João Paulo Fanucchi de Almeida Melo (MG)
O Projeto de Lei nº 1602/2015, de autoria do Vereador e Presidente da Câmara Municipal de Belo Horizonte/MG, Wellington Magalhães, do PTN, determinava o fechamento de supermercados e hipermercados localizados na capital aos domingos, e a aplicação de penalidades em caso de descumprimento da imposição, nos seguintes termos:
Art. 1º - Os supermercados e hipermercados localizados em Belo Horizonte não poderão funcionar aos domingos.
Art. 2º - A infração a esta Lei enseja a aplicação das seguintes penalidades:
I – multa no valor de R$ 50.000,00;
II – multa no valor diário de R$ 100.000,00 na hipótese de 1ª e 2ª reincidência;
III – cassação do alvará.
A justificativa apresentada para tanto foi no sentido de que o trabalho aos domingos só deve ser admitido em atendimento a necessidades imediatas e emergenciais de lazer das famílias, o que não seria o caso de supermercados e hipermercados. Além disso, salientou-se que os profissionais do comércio devem ser preservados, de modo a lhes serem garantido descanso, lazer e convívio familiar, tudo em favor da saúde mental e social dos mesmos.
Submetido à apreciação do Plenário em 1º turno, o PL nº 1602/2015 foi aprovado com 29 votos “sim”, 04 “não” e 02 abstenções. Ressalte-se que eram necessários 21 votos “sim” para que houvesse a aprovação.
Importante mencionar, ainda, que não foi a primeira vez que um projeto como este foi apresentado em Belo Horizonte, tendo o assunto, na realidade, voltado à tona neste ano. Fato é que em outras cidades, como em Vitória/ES, por exemplo, o fechamento destes estabelecimentos aos domingos ainda prevalece.
Em Belo Horizonte, além de o tema ter sido debatido em Audiência Pública, foi criada uma enquete no site da Câmara para que fosse verificada a opinião popular sobre o assunto, tendo o resultado (84% contra) contribuído para que os belo-horizontinos se vissem livres da pretensão externada no referido projeto de lei.
No entanto, em que pese a solução política ter sido obtida, ao menos momentaneamente, ainda é cabível uma reflexão do tema no plano jurídico.
É o que se passa a fazer.
Como se nota do relato acima, a justificativa apresentada para o Projeto de Lei em discussão estaria amparada em aspectos baseados no descanso, lazer, convívio familiar e saúde daqueles que trabalham aos domingos.
No entanto, por outro lado, direitos diversos são sustentados pelos supermercados, hipermercados e consumidores.
Argumenta-se, por exemplo, a violação à livre iniciativa e à livre concorrência, de modo que o Estado estaria extrapolando a sua função constitucional positivada na ordem econômica, ou seja, ao invés de estar agindo como regulador, planejador e fomentador, estaria sendo, desnecessariamente, interventor.
Importante ressaltar que, no âmbito infraconstitucional, a matéria é regulada pela Lei Federal nº 10.101/200, que, em seu artigo 6º determina que:
Art. 6º. Fica autorizado o trabalho aos domingos nas atividades do comércio em geral, observada a legislação municipal, nos termos do art. 30, inciso I, da Constituição.
Parágrafo único. O repouso semanal remunerado deverá coincidir, pelo menos uma vez no período máximo de três semanas, com o domingo, respeitadas as demais normas de proteção ao trabalho e outras a serem estipuladas em negociação coletiva.
Deste modo, conforme o próprio mandamento legal acima, o trabalho aos domingos é expressamente autorizado. Sendo assim, os municípios poderiam regulamentá-lo, e não desautorizá-lo, sob pena de ofensa à legislação federal.
Diante disso, é possível afirmar que haveria uma extrapolação por parte do município se o impedimento de funcionamento dos supermercados e hipermercados aos domingos fosse, de fato, efetivado.
Em adição, é possível trazer, ainda, outros argumentos.
O fechamento de vagas de emprego, que seria inevitável com a proibição de funcionamento dos supermercados e hipermercados aos domingos, violando o preceito constitucional do pleno emprego.
Outro argumento, na realidade, rebate uma das justificativas do PL nº 1602/2015, que é o descanso do trabalhador. Isso porque fundamenta-se que o trabalho aos domingos é regulamentado por lei, havendo a garantia de um domingo de folga a cada dois trabalhados, ou ainda, a folga por escala em outro dia da semana quando não houver descanso no domingo.
É incontroverso que muitos trabalhadores até desejam trabalhar aos domingos, tendo em vista os ganhos que poderão obter, principalmente financeiramente.
Em adição, outro fundamento jurídico está relacionado ao consumidor, uma vez que, fazer compras aos domingos, atende os anseios de conforto, comodidade e conveniência de todos. Além disso, pesquisas demonstram que, em algumas redes de supermercados de Belo Horizonte, o domingo é o segundo dia de maior venda na semana.
Assim, os consumidores perderiam muitas opções de locais para fazer compras aos domingos, o que, no campo axiológico, representa um retrocesso social.
Ademais, em período de crise econômica vivenciado pelo País, cujos impactos afetam diretamente os municípios. Em Belo Horizonte, por exemplo, o setor de serviços representa 70% do PIB e impulsiona a economia da cidade, de modo que os supermercados representam nada menos que 25% do setor de serviços. Com o fechamento dos mesmos aos domingos, haveria, certamente, retrocesso no desenvolvimento econômico da capital mineira.
Não se pode afastar, ainda, a perda de receita tributária. Se não há funcionamento dos estabelecimentos aos domingos perdem-se vendas e, consequentemente, arrecadação. Especificamente no que tange ao ICMS, a perda da arrecadação resultaria em perda de caixa do município, levando-se em consideração a técnica de repartição de receitas tributárias prevista no texto constitucional.
Por fim, restam violados a liberdade e à isonomia. A aprovação do PL nº 1602/2015 feriria a liberdade para empreender (livre iniciativa). Isso porque cada empresa deve ter a liberdade de decidir quando, onde e como vai funcionar, sempre para atender a necessidade de seus clientes.
É certo, ainda, que o Projeto fere a isonomia, uma vez que escolhe apenas um ramo da atividade econômica para proibir o funcionamento aos domingos, e esse tipo de conduta faz com que haja migração do consumo para outros setores, o que corrobora ainda mais a ideia de intervenção desnecessária e inconstitucional do Estado, ocorrendo restrição ou redirecionamento de mercado com a chancela estatal.
Saliente-se que caberia, pelo menos, embora refutável, a discussão macro de funcionamento do comércio aos domingos para todos os setores da economia, e não uma visão restritiva a supermercados e hipermercados. Portanto, a isonomia está sendo violada.
Pois bem.
Diante disso tudo, tal como posto, nota-se suposto conflito apriorístico de direitos constitucionais. Entretanto, a norma de colisão encaminha-se no sentido de que, em casos como o que aqui se discute, deve-se buscar preservar o máximo de direitos e, somente quando impossível, restringir um em face do outro no menor nível possível.
Logo, deve-se afastar de ponderações abstratas e do discurso que um direito constitucional vale mais que outro, sendo certo que tal conclusão só pode ser alcançada nos casos concretos ou situações concretas, como a presente.
Desde modo, fazendo-se uma interpretação sustentada com a teoria de Robert Alexy e/ou de Humberto Ávila, que possuem diferenças mas se assemelham em vários aspectos, conclui-se que não existe choque entre direitos. Todos os direitos podem ser concomitantemente observados e privilegiados no caso em apreço.
Todos os direitos acima arrolados que seriam violados caso o PL fosse aprovado e os demais direitos invocados para justificar o PL nº 1602/2015 não serão violados. De um lado, a proteção à família e o descanso permanecerão, uma vez que a lei trata estes assuntos de forma diferenciada e devidamente justificada e palpável. De outro, a livre iniciativa, livre concorrência, isonomia, preservação da arrecadação estariam preservados.
Sendo assim, a conclusão política alcançada pela Câmara Municipal de Belo Horizonte está totalmente de acordo, a nosso ver, com a melhor interpretação jurídica do caso, criando-se a expectativa de progresso do País. Isso porque, caso houvesse a sua aprovação, direitos seriam violados; com a sua desaprovação nenhum direito estaria sendo totalmente violado. Por isso, a luz da melhor exegese, a segunda linha de raciocínio deve prevalecer, garantido a permanência de direitos constitucionalmente tutelados.
Ressalte-se que, no caso em análise, ocorre verdadeiro entrecruzamento de dispositivos legais que prestigiam em máxima medida direitos constitucionais e formulam única regra de conduta, inexistindo, a priori, qualquer colisão: o funcionamento de supermercados e hipermercados aos domingos estimula a economia local, aumenta a arrecadação tributária, permite investimento público com a receita obtida, prestigia a livre concorrência e livre iniciativa, salvaguarda a autorização de trabalhos aos domingos nos termos da legislação federal, desde que direitos trabalhistas sejam observados, especialmente nos critérios de descanso e remuneração com tratamento justificadamente diferenciado.
Em conclusão, o afastamento de direito constitucional só pode ocorrer de forma inevitável ou excepcional diante de um caso concreto específico, notadamente no caso de choques. A meu ver, a rejeição de propostas desta natureza faz prevalecer série de direitos constitucionais, conforme acima anotado. No entanto, caso estas propostas fossem acolhidas, restariam preservados alguns direitos em detrimentos de vários outros, o que, como já mencionado, proporciona em desnecessária restrição de direitos constitucionais que não abstrata ou concretamente não são colidentes e podem ser, como já apontado, compatíveis.