Flávio Henrique Unes Pereira (MG)
Segundo a imprensa nacional vem divulgando, em Mariana, o departamento responsável pela fiscalização das empresas “disse ter destacado quatro funcionários (geólogos e engenheiros) para confirmar todas as informações relatadas pela Samarco referentes às barragens.” A notícia também informa que existem 602 barragens em todo o país, ao passo que o Departamento Nacional de Produção Mineral tem 200 fiscais” (http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/11/orgao-empenha-166-de-verba-de-fiscalizacao-de-barragens-ate-outubro.html)
Mais uma vez – e digo isso porque a tragédia em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, ocorrida em 27.01.2013, revelou a omissão do poder de polícia administrativa (manchete do jornal “O Tempo”: “Falta pessoal para fiscalizar lei mais dura para boates: há 64 homens para verificar casas em 33 cidades”) - a insuficiência do aparato estatal bate na nossa cara. E de volta a mesma questão: por que o Estado não contrata empresas especializadas para exercer a fiscalização administrativa?
Inúmeros aspectos – notadamente de natureza jurídica – contribuem para os problemas mencionados, instigando a reflexão sobre alternativas que concorram para a efetividade do exercício do poder de polícia administrativa.
Devemos considerar, por exemplo, a insuficiência do aparato estatal para cumprir todas as suas crescentes funções, haja vista os limites constitucionais (art. 169, CR) e legais (art. 19, da Lei de Responsabilidade Fiscal) de despesas com pessoal.
Devido às evoluções científicas, há, também, necessidade crescente de especialidade na direção de instrumentos e tecnologias indispensáveis para o exercício do poder de polícia administrativa, indo além da mera atividade material. Quando há gestão de informações estratégicas, em pauta está o acesso a dados relevantes sobre a vida das pessoas e muitas vezes da própria Administração Pública, a exigir perícia técnica e investimento por parte do operador. Poderíamos falar, ainda, em “inteligência de polícia administrativa”, o que indica a complexidade do tema na atualidade.
Nesse cenário, o estudo sobre as condições e requisitos que viabilizam a delegação do poder de polícia administrativa ao particular adquire especial relevo, porquanto sinaliza alternativa de parceria do setor estatal com o privado, que poderá avançar na solução de problemas sociais sérios e de relevante impacto na vida em sociedade.
As recentes formulações teóricas acerca da concepção do Estado Democrático de Direito provocam os estudiosos do Direito Administrativo a refletirem sobre as diversas categorias jurídicas e institutos clássicos da aludida disciplina, a partir da leitura crítica de seus fundamentos.
O tema “poder de polícia administrativa” reflete esse dilema, cuja origem está atrelada à concepção verticalizada de Administração Pública e à supremacia do interesse público sobre o privado, segundo apriorística arbitragem do Estado e seus agentes. Esse princípio, aliado a outros fundamentos doutrinários e jurisprudenciais, tem sustentado historicamente a indelegabilidade da atividade de polícia administrativa ao particular, com base em argumentação ontológica despida de maior aprofundamento deontológico.
A posição clássica pela indelegabilidade da prestação do poder de polícia administrativa parte da compreensão de que o direito público é homogêneo, regular e não impactado pelas mudanças decorrentes da hipercomplexidade da vida em sociedade, na atual quadra do desenvolvimento das relações sociais, econômicas, estatais e privadas.
O direito público regularia, segundo a concepção tradicional, o exercício do poder, que, por sua vez, seria prerrogativa exclusiva do aparato estatal, razão pela qual não faria sentido delegá-lo, especialmente quando se tratasse de atribuição limitadora ou condicionante da atividade dos indivíduos, desde quando se fundasse o seu exercício na etérea noção de “bem comum”. O Estado, nessa perspectiva, é tido como fonte onipotente e exclusiva para o exercício do poder.
Por outro lado, o cenário de grandes avanços tecnológicos, a possibilitar maior integração entre diferentes culturas, interfere na formatação de uma sociedade multifacetada, em que a Administração Pública deixa de ser considerada como tutora exclusiva do interesse público, para compartilhar a tarefa com a sociedade e seus diversos atores. Seguramente, entre as mudanças protagonizadas no século XX, especialmente após a 2ª Guerra Mundial, está o reconhecimento de que a esfera pública não se basta na estatal, à medida que a sociedade civil vê-se também como partícipe indispensável da delimitação do bem comum.
A complexidade de interesses inerente ao modelo de Estado contemporâneo requer novas reflexões a respeito da interação entre as esferas estatal, pública e privada, sem a pretensão de que seja identificado ipso facto interesse público que, de antemão, deva ser tomado como legítima arbitragem dos conflitos ou como expressão de soluções dos desafios do tempo presente.
Ocorre que, ainda assim, a doutrina clássica do Direito Administrativo Brasileiro não admite a delegação do poder de polícia administrativa e há nesse sentido decisões judiciais dos tribunais pátrios, entre os quais o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Tais posições merecem ser revistas e o STF tem essa oportunidade no julgamento dos REs n. 633782 e 662186, ambos da Rel. Min. Luiz Fux, cuja repercussão geral já foi reconhecida.
As questões que emergem desse contexto e que poderiam pautar este debate são as seguintes:
- O ordenamento jurídico brasileiro impede a delegação da execução da atividade de polícia administrativa ao particular?
- Há alteração do regime jurídico do ato de autoridade administrativa em razão da natureza jurídica da pessoa que o edita?
- Quais os requisitos da delegação do exercício do poder de polícia administrativa a particulares, caso o transpasse da atividade seja juridicamente possível?
Em tese de doutoramento (“Regulação, Fiscalização e Sanção: Fundamentos e requisitos da delegação do exercício do poder de polícia administrativa a particulares“, editado pela Forum) procuramos enfrenta-las, oportunidade em que afirmamos criticamente que a delegabilidade da execução das espécies de manifestação do poder de polícia ao particular (regulação, fiscalização e sanção) não encontra obstáculo na Constituição da República de 1988 e nem rompe com a noção de autoridade administrativa, desde que prevista em lei e desde que atendido o devido processo administrativo, de modo a garantir a legitimidade da atuação pública delegada e o respectivo controle jurisdicional.
É preciso avançar muito e estar atento à realidade. Olhos lá em cima e pés no chão, tal como os poetas fazem. Aliás, em 1984, Drummond, como bom mineiro, viu para além - e dentro - das montanhas:
“Lira Itabirana”
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
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