Joel de Menezes Niebuhr (SC)
1. CRÍTICA AO REGIME ESPECIAL DE LICITAÇÕES E CONTRATOS PARA AS ESTATAIS
A Lei n. 13.303, de 30 de junho de 2016, versa sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias. Parte substancial, mais da metade da Lei n. 13.303/2016, do artigo 27 ao 85, trata de licitações e contratos.
A Lei n. 13.303/2016 prescreve um regime próprio de licitações e contratos para as estatais, que exclui o regime tradicional de licitações, direcionado para a Administração Pública em geral, baseado na Lei n. 8.666/1993, na Lei n. 10.520/2002 (modalidade pregão) e na Lei n. 12.462/2012 (Regime Diferenciado de Contratações - RDC). Doutro lado, exclusivamente para as empresas públicas e sociedades de economia mista, a Lei n. 13.303/2016.
Essa ideia, de criar um regime de licitações e contratos específico para as empresas públicas e sociedades de economia mista não é nova, está estampada no inciso III do § 1.º do artigo 173 da Constituição Federal:
“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1.º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;”
A Constituição Federal prevê regime especial apenas para as empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica, que competem com a iniciativa privada em regime de concorrência. O texto constitucional não prevê tratamento especial para as estatais prestadoras de serviços públicos.
É curioso que a Lei Federal n. 13.303/2016 versa sobre todas as empresas públicas e sociedades de economia mista, não só as que exploram atividade econômica, porém também as que prestam serviços públicos. Assim, a Lei Federal n. 13.303/2016 vai para além do previsto no § 1.º do artigo 173 da Constituição Federal, que dispõe apenas sobre as que exploram atividade econômica. Ela equipara e dá o mesmo tratamento para todos os tipos de empresas públicas e sociedades de economia mista.
De toda forma, a justificativa, que perpassa o texto constitucional e que empresta fundamento à ideia de prescrever regime próprio de licitações e contratos, é que as empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica atuam no mercado em regime de concorrência com as demais empresas privadas e, por corolário, precisam de regras mais flexíveis sobre licitações e contratos, para assegurar competitividade, sem desobedecer os princípios de Direito Administrativo.
Pondera-se que, em grande parte, as empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos não atuam em regime de concorrência. A justificativa que costuma ser dada para o regime próprio de licitações e contratos destinado às que exploram atividade econômica não se aplica às prestadoras de serviços públicos. No entanto, o Legislativo deu de ombros. Por certo, não viu sentido em prescrever regras apenas para as que exploram atividade econômica, excluindo as prestadoras de serviços públicos.
Sob esse quadro, na minha percepção, não há justificativa lógica para prever regime especial de licitações e contratos para as estatais. Explico melhor.
Se as normas da Lei n. 13.303/2016 são melhores, oferecem mais flexibilidade e não contrariam o regime jurídico administrativo, o que se admite por argumentação, não há razão para restringi-las às empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica e excluir as prestadoras de serviços públicas. Que ambas sejam beneficiadas. Esse é o teor da Lei n. 13.303/2016.
Sob essa premissa hipotética, se as normas da Lei n. 13.303/2016 são melhores, mais flexíveis e não contrariam o regime jurídico administrativo, não há razão para não estendê-las à Administração Pública em geral. Não é plausível que os demais órgãos e entidades fiquem aprisionadas a um conjunto de normas ultrapassado e cada vez mais confuso. Seria melhor que a Administração Pública, não apenas as estatais, fosse supostamente beneficiada com as novas normas da Lei n. 13.303/2016. Se a nova Lei é virtuosa, poderia valer para todos. Não foi essa a opção do Legislador, dado que a Lei n. 13.303/2016 restringe-se às estatais. Daí a minha crítica.
Com os dois regimes, um para a Administração Pública em geral e outro para as empresas públicas e sociedades de economia mista, o tema das licitações e contratos fica cada dia mais complicado. Já se convivia com um apanhado de leis sobre o assunto, que são contraditórias entre si. Agora esse regime confuso é fragmentado, de um lado todas as leis até então vigentes, para a Administração Pública em geral, e do outro lado a Lei n. 13.303/2016, para as empresas públicas e sociedades de economia mista.
Há normas muito parecidas em toda legislação sobre licitações e contratos, mas, por vezes, uma vírgula fora do lugar, uma expressão diferente, um aposto que passa desapercebido, e o entendimento muda totalmente. E, noutras passagens, para os mesmos fatos, há normas bem diferentes ou previsões normativas que existem num regime e não existem noutro. Daí, sobre situações de fato idênticas, passa-se a ter interpretações divergentes.
Por exemplo, o § 4.º do artigo 31 da Lei n. 13.303/2016 autoriza as empresas públicas e as sociedades de economia mista a adotarem procedimentos de manifestação de interesse privado, algo que, até então, costumava ser realizado apenas para projetos de concessão de serviço público ou de parcerias público-privadas. Significa que empresas privadas podem contribuir com estudos técnicos e projetos para futuras licitações e contratos pretendidos pelas estatais, quaisquer que sejam tais licitações e contratos. Para a Administração Pública em geral não existe tal dispositivo. Então, o entendimento, com a Lei n. 13.303/2016, é que para as estatais pode e para a Administração Pública em geral não pode. Na prática isso não é plausível, porque não há explicação consistente para impedir a Administração Pública em geral de receber estudos e projetos privados, porém é o que decorre da multiplicidade de regimes de licitações e contratos.
No frigir dos ovos, seria melhor uma Lei somente, que tratasse de licitação e contrato com começo, meio e fim, de forma coerente, racional, com instrumentos modernos, que dotasse todas as entidades ligadas à Administração Pública, submetidas que são todas elas aos princípios administrativos, de recursos para que sejam eficientes.
Dito isso, sigo em frente com comentários às normas sobre licitações e contratos da Lei n. 13.303/2016.
2. A SEMELHANÇA COM O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES -RDC
Percebe-se uma grande mistura na Lei n. 13.303/2016: um pouco da Lei n. 8.666/1993, um pouco da Lei n. 10.520/2002 (pregão) e muito da Lei n. 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações - RDC), com algumas novidades.
Bom, as principais características das licitações pelo Regime Diferenciado de Contratações - RDC são: inversão das fases (primeiro julgamento e depois habilitação), etapa de lances (com modos de disputa aberto e fechado), recurso concentrado ao final, orçamento sigiloso e contratação integrada. As três primeiras características, diga-se por justiça, o Regime Diferenciado de Contratações - RDC incorporou da modalidade pregão. Todas as cinco estão presentes na Lei n. 13.303/2016, ainda que com algum temperamento. Afora isso, encontram-se nas licitações da Lei n. 13.303/2016 outras características do Regime Diferenciado de Contratações, como possibilidade de remuneração variável, contratações simultâneas, normas sobre sustentabilidade, critérios de desempate etc.
Pode-se dizer, sem muito medo de errar, que as licitações da Lei n. 13.303/2016 são as licitações do Regime Diferenciado de Contratações – RDC, com alguns avanços. É uma versão turbinada das licitações do Regime Diferenciado de Contratações – RDC.
Relembre-se que o Regime Diferenciado de Contratações - RDC nasceu com a mira voltada para as licitações da Copa do Mundo e da Olimpíadas. Por meio de sucessivas medidas provisórias, o Governo foi ampliando o uso do Regime Diferenciado para vários segmentos, inclusive para as obras do desidratado PAC.
A intenção do Governo, relativamente visível, é expandir o Regime Diferenciado de Contratações - RDC, para que ele passe a valer para todas as situações e não mais apenas em hipóteses restritas e específicas. Em 2014, o Governo foi mal-sucedido em tentar estendê-lo para todas as licitações. Em 2015, uma nova tentativa, meio enviesada: inseriu-se na tramitação da Medida Provisória n. 678/2015, cujo teor tratava da adoção do Regime Diferenciado de Contratações – RDC no âmbito da segurança pública e em estabelecimentos penais, dispositivo prevendo sua adoção para obras e serviços de engenharia relacionados à mobilidade urbana ou à ampliação de infraestrutura logística. Esse permissivo é bem amplo, o Regime Diferenciado de Contratações – RDC seria, na prática, estendido para quase todas as obras de engenharia. A Medida Provisória foi convertida na Lei n. 13.190/2015. Todavia, o intento do Governo bateu na trave, porque o Supremo Tribunal Federal, nos autos do MS n. 33889 MC/DF, suspendeu cautelarmente o dispositivo da Lei n. 13.190/2015, sob a alegação de que se tratava de matéria estranha à originalmente versada na Medida Provisória n. 678/2015.
Sob esse quadro, as licitações da Lei n. 13.303/2016 compõem o movimento do Governo de estender as licitações do Regime Diferenciado de Licitações – RDC. Adotou-se estratégia diferente desta vez. Não se propôs alteração na Lei n. 12.462/2011, propôs-se uma nova Lei, para as empresas públicas e sociedades de economia mista. Nesta nova Lei, de n. 13.303/2016, nem se fala, expressamente, em Regime Diferenciado de Contratações – RDC. Passou desapercebido, porém, no fundo, as regras de licitação da Lei n. 13.303/2016 são as regras de licitação do Regime Diferenciado de Licitações – RDC. Ou seja, uma manobra para estender o Regime Diferenciado de Licitações - RDC sem mexer na Lei n. 12.462/2011, que lhe disciplina, e sem sequer mencionar o seu nome. Mas, ao fim e ao cabo, lá estão as mesmas regras de licitação, pelo menos em essência, do Regime Diferenciado de Licitações – RDC. A Lei n. 12.462/2011 gerou um filhote.
3. A GRANDE NOVIDADE: CONTRATAÇÃO SEMI-INTEGRADA
A principal crítica direcionada ao Regime Diferenciado de Contratações – RDC é que ele autoriza o lançamento de licitações sem projeto básico. É preciso esclarecer que essa possibilidade é exceção no Regime Diferenciado de Contratações – RDC, cabe apenas numa das espécies de empreitada, chamada contratação integrada, que somente pode ser utilizada para objetos inovadores, com tecnologia de domínio restrito ou com possibilidade de execução por meio de diferentes metodologias.
Na contratação integrada, o vencedor da licitação, realizada apenas com anteprojeto, fica encarregado dos projetos e da execução da obra ou do serviço. O mote da contratação integrada é o insucesso recorrente da Administração Pública com os projetos, que geram aditivos em excesso na fase de execução do contrato. Então, a Administração Pública larga mão dos projetos, já que ela não consegue produzi-los dentro dos mínimos padrões de qualidade. A vantagem é que, se aparecem erros de projeto durante a fase de execução do contrato, o contratado não faz jus a aditivos. É que o erro, nessa situação, foi causado pelo próprio contratado, porque o projeto é dele. A desvantagem é que a licitação sem projeto é, para falar o mínimo, estranha, porque os licitantes apresentam as suas propostas sem terem uma base de informações comuns suficientes, o que pode comprometer a isonomia e a objetividade no julgamento das propostas.
Diante disso, em interpretação acertada da Lei n. 12.462/2011, o Tribunal de Contas da União impôs restrições ao uso da contratação integrada, exigindo justificativas técnica e econômica rigorosas (Acórdão n. 1399/2014, Plenário). O entendimento do Tribunal de Contas da União é que a contratação integrada é exceção, que somente pode ser utilizada para casos pontuais, cercados de justificativas.
A Lei n. 13.303/2016 não poderia desconsiderar a posição do Tribunal de Contas da União e querer que a contratação integrada virasse regra. Daí, para não bater de frente, criou uma espécie de “meia” contratação integrada. Preferiu chamar de contratação semi-integrada, conforme inciso V do seu artigo 42. Em bom português, contratação integrada licitada com projeto básico.
Aliás, noticie-se que a Administração já tentou lançar licitação sob o regime de contratação integrada mesmo dispondo de projeto, no caso de projeto executivo. No entanto, a licitação fez água, o Tribunal de Contas da União não gostou. Firmou posição que, se a Administração dispõe do projeto executivo, não cabe a contratação integrada (TCU, Acórdão n. 2209/2015, Plenário). A Lei n. 13.303/2016 deu uma meia volta no Tribunal de Contas da União e criou a contratação semi-integrada.
O inciso V do artigo 43 da Lei n. 13.303/2016 estabelece que a contratação semi-integrada deve ser utilizada “quando for possível definir previamente no projeto básico as quantidades dos serviços a serem posteriormente executados na fase contratual, em obra ou serviço de engenharia que possa ser executado com diferentes metodologias ou tecnologias”.
O inciso IV do § 1.º do artigo 42 da Lei n. 13.303/2016 prevê que, “na contratação semi-integrada, o projeto básico poderá ser alterado, desde que demonstrada a superioridade das inovações em termos de redução de custos, de aumento da qualidade, de redução do prazo de execução e de facilidade de manutenção ou operação”.
O § 4.º do artigo 42 da Lei n. 13.303/2016 determina que a contratação semi-integrada é a regra nas contratações de obras e serviços de engenharia promovidas pelas empresas públicas e sociedades de economia mista. Só pode deixar de ser utilizada com as devidas justificativas. Daí se antevê a sua importância.
O inciso IV do § 1.º do artigo 42 da Lei n. 13.303/2016 prescreve que, “na contratação semi-integrada, o projeto básico poderá ser alterado, desde que demonstrada a superioridade das inovações em termos de redução de custos, de aumento da qualidade, de redução do prazo de execução e de facilidade de manutenção ou operação”. Ou seja, os licitantes terão a possibilidade de propor alterações no projeto básico, não estão vinculados ao projeto básico.
Em complemento, o § 3.º do mesmo artigo 42 enuncia que, “nas contratações integradas ou semi-integradas, os riscos decorrentes de fatos supervenientes à contratação associados à escolha da solução de projeto básico pela contratante deverão ser alocados como de sua responsabilidade na matriz de riscos.”
Pelo menos quatro aspectos devem ser frisados.
O primeiro diz respeito à utilização da contratação semi-integrada, quando é obrigatória e quando ela pode ser afastada.
Pois bem, a contratação semi-integrada pressupõe obra e serviço de engenharia que possam ser executados com diferentes metodologias ou tecnologias. Praticamente todos os serviços e obras podem sê-lo. O ponto não deveria ser esse. O ponto deveria ser se as empresas públicas ou sociedades de economia mista querem admitir diferentes metodologias ou tecnologias em suas licitações ou se, por sua avaliação técnica, elegeram-na de antemão.
Numa análise mais ligeira, parece que os dispositivos supracitados suprimiram a competência das empresas públicas e sociedades de economia mista de eleger, de antemão, a metodologia ou tecnologia a ser adotada nos seus contratos. Isso porque, se a obra ou serviço admite diferentes metodologias ou tecnologias, seria obrigatório, em regra, o uso da contratação semi-integrada e nela a possibilidade do oferecimento pelos licitantes de metodologias ou tecnologias diferentes.
A solução, todavia, é outra. Sucede que o § 4.º do artigo 42 da Lei n. 13.303/2016 permite a não utilização da contratação semi-integrada, desde que com a devida justificativa. A justificativa seria justamente que a empresa pública ou a sociedade de economia mista avaliou previamente todas as metodologias e tecnologias disponíveis e decidiu eleger uma de antemão. Logo, no exercício de sua discricionariedade, não permite que os licitantes ofereçam propostas que alterem o projeto básico, com novas metodologias e tecnologias. Então, as empresas públicas e sociedades de economia mista ainda gozam de competência para definir, no edital de licitação, uma única metodologia e tecnologia para a execução de suas obras e serviços de engenharia, hipótese que serve de justificativa para o afastamento da contratação semi-integrada.
Advirta-se que a escolha prévia e fechada da metodologia e tecnologia das obras ou serviços de engenharia já no edital de licitação não deve ser a regra nas empresas públicas e sociedades de economia mista, sob pena de frustrar o § 4.º do artigo 42 da Lei n. 13.303/2016, fazendo letra morta da norma cujo teor preconiza que “no caso de licitação de obras e serviços de engenharia, as empresas públicas e as sociedades de economia mista abrangidas por esta Lei deverão utilizar a contratação semi-integrada [...]”. A decisão do Legislador, que deve ser respeitada, é que a contratação semi-integrada seja a regra e não a exceção. Por conseguinte, em regra, deve-se admitir, na licitação, o oferecimento de nova metodologia ou tecnologia, de modo a viabilizar a contratação semi-integrada. Apenas em casos excepcionais, e aqui está o núcleo da justificativa que deve ser apresentada pelas estatais, é que é admitido trazer solução fechada no edital de licitação, devendo demonstrar as razões para não admitir outra metodologia ou tecnologia.
O segundo aspecto envolve o modo de avaliação da nova metodologia ou tecnologia que será apresentada pelos licitantes. As empresas públicas e sociedades de economia mista deverão estabelecer os critérios para a avaliação nos editais, que deverão ser objetivos. Também precisam sopesar tais critérios com o preço. Por exemplo, licitante propôs tecnologia considerada melhor, porém mais cara. Como comparar, com qual proporção, proposta de outro licitante que traz tecnologia pior e mais barata? A Lei n. 13.303/2016 não dá pista de como isto deve ser feito. Infelizmente, as estatais não estão preparadas para tais avaliações, como de resto a Administração Pública em geral. A contratação semi-integrada pode até ser positiva, porém, salta aos olhos, não é compatível com a realidade das estatais brasileiras. Elas não estão preparadas hoje e, se não houver alguma mudança realmente significativa nas suas gestões, também não estarão no futuro.
Daí vem o terceiro aspecto, centrado na subjetividade de tais avaliações. A escolha dos critérios para a avaliação já é em boa dose subjetiva. A avaliação, propriamente dita, também não escapa da subjetividade. Ou seja, a contratação semi-integrada amplia o espaço de discricionariedade para a avaliação da proposta mais vantajosa. Pondera-se que os desvios (corrupção num sentido amplo) florescem nesses espaços de discricionariedade mais alargados. A contratação semi-integrada, por todas essas razões, abre um caminho perigoso. Pretensamente, pelo menos é o que se anunciava publicamente, a Lei n. 13.303/2016 vinha em sentido oposto, para combater os desvios nas estatais.
O quarto aspecto, que também vai causar polêmica, envolve os aditivos decorrentes de contratação semi-integrada. Veja-se que o projeto básico é da empresa pública ou da sociedade de economia mista, porém os licitantes podem propor soluções diferentes. O § 3.º do artigo 42 da Lei n. 13.303/2016 tem uma redação confusa, afirma que “os riscos decorrentes de fatos supervenientes à contratação associados à escolha da solução de projeto básico pela contratante deverão ser alocados como de sua responsabilidade na matriz de riscos.” Enfim, não se discute que sobre as novas soluções propostas pelo próprio contratado ele não terá direito ao aditivo. Se a solução proposta não for acertada, o contratado deverá corrigi-la às suas expensas, dado que ele que a propôs. No entanto, e se o problema já estava no projeto básico elaborado pela Administração? A tendência inicial seria a de considerar que o contratado teria direito ao aditivo. Em sentido contrário, poder-se-ia alegar que, se o contratado ofereceu na licitação uma solução alternativa diferente da prevista pela Administração, ele teria de harmonizá-la com todo o projeto básico e que poderia ser responsabilizado, então, por todo o projeto básico. Para que o contratado não fosse responsabilizado, ter-se-ia de demonstrar que a nova solução proposta por ele não afeta a parte do projeto básico que depois, durante o contrato, revelou-se defeituosa. Esse critério tem o potencial de gerar litígios intermináveis, em desalinho à segurança jurídica.
4. OUTRAS NOVIDADES
O regime de licitações da Lei n. 13.303/2016 vem com várias outras novidades, talvez não tão importantes quanto a contratação semi-integrada, mas que mudam o panorama tradicional. Pontuo algumas.
Atrai a atenção o aumento dos limites de valor para as dispensas de licitação, para obras e serviços de engenharia em até R$ 100 mil e para demais serviços e compras em até R$ 50 mil, tudo conforme os incisos I e II do artigo 29 da Lei n. 13.303/2016. Os valores parecem-me excessivos. Até então, para as empresas públicas e sociedades de economia mista, conforme parágrafo único do artigo 24 da Lei n. 8.666/1993, eram de R$ 30 mil e R$ 16 mil. Não é adequado ampliar assim os casos de dispensa de licitação, sobremodo diante dos avanços do pregão eletrônico, por meio do qual as licitações ganharam agilidade e tornaram-se menos onerosas para a Administração Pública. Com o novo dimensionamento das dispensas de licitação, a Lei n. 13.303/2016 caminha na direção de maximizar a discricionariedade das estatais para escolherem seus contratados, alargando os flancos para desvios. A flexibilização ocorre no lugar errado.
O § 4.º do artigo 31 da Lei n. 12.303/2016 prevê a possibilidade da adoção de procedimento de manifestação de interesse privado, por meio do qual, antes da licitação, interessados podem oferecer estudos e projetos às empresas públicas e sociedades de economia mista. Ótima medida, que deveria ser estendida para todas as licitações públicas, da Administração Pública em geral.
O inciso IV do artigo 32 da Lei n. 13.303/2016 afirma que o pregão deve ser utilizado preferencialmente para a aquisição de bens e serviços comuns. A norma é desnecessária, haja vista que o procedimento de licitação previsto na Lei n. 13.303/2016 poderia ser considerado como uma modalidade própria, tal qual no Regime Diferenciado de Contratações – RDC. Contudo, em face do dispositivo, será necessário conciliar as novidades da Lei n. 13.303/2016 com a sistemática da Lei n. 10.520/2002, o que deve gerar dificuldades. A questão, em síntese, é a seguinte: em caso de aquisição de bens ou serviços comuns promovida por estatal, havendo contradição entre a Lei n. 13.303/2016 e a Lei n. 10.520/2002, qual deve prevalecer? A Lei n. 13.303/2016 não oferece resposta.
O artigo 34 da Lei n. 13.303/2016 estatui que o valor estimado do contrato será sigiloso, tal qual no Regime Diferenciado de Contratações – RDC. Serão os mesmos questionamentos, críticas e dificuldades operacionais do RDC.
O incisos do artigo 38 da Lei n. 13.303/2016 impedem de participar da licitação empresa que tenha sócio ou administrador que faça parte do quadro societário de uma outra empresa impedida de participar de licitação. Ou seja, o impedimento desborda da empresa penalizada, atinge outra empresa, apenas porque tem sócio comum com empresa penalizada. Veja-se que estender a penalidade aplicada a uma empresa para outra que participe da licitação em fraude, para encobrir a empresa penalizada, é uma coisa. Outra coisa, com implicações totalmente diferentes, é estender a penalidade, sem comprovação de fraude, à empresa apenas porque tem sócio comum com outra empresa anteriormente penalizada. O dispositivo é flagrantemente inconstitucional, opõe-se ao princípio de que a pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado, entabulado no inciso XLV do artigo 5.º da Constituição Federal.
O inciso X do artigo 42 da Lei n. 13.303/2016 tornou obrigatória a matriz de risco, que é “cláusula contratual definidora de riscos e responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação [...]”. A inovação é positiva. Pondera-se, entretanto, que a matriz de risco não deve alocar todos os riscos na compita da empresa contratada, de modo a obstaculizar o direito dela ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Se o fizer, estará violando o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal.
Os incisos do artigo 47 da Lei n. 13.303/2016 permitem que, para as aquisições de bens, as estatais indiquem marcas, desde que com as devidas justificativas, exijam amostras e certificação de qualidade. Até aqui nenhuma novidade, o mesmo já havia sido previsto na Lei n. 12.462/2011. A novidade é que o parágrafo único do artigo 47 prescreve que a certificação deve ser dada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou por instituição credenciada pelo Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro).
Quanto a aspectos procedimentais, o artigo 56 da Lei n. 13.303/2016 permite a correção de defeitos das propostas. A desclassificação somente deve acontecer diante de defeitos insanáveis, tal qual previsto na Lei n. 12.462/2011. O artigo 58 da Lei n. 13.303/2016 confere margem de discricionariedade para eleger os documentos de habilitação. E o artigo 59 prevê apenas uma fase recursal, tal qual na Lei n. 10.520/2002 e na Lei n. 12.462/2011.
O artigo 66 da Lei n. 13.303/2016 faz referência ao sistema de registro de preços. O § 1.º prescreve que “poderá aderir ao sistema referido no caput qualquer órgão ou entidade responsável pela execução das atividades contempladas no art. 1.º desta Lei.” A redação é truncada. “Aderir ao sistema”? Será que o legislador queria prever a possibilidade de “adesão à ata de registro de preços”, que é coisa diferente, conforme previsão do Decreto n. 7.892/2013? Parece que não, dado que o dispositivo não fixa nenhum limite ou parâmetro para a tal adesão. A palavra “adesão” foi mal posta, causa confusão.
Em relação aos contratos, a Lei n. 13.303/2016 praticamente seguiu as regras da Lei n. 8.666/1993, que são muito ruins. Falta segurança jurídica para os contratados, que ficam à mercê da Administração Pública. O que se destaca é o artigo 71 da Lei n. 13.303/2016, cujo teor definiu o prazo de cinco anos para os contratos administrativos das estatais, que podem ser ampliados sob certos pressupostos. Note-se que a Lei n. 13.303/2016 é omissa sobre regras de fiscalização, recebimentos, pagamentos e rescisão. Enfim, um arremedo malfeito das normas da Lei n. 8.666/1993 sobre contratos, que são péssimas. Perdeu-se oportunidade para avançar.
5. A VIGÊNCIA DA LEI
O artigo 97 da Lei n. 13.303/2016, com objetividade, prescreve que ela entra em vigor na data da sua publicação. Sem embargo, o artigo 91 da mesma Lei estabelece o seguinte:
“Art. 91. A empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta Lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei.
§ 1.o A sociedade de economia mista que tiver capital fechado na data de entrada em vigor desta Lei poderá, observado o prazo estabelecido no caput, ser transformada em empresa pública, mediante resgate, pela empresa, da totalidade das ações de titularidade de acionistas privados, com base no valor de patrimônio líquido constante do último balanço aprovado pela assembleia-geral.
§ 2.o (VETADO).
§ 3.o Permanecem regidos pela legislação anterior procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até o final do prazo previsto no caput.”
De acordo com o dispositivo supracitado, as estatais que já existem dispõem de 24 meses para promoverem adaptações para o cumprimento da Lei n. 13.303/2016. Antes disso, conclui-se, não precisam cumpri-la. A mesma regra vale para as licitações e contratos, de acordo com o § 3.º do mesmo artigo. Ou seja, licitações iniciadas ou contratos celebrados dentro do período de 24 meses a contar da publicação da Lei n. 13.303/2016 seguem a legislação tradicional, não devem seguir, ainda que as estatais queiram, o novo regime de licitações e contratos.
A Lei n. 13.303/2016, na prática, somente tem vigência imediata para novas estatais, criadas a partir da publicação da Lei, em 01 de julho de 2016. Como não se antevê no horizonte a criação de qualquer estatal relevante, o novo regime de licitações e contratos permanece adormecido até que se crie alguma ou por dois anos, o que é tempo demais. Um prazo de seis meses, que chegou a ser sugerido no Congresso, seria mais do que suficiente para que as estatais fossem adaptadas e começassem a cumprir o novo regime.
O problema é que o Governo e o Congresso alardearam a Lei n. 13.303/2016 como algo prioritário e urgente, algo que deveria moralizar as estatais, cujas reputações são afetadas pelos escândalos de corrupção. O Presidente interino comemorou a aprovação, fez esforço nessa direção, queimando cacife político. Não tem pé nem cabeça tanto alvoroço para legislação que, na prática, somente vai começar a surtir efeito em dois anos. O discurso político em torno do novo estatuto das estatais, postergado para dois anos, não passa de embuste.