Flávio Amaral Garcia (RJ)
A entrada do UBER no Brasil, como de resto em outros países, tem provocado intensos debates e renhidas discussões jurídicas sobre a sua juridicidade[1], causando protestos de taxistas nos mais diversos Municípios brasileiros.
O UBER é uma sociedade empresária que desenvolveu uma plataforma tecnológica para conectar e articular motoristas e consumidores de transporte individual. Os motoristas se utilizam da plataforma e repassam um determinado percentual do valor recebido para a empresa.
O padrão elevado na qualidade do serviço prestado angariou uma imediata simpatia da população e, principalmente, dos consumidores, satisfeitos com a nova alternativa que lhes vem ofertando maior eficiência, segurança e conforto.
A propósito, é o próprio UBER quem credencia os motoristas e considera as avaliações dos passageiros para manter o nível de excelência desejado. Quanto ao ponto, não se vislumbra nenhum descompasso com a ordem jurídica, porquanto cada vez mais a tendência moderna, como bem explica PEDRO GONÇALVES[2], é a ativação das responsabilidades privadas, com a substituição do tradicional princípio da autoridade pública pelo princípio da autorresponsabilização dos particulares.
Mas é preciso, em sequência, examinar os principais aspectos e polêmicas jurídicas que gravitam em torno da entrada do UBER no mercado brasileiro, bem classificado por FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO e RAFAEL VÉRAS[3] como uma "inovação disruptiva", a saber, novas tecnologias que rompem com o modo de se prestar e oferecer um bem ou serviço.
Zelando pela objetividade que prima o espaço Colunistas, concebido pelo jurista e amigo PAULO MODESTO, serão estabelecidas as premissas que orientam a minha pré-compreensão sobre o tema e que reputo necessárias para se alcançar algumas conclusões preliminares sobre a palpitante controvérsia.
O UBER não deve ser objeto de restrições ou vedações absolutas a sua entrada no mercado pelos entes públicos. Trata-se de atividade que se insere no campo do livre exercício das atividades econômicas e que se encontra protegida pelo princípio constitucional da livre iniciativa (artigo 1°, IV e caput do artigo 170, da CF).
Vedar a entrada do UBER no mercado de transporte individual brasileiro, para além de afetar o núcleo de liberdade das pessoas - físicas ou jurídicas - de se organizarem e desempenharem livremente atividades e escolherem os seus próprios destinos é adotar uma postura que ignora a realidade, os fatos e, principalmente, o advento de novas tecnologias transformadoras da vida em sociedade. O Direito nunca andou bem quando olhou para trás e não para frente.
Essa primeira conclusão não significa, como adiante se pretende demonstrar, que o UBER não possa ou não deva ser regulado pelos entes públicos. Contudo, é preciso encadear o raciocínio de forma lógica, sendo necessário avançar em outros aspectos relevantes para que se agregue alguma contribuição concreta na discussão.
A competência para disciplinar o serviço, parece-me, é dos Municípios, na exata medida em que o transporte individual de passageiros é matéria afeta ao interesse local. Além disso, as normas gerais sobre o transporte individual de passageiros encontram-se traçadas na Lei n.° 12.587/12, mais conhecida como a Lei de Mobilidade Urbana.
Aqui já se pode chegar a outra conclusão: o UBER presta serviços materiais de transporte e a plataforma tecnológica é apenas o instrumento para intermediar e organizar a relação entre a demanda e a oferta. Mas o que o UBER efetivamente entrega e o que o consumidor efetivamente espera é um serviço eficiente de transporte individual das pessoas.
Avançando no tema, é possível asseverar que os serviços de transporte prestados pelo UBER não se equivalem aos serviços prestados pelos táxis. Explica-se: é que a Lei n.° 12.587/12 - Lei de Mobilidade Urbana - considera no seu artigo 4°, inciso VIII, transporte público individual o serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas, enquanto que, no inciso X, do artigo 4°, define transporte motorizado privado como o meio de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares.
Bem vistas as coisas, é possível enquadrar os táxis como transporte público individual e o UBER como transporte privado individual. A diferença entre as duas modalidades é que o transporte público individual é aberto ao público. Em outros termos, qualquer cidadão pode pegar um táxi na rua, o que não acontece com o UBER, que depende exclusivamente da plataforma tecnológica. Cabe aqui um apontamento: existem várias cooperativas e prestadores de serviços de táxi que se beneficiam da mesma tecnologia para angariar consumidores, como, por exemplo, o EASY TAXI e o 99 TAXIS. A diferença para o UBER, como apontado, é que os táxis também dispõem da alternativa de conquistarem os consumidores nas ruas; daí ser aberto ao público.
Essa distinção entre transporte público individual e transporte privado individual nos permite avançar em mais duas conclusões.
A primeira é que a circunstância de o táxi ser enquadrado como transporte público individual não implica na sua classificação como serviço público, parecendo mais apropriado o seu enquadramento como serviço de utilidade pública. Não se vislumbram, nos serviços prestados pelos táxis traços de essencialidade, universalidade, continuidade ou de atendimento a necessidades coletivas intrinsecamente conectadas com direitos fundamentais, a qualificá-lo como serviço público, o que, evidentemente, não significa dizer que não devam ser regulados.
A segunda conclusão é que essa convivência entre um regime público e outro privado, prevista na Lei de Mobilidade Urbana, não é nenhuma novidade. Ao contrário, é amplamente adotada em vários outros setores. Trata-se da concorrência assimétrica, identificada nos setores de telecomunicações, energia e portos, que admite e estimula a concorrência entre os distintos regimes, o que se deve, em grande medida, à contribuição do Direito Europeu Contemporâneo.
Portanto, a concorrência entre táxi (transporte público individual) e UBER (transporte privado individual) está em absoluta sintonia com o Direito Administrativo do século XXI.
Caminhando para o final desse brevíssimo ensaio, chega-se ao ponto mais importante e desafiador do debate, ou seja, a identificação de razões de interesse público que justifiquem a regulação dos serviços prestados pelo UBER.
No plano do Direito Concorrencial, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)[4] avaliou que a entrada do UBER no mercado não afetou de forma significativa a procura por táxis nas principais regiões do país, atendendo a uma demanda reprimida de passageiros que não utilizavam esse meio de transporte. Em sendo assim e sob a ótica da concorrência, não haveria razão em regular ou interferir no seu funcionamento.
Mas seria apenas a concorrência que importa quando se está a cuidar de serviços de transporte? A resposta parece ser negativa. Existem outros valores que devem ser tutelados e resguardados pelo Poder Público e que dizem respeito à vida em sociedade e à própria forma de organização das cidades.
Imagine-se que não apenas o UBER, mas qualquer outra sociedade empresária que se dedique ao ramo de transporte privado individual de passageiros possa oferecer os seus serviços. Para tanto, seriam necessários mais carros que inundariam as cidades, o que reverteria a prioridade estabelecida em lei para o transporte coletivo.
Lembre-se que a Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada pela diretriz de priorizar os modos de transporte não motorizados sobre os motorizados e os serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado. É o que vem expresso no artigo 6°, inciso II, da Lei n.° 12.587/12. Os táxis, por exemplo, dependem de autorização estatal, dentre outras razões, pela indispensável necessidade de controle do número de entrantes e de automóveis nas ruas.
Ora bem: admitir-se que o UBER ou qualquer outra sociedade empresária possa exercer sem qualquer controle estatal a sua atividade - em especial no que se refere ao número de carros utilizados para atender à demanda do transporte individual - significa ignorar as possíveis externalidades negativas, que, entre outras, venham a ser provocadas com o desenvolvimento da atividade, tais como congestionamentos, maiores índices de poluição ambiental causados pelos automóveis e prejuízos ao ordenamento territorial, restringindo os espaços de circulação, que deveriam ser utilizados preferencialmente pelos modos de transporte público coletivo.
Na forma do disposto no artigo 5° da Lei n.° 12.587/12, a Política Nacional de Mobilidade Urbana, dentre outros princípios, está assentada no desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais, na equidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo, eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano, justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços, equidade no uso do espaço das vias públicas e eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana.
Todos esses princípios se traduzem em razões de interesse público que justificam o Poder Público Municipal regular os serviços de transporte privado individual prestados pelo UBER ou por qualquer outra sociedade empresária.
Claro que a situação de cada Município é distinta, como distinto deverá ser o exercício da regulação. É possível que em alguns casos as externalidades negativas sejam evidentes e em outros não. Esse passa a ser o complexo desafio do regulador, que, para além de estimular a saudável concorrência entre prestadores sob os regimes público e privado, deverá curar os valores e interesses protegidos pela Constituição Federal (desenvolvimento sustentável) e, mais detidamente pela Lei de Mobilidade Urbana.
Será, por derradeiro, uma ótima oportunidade para reavaliar a regulação dos serviços de táxi, tão importantes para as cidades, mas que nunca entraram efetivamente no centro dos debates jurídicos, sendo, não raro, objeto de legislações arcaicas e posturas pouco sintonizadas com as modernas técnicas de regulação das atividades públicas ou de relevante interesse público.
Enfim, a solução está na regulação...
[1] Sobre o tema e a favor da entrada do UBER no mercado, cabe mencionar os opinamentos dos professores e juristas DANIEL SARMENTO e JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO. Por outro lado, posicionando-se contrariamente ao exercício dessa atividade e entendendo que devem os entes públicos proibir o UBER, mencione-se a opinião do professor e jurista CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO. Os referidos pareceres e estudos desenvolvidos pelos ilustres professores e juristas foram fundamentais para que o subscritor do presente ensaio pudesse chegar as suas próprias conclusões.
[2] GONÇALVES, Pedro Costa. Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante. Coimbra Editora, junho de 2013, p. 150.
[3] Disponível em http://jota.info/uber-whatsapp-netflix - quando o mercado e a tecnologia desafiam a doutrina.
[4] Conforme noticiado pelo Jornal O Globo, página 12, no dia 15.12.15.
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