Jorge Alves Correia (Portugal)
É inegável que o Brasil vive tempos tumultuosos e conturbados após a aprovação pelo plenário da Câmara dos Deputados do impeachment da Presidente Dilma Rousseff, no passado dia 17/04/2016 (367 votos a favor, 137 contra, 7 abstenções e 2 ausências). Não devem os académicos deixar-se levar num emaranhado de avaliações de mérito – positivas ou negativas – sobre as opções políticas fundamentais tomadas. Há muito que já se dizia em Roma: “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”.
No entanto, lançando um olhar externo nesta matéria – na pura ótica do direito público – veremos que, afinal, há que encarar tudo o que vem acontecendo com um movimento dialético de “eterno retorno”. Não foi a primeira vez, nem será seguramente a última. Em boa verdade, tentativas de deposição de governantes marcaram, de forma incontornável, a história e a vida dos Estados Europeus, pelo menos desde o século XI até aos nossos dias. Essa temática é muitíssimo controversa, pois na Europa Continental ela sempre gerou fortes emoções, brigas, regicídios e até sangrentas guerras civis.
Torna-se difícil – senão mesmo impossível – compreender a ideia moderna de Contrato Social sem conhecermos as Grandes Correntes e Escolas do Contratualismo Jusnaturalista e Jusracionalista, que há muito estudaram os problemas da deposição, da perda da confiança (trust) e do direito de resistência contra governantes.
Tudo começou na Idade Média, mais especificamente no século XI. Não obstante grande parte da doutrina imputar à Neo-Escolástica e, em particular, a Francisco Suárez o apuramento do conceito de pacto de sujeição, este surgiu, pela primeira vez nítido no Liber ad Gebehardum, de Manegold de Lautenbach, enquanto pacto, em virtude do qual o povo transfere para o monarca o poder político que detinha sobre si mesmo, sujeitando-se-lhe, mas conservando um direito de resistência: “o povo eleva alguém acima de si para que este reine com soberania legalmente fundada […], porém, se infringir o contrato na base do qual foi eleito (si quando pactum, quo eligitur, infringit) e perturbar o que devia manter em ordem, é lícito e justo que ele assim desvincule o povo da obrigação de lhe continuar sujeito (cum pactum, pro quo constitutus est, constet illum prius irrupisse)” – Liber ad Gebehardum, XXX e XLVII, hrsg. v. K. Francke, M.G. H.: Libelli de Lite, I, 1891). Da obra de Manegold – envolta em grande polémica no seu tempo – resultariam dois esteios fundamentais do contratualismo político moderno e da doutrina da soberania popular: por um lado, a noção de pacto de sujeição e, por outro, o direito de resistência ativa contra o monarca que viole o conteúdo contratual. Não se pense, contudo, que a posição de Manegold se impôs como a mais radical. João de Salisbury (Policraticus, III, 15) vai mais longe e proclamava o direito de matar o monarca que degenerou em tirano, na passagem, hoje bem conhecida: “Porro tirannum occidere non modo licitum est sed aequum et justum. Qui enim gladium accipit, gladio dignus est interire”. Por último, ainda na época medieval, no séc. XIII, a S. Tomás de Aquino, o principal representante da Escolástica, se deve a densificação do designado direito de resistência, subordinando-o a limites intrínsecos, de acordo com a filosofia contratualista medieval (“quoad ei pactum a subditis non reservetur”). Neste ponto, sustentava S. Tomás que a lei e a função do governo consistem na garantia do bem comum da sociedade (bonum commune), pelo que, quando o monarca despreza o bem comum e toma decisões injustas, deve reconhecer-se aos súbditos um direito genérico de resistência e desobediência perante leis contrárias ao bem e aos preceitos divinos (La Monarquía, Tecnos, Madrid, 1989, I, 1, 8 e 9).
Do exposto pode concluir-se que o contratualismo político medieval estabelecia instrumentos de reação dos súbditos contra o poder (arbitrário) dos príncipes ou monarcas (assim também se deverá interpretar o processo que conduziu à feitura da Magna Carta de 1215). Daqui provém a doutrina da legitimidade da resistência contra o tirano, exercida pela comunidade política, diretamente ou através de representantes, com vista à destituição daquele, podendo conduzir (ou não conduzir) ao regicídio.
Todavia, é já na alvorada da modernidade, sobretudo a partir do século XV, que se sedimenta a estrutura territorial do Estado moderno (Stato) e se assiste à institucionalização do poder político. Tal modo de equacionar o Estado, próprio das doutrinas demo-liberais, teve como caraterística comum a compreensão daquele não apenas enquanto uma nova entidade resultante do contrato social, mas a forma que, por assim dizer, tomam os indivíduos ou a multidão (multitude) dos seus contraentes. A ordem política é, na realidade, uma ordem artificial, que se cria e institui por acordo entre os homens. Por isso, a dogmática publicista elabora esquemas regulativos de equilíbrio entre imperium e consenso, de um lado, e de dialética entre política e direito, de outro: o poder político dos príncipes surgia limitado e derivava do consenso popular, tendo o direito de resistência como cláusula de salvaguarda e instrumento político ao serviço do povo, capaz de revolução. No contrato social residia, portanto, o último reduto do poder originário da comunidade política, em “épocas de crise e de turbulência”, invocado, nas palavras de John Locke, como “poder de apelar aos Céus” (Two Treatises of Government and A Letter Concerning Toleration, ed. Ian Shapiro, New Haven, Yale University Press, 2003, II, §240-242).
O contratualismo moderno-iluminista floresceu na Europa seiscentista até ao fim do século XVIII, tendo como os seus máximos expoentes Johannes Althusius, Mario Salamoni, Francisco Suárez, Hugo de Groot (Grócio), Thomas Hobbes, Baruch Spinoza, Samuel Pufendorf, John Locke, Jean Jacques Rousseau e Immanuel Kant. Não se afigura nosso intuito refletir sobre o pensamento jurídico-político desta classe de espíritos – alguns de períodos bem distintos e pertencentes a orientações opostas (para mais desenvolvimentos sobre esta matéria, cfr. Jorge Alves Correia, Contrato e Poder Público Administrativo, Dissertação de Doutoramento, Vol. I, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015). O que importa salientar é que é no quadro da doutrina contratualista liberal e democrática dos séculos XVII e XVIII que se questionam, fortemente os esquemas tradicionais de domínio do político, sugerindo-se o princípio do governo limitado, a divisão e repartição dos poderes estaduais, bem como a garantia de uma esfera de direitos naturais. Foi com base nesta literatura moderno-iluminista que se edificaram os pilares que conduziram às revoluções liberais do século XVIII.
Em rigor, o nosso Estado Constitucional encontra-se umbilicalmente ligado ao advento do contratualismo liberal e democrático, seja no pensamento jurídico anglo-saxónico, seja no quadrante europeu-continental. Entre as várias correntes contratualistas que poderíamos analisar, existe uma – a corrente anglo-saxónica – que influencia diretamente a construção do instituto do impeachment. O impeachment foi usado pela primeira vez na política britânica, tendo posteriormente sido consagrado nas Constituições de Virgínia (1776) e de Massachusetts (1780). Ele é clara e inequivocamente uma decorrência do teorema do pacto ou contrato social.
Deste modo, há muito do húmus do pensamento de John Milton e de John Locke por detrás daquela construção. No pensamento político do britânico John Locke pode afirma-se que a doutrina do contrato social de matriz liberal (contratualismo político liberal) reúne os ingredientes clássicos fundamentais: indivíduo no centro da organização política, construção do Estado a partir da autonomia moral, direitos naturais existentes a priori, soberania conferida à comunidade política e relevância prática do conceito de “trust”, tornando possível a deposição dos governantes quando o exercício do poder se revele contrário aos fins do pacto e viole a “confiança política”. Ao contrário de Suárez e Pufendorf, para Locke o contrato social integra dois níveis ou degraus (two-stage process), apontando para que os indivíduos se associem, primeiramente, em comunidade política (individual consent, expresso por unanimidade), antes de acordarem, através da comunidade política e pela maioria dos associados que a integram, a constituição do Estado e a forma de regime político (majority consent). O primeiro momento traduz o social compact propriamente dito – na passagem do “estado da natureza” à “sociedade política” – ao passo que o segundo configura um “trust”, quer dizer, um ato que expressa a confiança política da vontade maioritária da comunidade no futuro governo, legitimando a sua ação (ou, fundamentando a perda da sua legitimidade) – Two Treatises, cit., II, §132-133.
O poder político do Estado assenta, assim, numa base de confiança (trust), para efeitos de representação política, e tem em vista apenas o bem público (the peace, the safety and public good of the people). Caso o governo não desempenhe as missões que lhe foram confiadas e traia a confiança do povo, perde a razão da sua existência (Two Treatises, cit., II, §210) e cessa o dever de obediência dos súbditos. Quando Locke admite o direito de resistência do povo, tal deve ser entendido enquanto um instrumento de restauração da contratualidade infringida (ou, mais rigorosamente, da “confiança” [trust] violada).
Com efeito, a ideologia Whig de Locke vai ao ponto de afirmar que, sempre que os representantes do Estado violarem a confiança política (breach of trust), é legítima a resistência e a revolta (rebellion) contra os mesmos (Two Treatises, cit., II, §232). Em última instância, o próprio povo ficaria permanentemente detentor do poder supremo no Estado – “a comunidade retém perpetuamente o poder supremo” (Two Treatises, cit., II, §149) –, pois, “sendo o poder político meramente um poder fiduciário para a prossecução de determinados fins” (ibidem), o povo ficaria também detentor de um poder supremo de o remover ou alterar, quando julgar que aquele agiu contra a confiança nele depositada.
Eis em linhas gerais como o pensamento político contratualista europeu influenciou o instituto do impeachment (e também o recall político), consagrado nas Leis fundamentais de vários países do continente americano. O princípio do Estado de Direito Democrático, baseado na soberania popular, postula um dever de prestação de contas pelos responsáveis (por atos e omissões). Trata-se de uma exigência logo inscrita, na sequência da Revolução Francesa, no artigo 15.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “a sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua administração”. É o poder originário, isto é, o povo que se encontra representado no Parlamento que é o guardião do modo como o poder executivo exerce as suas missões de interesse público. Atualmente, uma boa parte desse controlo é também exercido pela opinião pública e pelos cidadãos no espaço mediatizado da hodierna sociedade em rede.
Duas notas finais. Primeiro, os conceitos de “crime de responsabilidade”, “improbidade”, “quebra grave da confiança” ou “estelionato eleitoral” – pressupostos jurídicos abstratos para o desencadeamento de um processo de impeachment contra titulares de cargos políticos – dependem, em último termo, da estrutura jurídica fundamental que a Constituição e os atos normativos públicos estabelecerem e definirem. Segundo, saber quando e em que termos deverá concretamente avançar um processo de impeachment contra titulares de cargos políticos é uma decisão que cabe aos órgãos de controlo de um Estado Constitucional, matéria que não iremos, hic et nunc, apreciar. Como dissemos, a nossa perspetiva é puramente de direito público e não de ciência ou de analista político. Em boa verdade, à luz de uma perspetiva publicista, não há como negar que o problema do impedimento e da deposição de governantes constitui uma figura há muito inscrita na história das ideias políticas, umbilicalmente ligada ao constitucionalismo moderno, tanto anglo-saxónico como continental-europeu.
Portanto, na substância, não mudou o sentido desta velha figura do pensamento jurídico publicista. Mudaram, antes, os seus protagonistas e especialmente o seu modo de aplicação e de efetivação na praxis político-constitucional.