Jaime Barreiros Neto (BA)
Uma das grandes inovações legislativas do ano de 2015, ao lado do Novo Código de Processo Civil e da Lei nº. 13.165/15 (reforma eleitoral), com impactos no direito eleitoral, foi gerada pela publicação, em 06 de julho, do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº. 13.146/15), cuja entrada em vigor foi determinada para janeiro de 2016, após 180 dias de vacatio legis.
Com um capítulo específico sobre o direito à participação na vida pública e política, além de outras disposições normativas vinculadas ao processo democrático, com repercussões, inclusive, no âmbito criminal, o Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece, como primeira grande novidade geradora de impactos no direito eleitoral, a alteração dos artigos 3º e 4º do Código Civil, referentes à normatização da capacidade civil.
Dispunha o Código Civil brasileiro, no seu artigo 3º, que eram absolutamente incapazes: os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos; e os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade.
Já o artigo 4º do Código Civil, antes da vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, dispunha que seriam relativamente incapazes os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e os pródigos. Ainda dispunha o parágrafo único do Código que a capacidade dos índios seria regulada por legislação especial.
Doravante, com a publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, o novo artigo 3º do Código Civil passa a dispor, no seu caput, que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”. Os incisos que existiam anteriormente, referentes ao citado artigo, foram todos revogados pela nova lei. Assim, só será considerado absolutamente incapaz, no Brasil, o menor de 16 anos.
O artigo 88, § 2º do Estatuto, por sua vez, estabelece que “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”, devendo a avaliação da deficiência, quando necessária, ser obtida de forma biopsicossocial, através de trabalho desenvolvido por equipe multidisciplinar, a qual deverá considerar os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividades; e a restrição de participação do indivíduo.
Estas importantes mudanças, promovidas no texto do Código Civil e/ou previstas no novo Estatuto, serão capazes de gerar importantes consequências no âmbito do Direito Eleitoral, especialmente no que se refere ao exercício da capacidade política, tanto na sua dimensão ativa (que envolve, especialmente, o direito de votar), como na sua dimensão passiva (relativa, em especial, ao direito de ser votado).
De acordo com o artigo 15, II, da Constituição Federal, é hipótese de suspensão dos direitos políticos a incapacidade civil absoluta. Assim, os absolutamente incapazes, de acordo com o texto constitucional, são impedidos de exercer a capacidade política, nas suas duas dimensões, enquanto perdurarem os efeitos da incapacidade.
Antes da publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, como já destacado, as hipóteses de incapacidade civil absoluta abrangiam não apenas a questão da idade, como também a situação daqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos; bem como a daqueles que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade.
Em relação aos menores de 16 anos, nada muda no que se refere ao exercício da capacidade política com o Estatuto da Pessoa com Deficiência: continuarão, estes indivíduos, sendo considerados absolutamente incapazes e, portanto, inaptos ao exercício dos direitos políticos.
As demais hipóteses anteriormente previstas como sendo de incapacidade civil absoluta, contudo, foram revogadas. Assim pessoas que estavam com os seus direitos políticos suspensos, por incapacidade civil absoluta, salvo nos casos decorrentes da pouca idade, passam a estar aptas, a princípio, ao exercício desses direitos, podendo, inclusive, disputar eleições, caso cumpram as condições de elegibilidade e não incorram em inelegibilidades.
Neste sentido, é fundamental destacar o artigo 76 do novo estatuto, que assim dispõe:
Art. 76. O poder público deve garantir à pessoa com deficiência todos os direitos políticos e a oportunidade de exercê-los em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1o À pessoa com deficiência será assegurado o direito de votar e de ser votada, inclusive por meio das seguintes ações:
I - garantia de que os procedimentos, as instalações, os materiais e os equipamentos para votação sejam apropriados, acessíveis a todas as pessoas e de fácil compreensão e uso, sendo vedada a instalação de seções eleitorais exclusivas para a pessoa com deficiência;
II - incentivo à pessoa com deficiência a candidatar-se e a desempenhar quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, inclusive por meio do uso de novas tecnologias assistivas, quando apropriado;
III - garantia de que os pronunciamentos oficiais, a propaganda eleitoral obrigatória e os debates transmitidos pelas emissoras de televisão possuam, pelo menos, os recursos elencados no art. 67 desta Lei;
IV - garantia do livre exercício do direito ao voto e, para tanto, sempre que necessário e a seu pedido, permissão para que a pessoa com deficiência seja auxiliada na votação por pessoa de sua escolha.
§ 2o O poder público promoverá a participação da pessoa com deficiência, inclusive quando institucionalizada, na condução das questões públicas, sem discriminação e em igualdade de oportunidades, observado o seguinte:
I - participação em organizações não governamentais relacionadas à vida pública e à política do País e em atividades e administração de partidos políticos;
II - formação de organizações para representar a pessoa com deficiência em todos os níveis;
III - participação da pessoa com deficiência em organizações que a representem.
Como se observa, a partir da publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, passa a ser direito fundamental dessas pessoas, de forma inquestionável, a participação na vida política do Estado, inclusive no que se refere ao direito de serem votadas.
No que se refere ao direito de votar, por sua vez, a nova lei estabelece que é dever do Estado, e, por conseguinte, da Justiça Eleitoral, garantir que os procedimentos, as instalações, os materiais e os equipamentos para votação sejam apropriados, acessíveis a todas as pessoas e de fácil compreensão e uso, sendo vedada a instalação de seções eleitorais exclusivas para a pessoa com deficiência, regra prevista para não estigmatizar estas pessoas, inserindo-as de forma completa na sociedade. Esta regra, de certa forma, já vem sendo observada pela Justiça Eleitoral há alguns anos, não se constituindo em verdadeira novidade.
Da mesma forma, o inciso III do artigo 76 citado prevê que, na propaganda política, debates eleitorais e pronunciamentos oficiais da Justiça Eleitoral ou de autoridades, seja observada a acessibilidade das pessoas com deficiência às informações, através da garantia do uso dos seguintes recursos de subtitulação por meio de legenda oculta; janela com intérprete da Linguagem Brasileira de Sinais (LIBRAS); e audiodescrição. Mais uma vez, observa-se que a legislação eleitoral específica já se adiantou, nestas exigências, ao prever o uso da LIBRAS, ou, alternativamente, o uso de legendas, como obrigatório na propaganda partidária e na propaganda eleitoral, já há alguns anos. A nova lei apenas complementa, neste sentido, uma prática já enraizada no processo eleitoral.
Novidade mesmo, capaz de criar situações de impasse na organização das eleições, é a exigência prevista no inciso IV do art. 76 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, o qual determina que, sempre que necessário, e a pedido da pessoa com deficiência, deverá ser permitido que esta pessoa seja auxiliada na votação por pessoa de sua escolha.
O grande impasse criado por esta norma revela-se no seu conflito com o artigo 60, § 4º, II da Constituição Federal, que estabelece, como cláusula pétrea, o voto secreto. Inevitavelmente, a possibilidade, prevista no Estatuto da Pessoa com Deficiência, desta pessoa solicitar o acompanhamento e auxílio de outra, na hora de votar, entra em colisão com o caráter secreto do voto, exigindo, assim, um exercício hermenêutico de ponderação de interesses.
Na situação descrita, o sigilo do voto, necessário à preservação da liberdade do eleitor, corolário do Estado Democrático de Direito, colide com a própria possibilidade material de exercício desta liberdade, uma vez que, em muitas situações, a ausência do auxílio referido inviabiliza o próprio exercício do direito.
No caso concreto, portanto, há de ser avaliada, no nosso entendimento, a necessidade real do auxílio, regra determinada na própria lei em comento. Não é, portanto, em qualquer situação, que uma pessoa com deficiência terá o direito de ser acompanhada e auxiliada por outra pessoa no momento de votar. Uma pessoa, por exemplo, que tenha dificuldades de locomoção, mas, ao mesmo tempo, tenha plenas condições, mesmo diante das referidas dificuldades, de agir sozinha, não deve ter o direito de ser auxiliada no momento de votar, desde que verificada a desnecessidade deste auxílio, pelo presidente da mesa receptora dos votos.
Outro requisito indispensável para o deferimento do auxílio, também extraído da redação do artigo 76, IV do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é a manifestação da vontade de ser auxiliada no exercício do voto, por esta pessoa. Caso não haja a manifestação inequívoca desta pessoa, no sentido da solicitação do auxílio, o presidente da mesa receptora dos votos não deverá permitir que haja o acompanhamento do eleitor por estranho, no momento do exercício do voto.
É de se destacar que o artigo 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê como crime, sujeito à reclusão de 01 a 03 anos e multa, para quem o cometer, as condutas de praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência. Diante deste tipo penal, o presidente da mesa receptora poderá ser induzido a permitir, sem qualquer tipo de ponderação, por medo de praticar conduta delituosa, que qualquer pessoa com deficiência, em qualquer situação, seja acompanhada e auxiliada por outra, o momento de votar. Ocorre que o Código Eleitoral, em seu artigo 310, que é crime, com pena de detenção até seis meses e pagamento de multa, “praticar, ou permitir, membro da receptora que seja praticada qualquer irregularidade que determine a anulação da votação”. Neste sentido, o artigo 220 do mesmo código prevê, como uma das hipóteses de nulidade da votação, a inobservância de formalidade essencial do sigilo dos sufrágios.
Da mesma forma, o artigo 312 do Código Eleitoral também prevê como criminosa a conduta de “violar ou tentar violar sigilo de voto”, cuja pena será de detenção por até dos anos. Admitida a participação do presidente da mesa receptora, como co-autor ou partícipe, na execução deste delito, vislumbra-se mais um motivo de preocupação e ponderação a ser observado diante do fato concreto motivador do pedido de auxílio previsto no artigo 76, IV do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Não restam dúvidas que o Estatuto da Pessoa com Deficiência, com vigência a partir de janeiro de 2016, traz importantes avanços no reconhecimento de direitos fundamentais de uma parcela importante da população brasileira, ainda bastante discriminada e desprotegida. Como visto, este reconhecimento abrange também, como não poderia deixar de ser, o exercício dos direitos políticos, os quais, mais do que nunca, devem ser reconhecidos como essenciais à plena garantia da dignidade da pessoa humana.
A suma relevância do reconhecimento pluralista destes direitos fundamentais, objetivada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, contudo, não pode ser um óbice ao exercício racional da hermenêutica jurídica, uma vez que em muitas situações, como as descritas neste trabalho, é possível se vislumbrar o conflito entre direitos e/ou deveres fundamentais, que, de forma concomitante, devem ser efetivados e ponderados, como mandamentos de otimização, nos casos concretos. Daí a importância de uma responsável reflexão acerca dos efeitos desta nova e importante legislação no âmbito da efetivação não só dos direitos políticos, dentre os quais se enquadram aqueles referentes aos processos eleitorais, como também dos direitos fundamentais, como um todo.