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Em tempos de mosquito, podemos aprender com a "revolta da vacina"

ANO 2016 NUM 75
Flávio Henrique Unes Pereira (MG)
Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela UFMG. Coordenador e professor do curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo do IDP/DF. Presidente do Instituto de Direito Administrativo do DF. Advogado.


04/02/2016 | 5315 pessoas já leram esta coluna. | 6 usuário(s) ON-line nesta página

Os dados são alarmantes. Fala-se em milhares de pessoas portadoras de “microcefalia”. O Estado é chamado a intervir, a agir. A ferramenta jurídica conhecida para essas horas é o poder de polícia administrativa, razão pela qual vale revisitar o episódio que ficou conhecido como “Revolta da Vacina”, ocorrido no Rio de Janeiro em 1904, em que a ausência de interlocução entre a Administração e o cidadão foi determinante para a ocorrência do conflito.

Na obra “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”, José Murilo de Carvalho discorre sobre o contexto político-social em que ocorreu a “Revolta da Vacina”, analisando, especialmente, os personagens “revoltosos” e os motivos que levaram à revolta popular.

Inicialmente, o autor observa que oitenta por cento da população do Rio de Janeiro não participava, por meio de mecanismos eleitorais, da vida política do país, o que não significou letargia dos “cidadãos inativos constitucionalmente” em relação a condutas governamentais que lesavam a vida cotidiana de cada um (CARVALHO, J., 2008, p. 91). A revolta revelava exatamente a indignação popular diante de imposições autoritárias do Governo. Carvalho acaba apresentando a concepção dos direitos e deveres na relação entre indivíduos e Estado na primeira década do século XX.

Em breve síntese, o autor relata que Rodrigues Alves, então Presidente da República, nomeou como Diretor do Serviço de Saúde Pública Oswaldo Cruz, cuja primeira meta foi enfrentar a febre amarela, “[...] adotando métodos já aplicados em Cuba” (CARVALHO, J., 2008, p. 94). A extinção dos mosquitos e o isolamento dos doentes foram as medidas adotadas de imediato. Em seguida, o combate à peste bulbônica era realizado por brigadas sanitárias que percorriam casas, “[...] desinfetando, limpando, exigindo reformas, interditando prédios, removendo doentes. [...] Cerca de 2500 mata-mosquitos espalharam-se pela cidade” (CARVALHO, J., 2008, p. 94).

De fato, se analisados os atos regulamentares da época, pelos quais eram previstas as prerrogativas governamentais no exercício do poder de polícia sanitária, tornam-se visíveis a imperatividade e a unilateralidade da ação governamental.

O Regulamento dos serviços sanitários a cargo da União dispôs sobre os procedimentos referentes ao serviço sanitário terrestre. O art. 91 afirma que, a juízo da autoridade sanitária, as casas e os estabelecimentos que não forem “[...] saneaveis e não puderem por isso servir sem prejuízo para a saúde pública” deverão ser desocupados e reconstruídos por seus proprietários. Chegou-se a proibir a lavagem de roupas nas casas que não tivessem “[...] terrenos e installações apropriadas, e em condições de esgotar facilmente as águas” (art. 105) (DIRECTORIA GERAL DE SAÚDE PÚBLICA, 1909, p. 924).

A demolição de casas, sem procedimento prévio que assegurasse efetiva contestação do exame feito pelos inspetores sanitários, foi expressamente prevista no art. 123 do regulamento.

A comunicação ao Governo sobre os doentes era dever de todos os cidadãos, sob pena de multa, conforme dispunha o art. 148, e o isolamento era obrigatório (art. 152) (DIRECTORIA GERAL DE SAÚDE PÚBLICA, 1909, p. 930).

Especificamente quanto à varíola, outorgou-se à polícia sanitária a utilização de “todos os meios” necessários para a vacinação (art. 211). O número de vacinações realizadas por inspetor passou a ser o critério de avaliação de seu desempenho (art. 212) e a ausência de vacinação, fundamento para sanção.

De volta ao relato de José Murilo de Carvalho, verificamos que a vacinação obrigatória contra a varíola foi o estopim para a revolta popular. As discussões sobre o projeto de lei que tratou do tema passaram a ocupar o centro das atenções, formando-se grupo contrário à vacinação. Jornais da época denunciavam o caráter autoritário da medida.

Reuniões foram convocadas no Centro das Classes Operárias, nas quais a oposição às medidas governamentais alcançou maior fôlego na população operária. Manifestações de estudantes e operários na rua pregavam a resistência à vacina.

Foi declarado estado de sítio após o Levante da Escola Militar da Praia Vermelha. Ao fim da revolta, aproximadamente mil prisões foram feitas, além de contabilizadas 23 mortes e 67 feridos (CARVALHO, J., 2008, p. 117-118).

O autor conclui que a obrigatoriedade da vacina foi o episódio desencadeador da revolta popular, afastando, como justificativa primeira, aspecto de natureza econômica ou política. A desinfecção das casas, mediante invasão e a exigência de saída dos moradores de seus lares, provocou irritação popular. O caráter moralista adquiriu, no contexto, expressão significativa. “A justificação baseava-se tanto em valores modernos como tradicionais. Para os membros da elite, os valores eram os princípios liberais da liberdade individual e de um governo não-intervencionista. A retórica liberal, originalmente difundida por positivistas e liberais ortodoxos, chegou mesmo a atingir setores da classe operária. Um jornal dos gráficos, comentando a revolta em 1905, dizia que ela fora reação contra medida tirânica destinada a ‘esmagar todas as conquistas liberais das sociedades modernas’. Para o povo, os valores ameaçados pela interferência do Estado eram o respeito pela virtude da mulher e da esposa, a honra do chefe de família, a inviolabilidade do lar. Acontece que os dois tipos de valores, o moderno e o tradicional, eram perfeitamente compatíveis. Ambos convergiam na oposição à interferência do governo além de limites aceitáveis. Deu-se aí o fenômeno descrito por Rudé: a fusão de uma ideologia derivada de classes altas, a fusão de valores populares com valores burgueses, gerando a ideológica do protesto. O inimigo não era a vacina em si, mas o governo, em particular as forças de repressão do governo. Ao decretar a obrigatoriedade da vacina pela maneira como fizera, o governo violava o domínio sagrado da liberdade individual e da honra pessoal. A ação do governo significava tentativa de invasão do espaço até então poupado pela ação pública. A maneira de implementar a obrigatoriedade ameaçava interferir em quase todas as circunstância da vida. O próprio emprego do operário podia estar em perigo.” (CARVALHO, J., 2008, p. 136, grifos nossos).

Para José Murilo de Carvalho, a despeito de a revolta não ter provocado mudanças políticas imediatas, além da interrupção da vacinação, “[...] ela certamente deixou entre os que dela participaram um sentimento profundo de orgulho e autoestima, passo importante na formação da cidadania” (2008, p. 139). A conclusão do autor foi demonstrada por meio da imprensa da época: “O repórter do jornal A Tribuna, falando a elementos do povo sobre a revolta, ouviu de um preto acapoeirado frases que bem expressavam a natureza da revolta e este sentimento de orgulho. Chamando o repórter de ‘cidadão’, o preto justificava a revolta: era para ‘não andarem dizendo que o povo é carneiro. De vez em quando é bom a negrada mostrar que sabe morrer como homem!’. Para ele, a vacinação em si não era importante – embora não admitisse de modo algum deixar os homens da higiene meter o tal ferro em suas virilhas. O mais importante era ‘mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do povo.” (CARVALHO, J., 2008, p. 139, grifo nosso).

Reflexo da Revolta da Vacina pode ser verificado na posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, em 31.1.1905, ao julgar o Recurso em Habeas Corpus n. 2.244. O acórdão consta no sítio do STF, no link “julgamentos históricos”. Após ter sido negada a ordem em primeira instância, o recurso interposto no STF sustentava que o fato de o paciente ter recebido, pela segunda vez, a intimação de inspetor sanitário, para adentrar sua casa e proceder à desinfecção, configurava ameaça e constrangimento ilegal. O Tribunal considerou inconstitucional a disposição regulamentar que facultava à autoridade sanitária penetrar, até com o auxílio da força pública, em casa particular, para realizar operações de expurgo. O Judiciário, portanto, diante da violação imposta unilateralmente pelo Executivo, assegurou ao cidadão o mínimo de efetividade de seu direito fundamental à inviolabilidade do lar.

Em 13.10.1906, o STF, nos autos do Agravo n. 841, definiu a competência da instância administrativa em relação à jurisdicional quanto ao poder de polícia sanitária. À primeira cabe averiguar e indicar os reparos necessários nos prédios, enquanto à segunda a execução de tais medidas. Constatamos, assim, que o modo como as medidas de polícia administrativa foram executadas à época influenciaram o Judiciário quanto ao impedimento de a Administração executar, manu militari, as ações que eram demandadas pela política sanitária.

Impõe-se, nesse contexto, a releitura do poder de polícia administrativa. A Revolta da Vacina, ocorrida na primeira década do século XX, revela o quanto é autoritária a concepção que exclui o devido processo legal no elo da ação estatal, especialmente quando há direta repercussão na vida do cidadão. Não por outra razão, o Supremo Tribunal Federal, em janeiro de 1905, como visto, acolheu a tese de inconstitucionalidade de dispositivo regulamentar – unilateral e inovador no ordenamento jurídico – que autorizava o ingresso de inspetor sanitário em domicílio sem que a lei – devido processo legislativo – previamente tivesse estabelecido os critérios para tanto.

A literatura revelou, por sua vez, a importância do regaste do contexto histórico para a solução de conflitos. As mudanças advindas com a República conviveram com uma realidade social que demandava interlocução com a sociedade, acima de tudo. A imposição estatal aliada ao contexto de mudança paradigmática – monarquia/república – foi determinante para que a Revolta ocorresse.

O paradigma do Estado Democrático de Direito, retratado na Constituição de 1988, tal qual a República no período em que ocorreu o episódio histórico em destaque, exige aprimoramento da comunicação entre a esfera estatal e privada, avançando para a reflexão em torno do modo como as decisões são editadas, a prestigiar a participação dos cidadãos na ação estatal.

O caráter preventivo e educativo deve ser prestigiado no exercício de “poderes” que condicionam ou limitam a liberdade ou propriedade privadas, como ocorre no poder de polícia administrativa. Medidas que valorizem tais aspectos devem ser previamente assumidas como dever da Administração Pública, mediante a institucionalização de canais de comunicação com a população, daí a legitimidade da atuação estatal. Tal aspecto, conforme analisado na descrição do episódio histórico, inexistiu, desaguando na revolta popular.

“Interesse da coletividade”, “bem comum”, “ordem pública”, “segurança nacional”, “interesse público” não são, portanto, per se, determinados, como se o Executivo fosse “a boca do interesse público”.

O respeito à autonomia privada é, portanto, indispensável para a legitimidade da atuação estatal, vez que a esfera pública pressupõe a preservação da esfera privada. Compete, portanto, à Administração Pública, no Estado Democrático de Direito, instituir canais de comunicação com os afetados pelas medidas governamentais antes que haja limitação a seus direitos. 



Por Flávio Henrique Unes Pereira (MG)

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