenta e informa o nosso sistema constitucional, uma vez que os bens, dinheiros e valores públicos são do povo, e em seu benefício devem ser aplicados.
A rigor, o Poder é um só e indiviso, manifestando-se através dos diversos órgãos que exercem as funções típicas legislativas, administrativas e judiciárias, além de outras funções atípicas. Assim, além de legislar, a Câmara Municipal exerce a função de controle e fiscalização dos atos da Administração, atividade-fim que lhe é indispensável para a própria elaboração das leis e para o aprimoramento do serviço público: é o que se denomina controle parlamentar.
Na definição de Hely Lopes Meirelles, “controle, em tema da administração pública, é a faculdade de vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro” (Direito Administrativo Brasileiro, 39.ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 740). Abrange, portanto, duas funções distintas e complementares: “a fiscalização e a correção dos atos ilegais e, em certa medida, dos inconvenientes e inoportunos”, salienta Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que acrescenta: “O controle constitui poder-dever dos órgãos a que a lei atribui essa função, precisamente pela sua finalidade corretiva; ele não pode ser renunciado nem retardado, sob pena de responsabilidade de quem se omitiu” (Direito Administrativo, 21ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p.690).
O controle dos atos da Administração Pública pode ser realizado pela própria Administração, através do controle interno de cada Poder, e pelo controle externo, que é o realizado por um Poder ou órgão constitucional estranho à Administração responsável pelo ato controlado.
Inserem-se no controle externo da Administração municipal tanto o controle parlamentar, exercido pela Câmara Municipal, como o controle exercido pelo Tribunal de Contas, que auxilia tecnicamente a Câmara Municipal no âmbito do controle financeiro e orçamentário.
Não nos deteremos no presente trabalho no controle exercido pelo Poder Judiciário, que é, sobretudo, um controle externo de legalidade dos atos da Administração, nem tampouco trataremos do controle social, exercido por qualquer cidadão acompanhando, informando-se, fiscalizando e exigindo o cumprimento da lei, por fugirem ao escopo do presente trabalho. Tampouco examinaremos o denominado controle interno, que consiste em um controle amplo, de legalidade e de mérito, fundado no controle hierárquico e na autotutela administrativa, que enseja até mesmo a revogação e a anulação pela Administração de seus próprios atos.
Iniciemos a abordar o controle parlamentar, que é exercido pela Câmara Municipal, por seu Plenário ou por suas Comissões permanentes ou temporárias, sobre atos do Poder Executivo municipal. Consiste o controle parlamentar em um controle amplo, tanto de legalidade como, em muitos casos, também de mérito, podendo abranger o exame da discricionariedade do ato, ou seja, a sua conveniência e oportunidade, tendo em vista o interesse público envolvido. Desdobra-se em duas grandes vertentes: o controle político e o controle financeiro, este último realizado com o auxílio e coparticipação do Tribunal de Contas.
O controle político é realizado pela Câmara Municipal diretamente, sem a intermediação de nenhum órgão ou Poder. Dentre os mecanismos de controle podem ser mencionados os seguintes: a) requisitar informações a todos os órgãos da Administração, que deverão ser prestadas no prazo legal, sob pena de responsabilidade (art. 50, § 2º, da CF); b) convocar Secretários Municipais e responsáveis pela administração direta e indireta, para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições, sob pena de responsabilidade (arts. 50, “caput” e 58, III, da CF); c) criar Comissões Parlamentares de Inquérito, com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, para apuração de fato determinado no interesse público e por prazo certo (art. 58, § 3º, da CF) ; d) aprovar e autorizar determinados atos do Executivo previamente à sua realização, tal como a venda ou aquisição de bens imóveis (art. 49, XVII, da CF) ; e) sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (art. 49, V, da CF); f) julgar o Prefeito, o Vice-Prefeito e os Vereadores por infrações político-administrativas; g) sustar contratos, mediante decreto legislativo (art. 70, § 1º, da CF); h) autorizar o Prefeito e o Vice-Prefeito a se ausentar do Município, quando a ausência exceder a quinze dias (art. 49, III, da CF).
Importante frisar, por um lado, que em respeito ao princípio da separação dos poderes, o controle do Legislativo sobre a Administração é de efeito indireto: “Não pode o Congresso anular atos administrativos ilegais, nem exercer sobre as autoridades executivas poderes de hierarquia ou de tutela” (Meirelles, Hely Lopes, op. cit., p. 781). Por outro lado, o “controle que o Poder Legislativo exerce sobre a Administração Pública tem que se limitar às hipóteses previstas na Constituição Federal, uma vez que implica interferência de um Poder nas atribuições dos outros dois” (Di Pietro, Maria Sylvia, op. cit., p. 704). Assim, a título de exemplo, decidiu o C. Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio de Acórdão relatado pelo Desembargador Renato Sartorelli, julgado em 29 de setembro de 2019, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2067528-56.2019.8.26.0000, ser inconstitucional artigo de lei municipal que autorizava a convocação pessoal do Prefeito pelo Poder Legislativo, aduzindo como razões de decidir: “No exercício de sua função típica de fiscalização, o Poder Legislativo possui, dentre outras, a prerrogativa de solicitar ao Poder Executivo informações sobre assuntos de interesse público, inexistindo, porém, no ordenamento constitucional qualquer norma que autorize a convocação pessoal do Prefeito para prestar esclarecimentos em Plenário”. Também, pelo mesmo motivo, restou decidido pelo mesmo C. Órgão Especial ser inconstitucional o art. 32, inciso IV, da Lei Orgânica do Município de São Paulo, que prevê poder a Câmara Municipal, por suas Comissões permanentes e temporárias, “convocar os Conselheiros do Tribunal de Contas para prestar informações sobre assuntos inerentes às suas atribuições” (ADIn nº 11.754-0/6, Rel. Sales Penteado, j. 31/05/1995).
No que tange ao controle parlamentar financeiro da Administração, previsto nos artigos 31, “caput” e § 1º, 70 e 71 da Constituição Federal, que compreende o controle contábil, financeiro e orçamentário, a Câmara Municipal não atua isolada e diretamente, mas conta com o auxílio e coparticipação do Tribunal de Contas Municipal, por exigir esse controle um conhecimento técnico especializado e um trabalho minucioso, extenso, constante e imparcial. A natureza do controle financeiro é mais delimitada do que a do controle interno e a do controle político, por restringir-se aos aspectos da legalidade, legitimidade e economicidade, não ensejando um controle do mérito do ato administrativo. Convém salientar, no entanto, que a legitimidade e economicidade, como se sabe, exigem o respeito não somente às leis, mas também aos princípios constitucionais, em especial a moralidade e proporcionalidade, não sendo o controle financeiro, em decorrência, uma tarefa meramente formal.
Tal controle parlamentar financeiro não pode ser visto como algo extraordinário e excepcional, mas sim como algo constante e habitual. Por esse motivo, o administrador público sabe que não somente deve obedecer às leis e ao Direito, mas também está obrigado a prestar regulamente contas da sua administração. A sua atuação tem sempre essa dupla preocupação e esforço. A Administração, como a própria palavra dá a entender, é a atividade daquele que não é dono nem senhor absoluto, e, por esse motivo, quem a exerce está submetido ao dever de detalhada prestação de contas, em especial quando se trata de administrar um patrimônio público.
O princípio da prestação de contas da Administração Pública é um princípio sensível em nosso Estado Democrático de Direito, e sua não observância pode acarretar até mesmo a intervenção no Município. E tal princípio seria uma mera formalidade se os órgãos encarregados do minucioso exame e julgamento dessas contas, a Câmara Municipal e o Tribunal de Contas, não gozassem de autonomia e competência para o cumprimento dessa elevada missão, que enseja a adequada destinação do dinheiro público.
Passo agora a me deter no controle exercido pelo Tribunal de Contas. A Constituição Federal especifica em seu arts. 31 e 71, as atribuições desse órgão de auxílio técnico à Câmara Municipal na sua missão de controle externo: apreciar as contas prestadas anualmente do Chefe do Poder Executivo, mediante parecer prévio, que somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal (71, inciso I, e art. 31, § 2º); julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta (inciso II); apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, bem como a das concessões de aposentadorias (inciso III); realizar, por iniciativa própria ou do Poder Legislativo, inspeções e auditorias em quaisquer dos Poderes (inciso IV); aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade da despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei (inciso VIII); assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade (IX); sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara Municipal, etc. As decisões do Tribunal de Contas de que resulte imputação de débito ou multa têm eficácia de título executivo (art. 71, § 3°). Com o fim de que os Conselheiros possam desempenhar com isenção essas atribuições independentes e relevantes, a Constituição da República estende-lhes as garantias e prerrogativas próprias da magistratura (art. 73, § 3º).
Da análise desses dispositivos, verifica-se que, embora o Tribunal de Contas esteja inserido formalmente no Poder Legislativo, como órgão de auxílio, suas atribuições de controle externo não se resumem a uma tarefa subordinada e ancilar. Pode-se falar, também, de relevantes atribuições realizadas com independência pelo Tribunal de Contas, de verdadeira coparticipação no controle externo financeiro da Administração, juntamente com a Câmara Municipal.
Quanto aos incisos I e II, do art. 71 da Constituição, convém destacar: “o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a clara distinção entre: 1) a competência para apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, especificada no art. 71, inciso I, CF/88; 2) e a competência para julgar as contas dos demais administradores e responsáveis, definida no art. 71, inciso II, CF/88 (ADI n° 1.140-5/RR, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 26.9.2003; ADI n° 1.779-1/PE, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 14.9.2001; ADI n° 849-8/MT, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23.4.1999). No primeiro caso, cabe ao Tribunal de Contas apenas apreciar, mediante parecer prévio, as contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo. A competência para julgar essas contas fica a cargo do Congresso Nacional, por força do art. 49, inciso IX, da Constituição. Na segunda hipótese, a competência conferida constitucionalmente ao Tribunal de Contas é de julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio, ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (art. 71, II, CF/88). O exercício dessa competência de julgamento pelo Tribunal de Contas não fica subordinado ao crivo posterior do Poder Legislativo. E a razão é singela: as contas anuais prestadas pelas próprias casas legislativas submetem-se ao controle do Tribunal de Contas, como tem entendido este Tribunal em vários precedentes (ADI 1.140-5/RR, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 26.9.2003; ADI 1.779-1/PE, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 14.9.2001; ADI 1.964-3/ES, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 7.5.1999; ADI n° 849-8/MT, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23.4.1999).” (ADIn 3.715/TO, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 21/08/2014). Nesse sentido, o STF, na ADIn 849/MT, Rel. Min. Celso de Mello, j. 1/07/93, RTJ 152/73, entendeu que somente as contas anuais do Chefe do Poder Executivo são objeto de pronunciamento opinativo do Tribunal de Contas, de maneira que deverá o Tribunal de Contas julgar, e não meramente apreciar, as contas da Mesa da Assembleia.
Ainda, com base no art. 71, inciso II, compete ao Tribunal de contas julgar as contas das fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público, e dos administradores respectivos. Nesse sentido: "Ao Tribunal de Contas da União compete julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (CF, art. 71, II; Lei 8.443, de 1992, art. 1º, I). As empresas públicas e as sociedades de economia mista, integrantes da administração indireta, estão sujeitas à fiscalização do Tribunal de Contas, não obstante os seus servidores estarem sujeitos ao regime celetista." (STF, MS 25.092, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 17/03/06).
Por outro lado, cabe ao Plenário do Poder Legislativo o julgamento das contas do próprio Tribunal de Contas. Nesse sentido: “Legitimidade da competência da Assembleia Legislativa para julgar as contas do Tribunal de Contas do Estado. Reveste-se de plena legitimidade constitucional a norma inscrita na Carta Política do Estado-membro que atribui, à Assembleia Legislativa, competência para efetuar, em sede de fiscalização financeira, orçamentária, contábil, operacional e patrimonial, o controle externo das contas do respectivo Tribunal de Contas. Doutrina. Precedentes. O Tribunal de Contas está obrigado, por expressa determinação constitucional (CF, art. 71, § 4º), aplicável ao plano local (CF, art. 75), a encaminhar, ao Poder Legislativo a que se acha institucionalmente vinculado, tanto relatórios trimestrais quanto anuais de suas próprias atividades, pois tais relatórios, além de permitirem o exame parlamentar do desempenho, pela Corte de Contas, de suas atribuições fiscalizadoras, também se destinam a expor, ao Legislativo, a situação das finanças públicas administradas pelos órgãos e entidades governamentais, em ordem a conferir um grau de maior eficácia ao exercício, pela instituição parlamentar, do seu poder de controle externo. Precedente.” (ADI 687, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-2-95, Plenário, DJ de 10-2-06). E ainda: "Surge harmônico com a Constituição Federal diploma revelador do controle pelo Legislativo das contas dos órgãos que o auxiliam, ou seja, dos tribunais de contas." (STF, Pleno, ADI 1.175/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 4/08/04, DJ de 19-12-06). E também: STF, Pleno, ADI 2.597, Rel. Min. Eros Grau, j.04/08/04, Plenário, DJ de 17-8-07.
Quanto ao inciso III do art. 71, da CF, a apreciação da aposentadoria pelo Tribunal de Contas consiste em uma simples verificação de legalidade, uma vez que a aposentadoria devidamente publicada consiste em um ato perfeito e acabado, exarado pela autoridade Administrativa que detém exclusiva competência constitucional decisória sobre a matéria. Limita-se o Tribunal de Contas, portanto, nessa apreciação de controle externo, a eliminar ou resolver a incerteza do direito ou de uma relação jurídica, com a consequente aprovação e registro respectivo, ou, ao invés, a rejeição do ato e denegação do registro. Tal decisão reveste-se de efeito meramente declaratório, e não constitutivo, condenatório ou mandamental, como leciona Rodolfo de Camargo Mancuso (Sobre a Execução das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas, especialmente a Legitimação, Revista dos Tribunais, volume nº 743, p. 74). Poderá a Corte de Contas, caso detectada a ilegalidade, impor determinações à Administração, e mesmo sustar o ato aposentatório, mas jamais alterá-lo. Na esteira desses princípios, o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado reiteradamente no sentido de que o Tribunal de Contas “só tem uma alternativa: ou julga válida a aposentadoria voluntária nos termos em que foi concedida, ou a julga nula, por ilegal. O que não pode é determinar o registro da aposentadoria em termos diversos dos em que foi ela requerida e deferida” (MS 20.038,RTJ 80/394; Recl. 3.825/190, RT 698/247). Também no mesmo sentido já decidiu o Pretório Excelso que "no desempenho dessa específica atribuição, não dispõe de competência para proceder a qualquer inovação no título jurídico de aposentação submetido a seu exame"; MS 21.466, RTJ 153/151). O STF mantém o entendimento, a meu ver equivocado, de que o ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão é um ato complexo, que somente se aperfeiçoa após seu exame e registro perante a Corte de Contas, porquanto submetido a condição resolutiva (Recurso Extraordinário 195.861/ES, rel. Min. Março Aurélio, Segunda Turma, DJ 17.10.1997; e Mandados de Segurança 24.754/DF, rel. Min. Março Aurélio, Plenário, DJ 18.02.2005). No entanto, Flávio Germano de Sena Teixeira, na excelente obra “O Controle das Aposentadorias pelos Tribunais de Contas”, na esteira da melhor orientação doutrinal e jurisprudencial pátria (STJ, REsp 1.047.524 / SC, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 16/06/2009, p.ex.), nega que o exame de legalidade da aposentadoria pela Corte de Contas configure ato complexo e conclui: “o ato de aposentadoria é ato vinculado e simples, resultando perfeito, completo, com a só manifestação de vontade do órgão administrativo emitente” (Belo Horizonte: Editora Forum, 2004, p.200). A matéria está sob exame no STF, no RE 636.553, com Repercussão Geral reconhecida.
O Tribunal de Contas, nos termos constitucionais expressos, art. 71, inciso IV, da CF, pode realizar por iniciativa própria inspeções e auditorias − o que demonstra a sua independência perante qualquer outro órgão ou Poder. O que não significa que as inspeções e auditorias também não possam e não devam ser realizadas quando se verifique solicitação do Poder Legislativo.
No tocante à faculdade conferida aos órgãos de controle para sustação dos atos da Administração, o art. 71, inciso X, da CF, prevê essa faculdade ao Tribunal de Contas, quando, após assinar prazo para a Administração adotar as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, não restar atendido (art. 71, IX, da CF). Porém, na hipótese de não se tratar de ato, mas sim de contrato já pactuado, a competência passa a ser da Câmara Municipal, a quem cabe diretamente sustar o ajuste, mediante Decreto Legislativo (art. 71, § 1º, da CF). Convém sublinhar que a sustação do ato ou contrato não tem o condão de invalidá-los ou reformá-los, mas apenas de impedir os seus efeitos, tendo em vista o princípio da separação dos poderes e as restrições da natureza específica do controle externo técnico financeiro e orçamentário.
O art. 71 da Constituição não insere na competência do Tribunal de Contas a aptidão para examinar previamente, a validade de contratos administrativos celebrados pelo Poder Público. Por esse motivo, já decidiu o STF ser “inconstitucional norma local que estabeleça a competência do tribunal de contas para realizar exame prévio de validade de contratos firmados com o Poder Público.” (STF, Pleno, ADIn 916, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 02/02/09).
Se o contrato administrativo está em vigor, embora sem o poder de sustação ou de anulação, o Tribunal de Contas poderá determinar a Administração que promova a sua anulação, desde que a Corte de Contas previamente apresente recomendação de correção à autoridade administrativa, e seja desatendido ( arts. 71, IX e X, da CF). E conforme o caso comunicará o fato ao Poder Legislativo, para a imediata sustação ( art. 71, § 1º). “É manifesto que o Tribunal de Contas não tem competência constitucional para declarar a nulidade do contrato” (voto de Sepúlveda Pertence no MS nº 23.560-DF, RTJ 573-610, pág. 609). “O Tribunal de Contas da União - embora não tenha poder para anular ou sustar contratos administrativos - tem competência, conforme o art. 71, IX, para determinar à autoridade administrativa que promova a anulação do contrato e, se for o caso, da licitação de que se originou” (MS 23.550/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).” As decisões do Tribunal de Contas, que são decisões administrativas, não têm a substitutividade própria apenas das decisões judiciais.
Excepcionalmente e dentro de certos limites, tem o Tribunal de Contas o poder de exarar determinações que devem ser atendidas com imediatidade, como no caso de expressa previsão legal (tal como o art. 113, § 2º da Lei 8.666/93, que obriga a autoridade a acatar determinação do Tribunal de Contas em processo licitatório se este solicitou o edital até um dia antes da abertura da proposta), ou em caso de urgência, se desatendida prévia advertência para adotar providências ao exato cumprimento da lei, ou em caso de medida cautelar. O STF entende que o Tribunal de Contas “tem legitimidade para expedição de medidas cautelares, a fim de prevenir a ocorrência de lesão ao erário ou a direito alheio, bem como garantir a efetividade de suas decisões, consoante entendimento firmado pelo STF. Em sendo o provimento cautelar medida de urgência, admite-se sua concessão ‘inaudita altera parte’ sem que tal procedimento configure ofensa às garantias do contraditório e ampla defesa, ainda mais quando se verifica que, em verdade, o exercício dos referidos direitos, observado o devido processo legal, será exercido em fase processual seguinte (...) O poder cautelar também compõe a esfera de atribuições institucionais do Tribunal de Contas, pois se acha instrumentalmente vocacionado a tornar efetivo o exercício, por essa Alta Corte, das múltiplas e relevantes competências que lhe foram diretamente outorgadas pelo próprio texto da Constituição da República. Isso significa que a atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados no art. 71 da Lei Fundamental da República, supõe que se reconheça, a essa Corte, ainda que por implicitude, a possibilidade de conceder provimentos cautelares vocacionados a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário” (STF, Rel. Min. Celso de Mello, MS 26.547, j. 23/05/2007).
Quanto ao poder geral de cautela do controle externo efetuado pelo Tribunal de Contas, a jurisprudência, desde o MS 24.510-7/DF, julgado cautelarmente pelo STF em 2003, tem reconhecido que o Tribunal de Contas possui legitimidade para a expedição de medida cautelar para o fim de suspender imediatamente a eficácia de atos da Administração com o fim de prevenir lesão ao Erário e garantir a efetividade de suas decisões. No MS 26.547/DF, já mencionado, decidiu o STF que “a tutela cautelar apresenta-se como instrumento processual necessário e compatível com o sistema de controle externo, em cuja concretização o Tribunal de Contas desempenha, como protagonista autônomo, um dos mais relevantes papéis constitucionais deferidos aos órgãos e às instituições estatais”. Tal entendimento estende-se também, no meu entender, e até com maior razão, à Câmara Municipal, órgão titular do controle externo.
Não se pode deixar de assinalar, contudo, que a suspensão imediata dos atos ou contratos da Administração, sem a prévia determinação concedendo prazo para a sua regularização, é uma medida excepcional que deve ser devidamente justificada, e encontra limites. Em agosto de 2016, no MS 34.357/DF, decidiu o STF, por despacho monocrático do Ministro Marco Aurélio, a impossibilidade de determinação de medida cautelar do Tribunal de Contas que tornava indisponível bens de empresa particular contratada pela Administração. No entanto, posteriormente, em 22 de novembro do mesmo ano, no MS 34446/DF, a Ministra Rosa Weber decidiu de maneira oposta, sob o seguinte fundamento: “Considerados os precedentes que reconhecem a possibilidade de o Tribunal de Contas da União fiscalizar e impor sanções a particulares, em conjugação com os que afirmam o poder geral de cautela daquele órgão como desdobramento lógico de suas atribuições constitucionais ostensivas, tenho por albergado pela Carta da República, ao menos em juízo perfunctório, o acórdão impugnado neste writ, por meio do qual a autoridade impetrada decretou a indisponibilidade de bens da impetrante”. Na Suspensão de Segurança 4.878/RN, o STF também decidiu pela possibilidade do bloqueio pelo Tribunal de Contas, como medida cautelar, de conta corrente de servidor público, no denominado “Escândalo dos Precatórios do TJ/RN” (Min. Joaquim Barbosa, j. 14/03/2014).
Penso ter desenvolvido alguns aspectos relevantes a respeito do tema que me foi proposto, destacando algumas características das atribuições de controle externo conferidas ao Tribunal de Contas e à Câmara Municipal.
Espero ter contribuído, com o presente trabalho, ao estudo e à melhor compreensão das atividades desenvolvidas por esses indispensáveis órgãos de controle externo dos atos da Administração municipal, e para que sejam reconhecidos como órgãos “amigos do povo”, que contribuem positivamente ao interesse público e ao bem comum.